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Audioguia

Ouça aqui os audioguias de Ariana Nuala sobre festejos e forças da natureza

SP–Arte
18 ago 2022, 16h50

E a festa que se deseja

Ariana Nuala (Recife, PE, 1993) é curadora, educadora e pesquisadora. Trabalha com coletivos artísticos independentes onde discute questões relacionadas ao poder, permanência e as tramas visíveis e invisíveis que tornam possíveis as existências de práticas coletivas.

A partir de manifestações da rua, sejam festejos “populares”, movimentos políticos ou até mesmo no cruzamento entre esses dois espaços, este audioguia reforça a importância dos ritos que envolvem fazeres artísticos. Práticas que insistentemente revisitam e acionam coletividades contra-hegemônicas e o deslembrar de distrações coloniais.

Olá, bem-vinde a SP–Arte: Rotas Brasileiras, me chamo Ariana Nuala, sou curadora, educadora e pesquisadora e vou acompanhar vocês neste audioguia chamado E a festa que se deseja. Neste roteiro, vamos articular sobre artistas que reverberam suas produções a partir de manifestações da rua, sejam festejos “populares”, movimentos políticos, ou até mesmo no cruzamento entre esses dois espaços, este material reforça a importância dos ritos que envolvem estes fazeres artísticos. Práticas estas que insistentemente revisitam e acionam coletividades contra-hegemônicas em um exercício sobre memórias negras e indígenas e o deslembrar de distrações coloniais.

O título desse roteiro se inspira na canção Bloco Novo do compositor Tiganá Santana, nela entendemos o mundo se refazendo, em um movimento que ata e desata, ecoar solto que surge a partir das mãos do tocador. Esse gesto, aparentemente simples, orienta uma dança entre corpos, uma interatividade que não perpassa apenas pela visualidade, mas sim por uma reorientação de sentidos. O que trabalhos que se organizam a partir da coletividade podem nos dizer? Que narrativas são contadas a partir da repetição de algumas tradições e também suas mudanças?

Entendendo as rotas que o circuito modernista forjou nas décadas de 20 e início dos anos 30, onde viagens etnográficas para as regiões Norte e Nordeste faziam parte da metodologia da produção intelectual do Rio de Janeiro e de São Paulo, a exemplo de Mário de Andrade com o livro “Turista Aprendiz”, que marca registros de sua andanças por diversos estados e encontros com intelectuais pernambucanos como o artista plástico Cícero Dias e o poeta Manuel Bandeira. Neste processo, o projeto modernista cria aparatos para discutir a presença de corpos negros e indígenas na formação de uma brasilidade, ou seja, a construção do Brasil a partir da ideia de mestiçagem.

Contrários a esse argumento e provocando outras narrativas que não a de um encontro passivo entre as três raças, mas sim enxergando as violências produzidas sobre a tentativa de unificar um território como os brasis, proponho dialogar com artistas e coletivos que aqui se espalham em um exercício de entender as múltiplas possibilidades de criação de memórias, reiterando cada vez mais a importância fazer esquecer práticas que sugerem uma obediência civilizatória onde alguns se sobrepõem a outros sendo protagonistas de narrativas, e assim ficções.

A festa foi um dos principais elementos arquivados nestas pesquisas na década de 20, estes acontecimentos que une gestos, sonoridades, oralidades, visualidades se torna pungente em seu fascínio ao mesmo tempo que é contraditório para um olhar estrangeiro. Os festejos indicam uma herança de ritos e também a permanência de cosmologias estrategicamente cultivadas através de diversos saberes.

A artista paraense Rafael BQueer atualiza nosso enredo ao se aproximar do samba, transpondo as alegorias exuberantes dos barracões do carnaval carioca para seu trabalho. A metáfora de uma boca que tudo come, se relaciona com Exu, entidade da cultura yororubana conhecida como orixá dos caminhos, aquele que se põe em frente aos portais.  A língua é aquela que ajuda a deglutir os alimentos, ou seja, o mundo, come aquilo que vem da terra, das águas e as transforma em força vital. Bqueer revisa as materialidades, potencializando seu próprio potencial de se retroalimentar. Representada pela C. Galeria, a artista traz o trabalho Língua de Exu, criado em 2022 e seus elementos variam dos mais vibrantes possíveis como pelúcia, miçangas, strass e lantejoulas para construção de uma tessitura que exalta a si mesma, porém revela outras mais mil línguas.

A galeria Marco Zero traz para essa edição algumas pinturas do artista Bozó Bacamarte. Nascido na cidade do Recife, o artista cresceu no bairro da Bomba do Hemetério, uma das regiões com maior concentração de terreiros de candomblé, e também conhecida por ser base do Maracatu Nação Elefante e pela Orquestra Popular da Bomba do Hemetério. Em Preparativos para um festejo, o artista articula uma paisagem ficcional circundadas por símbolos e figuras que são encontradas nas crenças populares, como a figa, que é uma mão fechada, sinônimo de proteção contra a inveja e o mau olhado. A presença na festa de Bacamarte é composta por seres/entidades e por uma ampla vegetação que pode nos remeter as plantas utilizadas nos rituais da Jurema Sagrada, religiosidade indígena que abrange o nordeste brasileiro de diferentes maneiras e que teve encontros com os povos africanos, criando novas formas de encantamentos.

Silvana Mendes é uma das artistas maranhenses que está expondo pelo Preamar. Em sua proposta, a artista, se compromete em revisitar  os arquivos fotográficos de Alberto Henshel (1827-1882), considerado um dos primeiros donos de estúdio fotográficos no Brasil que produziu uma enorme série de retratos de pessoas negras em vários estados brasileiros. Mendes parte então das ativação dos arquivos a partir de colagens manuais e digitais para reconfigurar as pessoas que aparecem nas imagens, as colocando em uma posição de fartura e abundância. Na série criada em 2022, mas Afetocolagens – Reconstruindo Narrativas Visuais de Negros na Fotografia Colonial, a artista se utiliza de uma ferramenta colonial como o arquivo para realinhar memórias, desviando a vontade de dominação e a reposicionando para o cuidado.

Idealizado por Lázaro Roberto, Ademar Marques e Raimundo Monteiro temos em exibição pela HOA as fotografias do ZUMVI Arquivo Fotográfico, que é uma instituição criada em 1990 em Salvador com uma pretensão não só de documentar, mas sim de criar uma maneira própria de retratar o movimento negro na cidade de Salvador, existia uma necessidade de discutir o como fazer imagens fora de um aspecto fetichista. Assim o ZUMVI nasceu como um quilombo visual com comprometimento em fotografar eventos importantes para a comunidade negra, um lugar que coloca o arquivo em um campo do acesso e não do intocável, um material possível de manipulação entre as várias mão que muitas vezes estão visíveis nas próprias fotografias, principalmente as que revelam caminhadas coletivas.

Cada sol pra mim é um deslumbramento, com esta frase em seu “Manifesto Ainda que Tardio”, publicado em 1976, Rubem Valentim, escultor, pintor e gravurista baiano, nascido em 1911, nos convida a enxergar a força de seu trabalho. Com matrizes interligadas nos festejos que são entrelaçados intrinsecamente às culturas afroreligiosas, Valentim  cria uma linguagem que parte da observação e da experiência de um corpo em festa. A sua busca por uma brasilidade é a partir de sua relação singular com o candomblé, não partindo então de movimentos nacionais ou internacionais, o artista compreende a complexidade de sua geometria a partir das irradiações de cada elemento vivo, não se vinculando a nenhum movimento moderno. A galeria Paulo Kuczynski expõe uma peça serigráfica feita pelo artista no período que ele morou em Brasília, nela podemos visualizar um dos emblemas criados por Valentim, na cidade onde viveu e se articulou profissionalmente.

Convido vocês a mergulharem nos cruzamentos entre as ruas que festejam e as ruas que batalham, entendendo a imensidão dos afetos em lugares de conflito. Assim, proponho um passeio por essas proposições artísticas que reconhecem na dança de vários corpos a possibilidade da fissura.

Deixo meu abraço e até a próxima!

Das pedras dos mantos, as agências incontroláveis

Atento aos movimentos que surgem do encontro entre corpos, mirando para fenômenos da natureza que desestabilizam a separação entre espécies e as diferentes geografias, o audioguia reflete sobre quais transformações nas categorias de arte são possíveis a partir de práticas que envolvem ações não-humanas, como as do fogo, da água e do vento.

Olá, bem-vinde a SP–Arte: Rotas Brasileiras, me chamo Ariana Nuala, sou curadora, educadora e pesquisadora e vou acompanhar vocês neste audioguia chamado Das pedras dos mantos, as agências incontroláveis. Neste roteiro, vamos estar atentos aos movimentos que surgem do encontro entre corpos, mirando para fenômenos da natureza que desestabilizam a separação entre espécies e as diferentes geografias. Aqui refletimos sobre quais transformações nas categorias de arte são possíveis a partir de práticas que envolvem ações não-humanas, como as do fogo, da água e do vento. Habitando um mundo onde crises climáticas são cada vez mais provocadas pelo impacto das ações humanas na Terra e em seus ecossistemas, como podemos relacionar a produção artística com a natureza? Quais questões são levantadas pela arte contemporânea hoje e o período que foi nomeado antropoceno? 

Aqui convido vocês a passearem comigo pela poética de alguns artistas que se encontram dentro da feira, e que em seus trabalhos, orbitam discussões que podem nos provocar acerca das relações com o meio ambiente. Vamos lá? Uyra Sodoma é uma artista que cria seu trabalho a partir da intensidade dos deslocamentos que fez ainda criança do município de Mojuí dos Campos no Pará para a capital do Amazonas, Manaus. Na tentativa de compreender as complexidades do acelerado modo de vida da capital amazônica, Sodoma, se depara com intervenções urbanísticas que desafiam o equilíbrio ambiental do território e a fazem abordar temas como o da diáspora indigena brasileira com o cruzamento das violências causadas em corpos dissidentes. Convidada pela galeria C. Galeria, Sodoma apresenta o Ensaio Fogo componente da série de fotografias Elementar, produzida em 2018. Nela vemos a figura de Uyra Sodoma completamente entrelaçada a floresta a sua volta, coberta com folhas, relevando uma composição realista do espaço da fotoperformance com excessão do corpo da própria artista que indica sua influência da cultura drag queen, onde aparece geralmente “montada” a partir de elementos da natureza que impregnam sua pele. Esta escolha estética, se torna também política para exaltar as alterações sofridas pelo meio ambiente, deixando revelar aquilo que a cidade propõe.  

A imagem reforça o desejo da artista em se transfigurar em um ser-bicho-folha, conduzida também por sua cosmopercepção que ao se relacionar com animais e folhas, não os enxerga dentro de uma condição hierárquica de consciência. O contraste entre as cidades, é também mote para Marcela Bonfim, fotógrafa nascida em São Paulo, mas vive em Rondônia, mudança que radicalmente atravessou seu fazer. Atualmente Bonfim desenvolve a pesquisa “(Re)conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta” – projeto de militância e reflexão das artes visuais, no campo da antropologia visual, sobre a constituição e memória da população negra brasileira na região amazônica. Economista de formação, a fotógrafa reflete sobre a negritude na Amazônia como um dado que também confirma a participação deste grupo no próprio desenvolvimento econômico deste território. Destacando os fluxos migratórios, principalmente de imigrantes caribenhos, Bonfim, em suas fotografias se aproxima de famílias negrodescendentes que constituem a paisagem e que também são agentes modificantes desta, e que estão muitas vezes invisíveis nos imaginários sobre a região. Compreendendo então o Rio Madeira como uma entidade viva para os moradores ribeirinhos, a artista conforma seu fazer para um lugar sem muitos artifícios, e vê na imagem uma força transformadora de anunciar presenças.

A paisagem para o geógrafo Milton Santos é espaço de mudança, mais do que uma janela da natureza, um lugar a ser visto, a paisagem é geografia que marca as diferentes relações ali existentes, ambiente de movimentos. Aislan Pankararu, artista representado pela galeria Galatea evoca uma paisagem em deslocamento em seu trabalho, entendendo que a geografia não é apenas algo externo, mas que se faz presente dentro dos corpos, o artista retoma sua trajetória que começa na Aldeia de Brejo dos Padres, território indígena Pankararu, em Tacaratu e seu trânsito para as cidades de Petrolândia, ainda em Pernambuco e posteriormente Brasília, onde cursa medicina. Ao refletir sobre esse processo de deslocamento, Aislan define essa relação com os lugares fora do território Pankararu de raiz flutuante. Essa necessidade de pensar seu rastro e caminho está intimamente ligada com os traços de suas pinturas que sugerem uma relação com os desenhos corporais feitos em cor branca, através da argila, pelo seu povo em diferentes momentos ritualísticos. O bioma do sertão pernambucano também aparece como lugar de lembrança, a caatinga é sintetizada na pintura dos tecidos e em diferentes papéis a partir de traçados sinuosos circulares, a exaltação da natureza no trabalho de Aislan se apresenta como inscrição da narrativa cosmológica Pankararu na branco história da arte. Neste sentido, o trabalho de Aislan em toda sua delicadeza nos revela saberes fora de uma hegemonia ocidental e se faz arquivo vivo das mudanças e permanências presentes no povo Pankararu, seu processo evoca a pintura do vento, da poeira que é se faz levante a partir da batida dos pés na areia em solo indígena e das gestualidades advinda de movimentos circulares em rituais, como o toré.  

Não é só Aislan que traça através dos seus desenhos e pinturas seu trajeto no mundo, a artista Ana Cláudia Almeida que aparece nesta edição da feira junto a artista Tatiana Chalhoub representadas pela galeria Quadra organiza uma série de desenhos e pinturas que em sua formalidade convidam quem os vê para imaginar um mundo ainda não conhecido. Os tamanhos, pesos e misturas de suas pinturas, juntos a possibilidade de uso de várias técnicas permitem ações químicas, principalmente, entre resina e pastel que fogem da agência da artista. Influenciada por vistas aéreas, maneiras de experienciar a geografia a partir de um olhar ou muito distante ou muito próximo, a artista brinca com as escalas e as diferentes materialidades  para realçar uma geologia que descobre com seu próprio corpo. Seja em desenhos mais livres, onde a artista improvisa formas ou quando pinta sob a chuva ou dentro d’água, Almeida continua a sua maior vontade, o desejo de desvendar camadas, sejam de suas próprias pinturas ou do manto terrestre. 

Seria possível criarmos a partir de uma relação intrínseca com a natureza? Quando nos separamos dela? Quando sentimos repulsa sobre ela? Essas perguntas envolvem também o trabalho da artista Vivian Caccuri, que em sua dimensão conecta sons a visualidades, criando músicas que se organizam a partir do desconforto e do caos cotidiano, em sua pesquisa em torno dos mosquitos a artista exerce uma curiosa pergunta: Porque é tão incômodo a existência dos mosquitos para a vida humana?  Será que existe algo que eles nos querem dizer e não conseguimos entender? A partir de quando os mosquitos viraram sinônimo de noites mal dormidas, alergias, epidemias e repulsa? Representada pela galeria Millan, a artista propõe trabalhos em instalações, faixas sonoras, performances que bagunçam nossas faixas auditivas e nos trazem para uma conexão maior com aquela natureza que rejeitamos. 

Convido vocês a mergulharem nessas proposições artísticas, aproveitando esses cruzamentos entre terrenos, uma dimensão nada estática que reconhece o híbrido, a contaminação e os fluxos como território criativo.

Deixo meu abraço e até a próxima!

Ariana Nuala (Recife, PE, 1993) é curadora, educadora e pesquisadora. Trabalha com coletivos artísticos independentes onde discute questões relacionadas ao poder, permanência e as tramas visíveis e invisíveis que tornam possíveis as existências de práticas coletivas. Formada em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco (2017), estudou no Programa Acadêmico de campus expandido Museos/Anti-Museos na UNAM (2019) e receberá o diploma superior em Estudos Latinoamericanos e Caribenhos pela CLACSO (2021); atuou na Coordenação do Educativo no Museu Murillo La Greca (2018 – 2020) e atualmente é assistente de curadoria do Instituto Oficina Francisco Brennand. Coordena como projeto independente a Plataforma e Residência Práticas Desviantes e o Pulo – Ciclo de Oficinas de Imagens da Diáspora, e também é integrante e curadora dos coletivos CARNI (@carnicoletivo) e do Trovoa (@trovoa__). Foi curadora da mostra Estratégias para o Contorno no XI ÚNICO pelo SESC PE (2019). Como residente participou do Valongo Festival (2019) e foi residente do II ciclo do programa da Pivô Pesquisa.

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