Fachada do museu (Foto: Divulgação)
Instituições #4

De olho na história: Masp

Priscyla Gomes
20 dez 2019, 10h27

O Museu de Arte de São Paulo (Masp) foi inaugurado em 1947, com sede na rua 7 de Abril na região central da cidade. Idealizado por Assis Chateaubriand (1892-1968) e Pietro Maria Bardi (1900-1999), a escolha de viabilizar um museu paulistano tinha como mote aliar crescimento e modernidade à uma imagem de cidade que se industrializava. 

Num primeiro momento, o museu ocupou o segundo andar do edifício dos Diários Associados. A estrutura inicial previa espaços para exposições periódicas e didáticas, mas contava ainda com uma área singela que totalizava cerca de mil metros quadrados. Ficou a cargo da arquiteta Lina Bo Bardi a adaptação do edifício para abrigar as novas atividades que, além dos espaços expositivos, contou somente com uma biblioteca e um pequeno auditório.

Embora ainda de pequeno porte, a fundação do novo museu teve grande repercussão. Suas diretrizes gerais e a nova museologia desenhada causaram impacto no meio cultural paulista ainda pautado por instituições tradicionais como a Pinacoteca do Estado e o Museu Paulista. Já na sua fundação, o museu surgia com um programa contundente, pautado pela clara delimitação de sua função social. Em pouco tempo, o Masp se expandiu ocupando novos andares dos Diários Associados incorporando exposições sobre cinema e teatro à sua programação.

Cerca de uma década dividiu a primeira proposta, ainda adaptada aos limites de um edifício não claramente voltado ao seu fim, e o projeto de um museu pensado em sua integridade para abrigar a nova coleção. O novo e atual endereço, situado na Avenida Paulista, gozava de localização privilegiada e de uma vista espetacular que teriam chamado a atenção de Lina a fim de concentrar esforços para a cessão ao novo museu.

Acima: Fachada do museu (Foto: Divulgação)

Construção do prédio do Masp (Foto: Casacor / Divulgação)

Construção do prédio do Masp (Foto: Casacor / Divulgação)

Museu na década de 70 (Foto: Divulgação)
Cavaletes na exposição permanente em 1968 (Foto: Divulgação)

Museu na década de 70 (Foto: Divulgação)

Cavaletes na exposição permanente em 1968 (Foto: Divulgação)

A arquiteta tomou partido da restrição de que não houvesse obstrução da vista e articulou o projeto do novo museu em dois grandes volumes: um elevado, majoritariamente vazado, que enquadra a paisagem; e outro semi-enterrado, rodeado de jardins e responsável pelo embasamento de um grande vão delimitado pela extensão da cota da Avenida Paulista. O projeto aproveita-se da declividade do terreno para dividir o extenso programa do museu sem comprometer sua horizontalidade marcante, uma leitura que apresenta com extrema leveza a transição da Paulista para o acesso ao museu. Esse acesso, disposto em um vão de 70 metros de extensão, tornou-se um marco na região sediando encontros e agrupamentos dos mais distintos, persistindo ainda hoje como um dos pontos estratégicos às manifestações políticas e culturais na cidade. 

A mudança do edifício sede do museu da região central para adjacências do Trianon foi concomitante ao deslocamento do setor financeiro para a Paulista, que passou por intensa verticalização. Importante salientar que foi exatamente nessas adjacências que se implantou o pavilhão da Primeira Bienal Internacional de Arte de São Paulo. O perfil da Avenida Paulista mudava, paulatinamente, para tornar-se um centro cultural, comercial e financeiro de São Paulo.

A ideia que norteou o projeto implementado pelo casal Bardi na capital paulista nasceu bem antes de sua experiência na 7 de abril. Rompendo com uma noção clássica de museu, o “antimuseu” como define Pietro Maria Bardi provinha de discussões do casal sobre como pensar um programa que fosse capaz de atrair jovens igualmente ao cinema e ao futebol. A ideia de um museu popular, no sentido de um acesso irrestrito como equipamento urbano, reforçava também seu caráter atemporal. A proposta do Masp fugiu da distribuição característica de uma coleção apresentada num arranjo progressivo de tempo. Abrigar uma coleção tinha papel secundário frente a importância do museu como espaço de aprendizagem, de caráter também lúdico e eminentemente coletivo.

A vocação popular de um museu e seu papel de formação de seus visitantes, no caso do Masp, extrapolou uma dimensão programática e deu forma também aos seus espaços e suportes. Inevitável mencionar a disposição de sua Pinacoteca, cuja gestão atual do museu veio oportunamente revisitar após abandono na década de 1990. Os famosos cavaletes desenhados por Lina Bo Bardi, extensivamente copiados e alvos de crítica aos arraigados defensores de um espaço neutro para exibição das obras, surgiram como uma proposta indissociável de um museu que buscava o livre convívio do visitante com suas obras. Uma relação bastante específica, que sob a proposta de um cavalete em vidro, propicia certa ruptura com a aura da obra de arte. O visitante convive com os quadros num espaço eminentemente límpido e fluido tendo ao seu alcance frente e verso da obra, suplantando informações como legendas frontais, mas evidenciando os bastidores de suas molduras e suportes. Aliado ao pano de vidro que dá limite ao pavimento da Pinacoteca, obras das mais diferentes temporalidades mesclam-se com o espaço do entorno. A proposta do cavalete com singela base de concreto que lhe serve de contrapeso provinha da crença da arquiteta em um diálogo direto do observador com a obra, uma imagem que a Lina buscou consolidar.

"Rosa e azul - as meninas" (1881), Pierre-Auguste Renoir. Parte do acervo do Masp (Foto: Acervo Masp)
"Virgem com o menino e são João Batista criança" (1490 - 1500), Sandro Botticelli e Ateliê. Parte do acervo do Masp (Foto: Acervo Masp)

"Rosa e azul - as meninas" (1881), Pierre-Auguste Renoir. Parte do acervo do Masp (Foto: Acervo Masp)

"Virgem com o menino e são João Batista criança" (1490 - 1500), Sandro Botticelli e Ateliê. Parte do acervo do Masp (Foto: Acervo Masp)

A coleção

É possível afirmar que significativa parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo foi adquirida na primeira década de existência do museu. As figuras de Pietro Maria Bardi e Assis Chateaubriand foram cruciais a esse processo, contribuindo por meio de suas redes de contato para impulsionar aquisições no mercado europeu e mediar doações expressivas. No Brasil, em termos econômicos, o período coincidia com o crescimento da produção industrial e da economia cafeeira; na Europa, o pós-guerra trouxe um momento propício para o mercado, com a venda de obras a preços relativamente acessíveis. 

O núcleo inaugural da coleção foi formado por renascentistas italianos, com nomes como Botticelli, Perugino, Tintoretto, uma tela de Francisco Goya, um El Greco e pintores modernos como Chagall e Marx Ernst.  

Os anos 1950 foram marco de um crescimento acelerado do acervo acrescentando uma representativa coleção de impressionistas, com nomes como Manet, Degas, Renoir, Van Gogh, Cézanne. Picasso, Matisse, Léger também passaram, nesse momento, a integrar a coleção. Como meio de divulgação e reconhecimento, o Masp iniciou uma itinerância internacional.  Já na primeira abertura, em Paris, a positiva recepção da mostra possibilitou novas aquisições. Ao longo do trânsito entre museus na Europa, o acervo viu sua coleção ganhar dezenas de exemplares.

Importante salientar que a rápida configuração de um acervo expressivo apontava não somente para uma conjunção de fatores econômicos e de agentes envolvidos. A proposta de Bardi, que convenceu Chateaubriand de abdicar do nome Museu de Arte Antiga e Moderna para adotar somente Museu de Arte tinha em si um tom provocativo e extremamente sedutor. O Masp tratou de ser, por excelência, um museu de Arte que definia seus limites englobando todos os tipos de produção – da pintura, escultura à fotografia e à arte popular. Isso apontava seu viés um tanto precursor e legitimava, junto às suas exposições com caráter experimental, a ideia de um museu que fundou-se para o novo, ganhando a simpatia e a colaboração de colecionadores. 

Outro dado relevante ao entendimento das doações do período foram as divulgações e coberturas jornalísticas sabiamente elogiosas promovidas por Chateaubriand. Além de inúmeras festas que ressaltavam as doações realizadas, cada novidade no acervo tinha o seu devido destaque na imprensa – o que inflava os egos da sociedade paulista e carioca.

No início dos anos 1960, esse rápido crescimento sofreu uma quebra com os esforços voltados à viabilização da nova sede. Esse processo se agravaria com o falecimento de Chateaubriand, em 1968.

"Bailarina segurando seu pé direito com sua mão direita" (1900 - 1910), Edgar Degas. Parte do acervo do Masp (Foto: Acervo Masp)
"Bandeiras" (sem data), Alfredo Volpi. Parte do acervo do Masp (Foto: Acervo Masp)

"Bailarina segurando seu pé direito com sua mão direita" (1900 - 1910), Edgar Degas. Parte do acervo do Masp (Foto: Acervo Masp)

"Bandeiras" (sem data), Alfredo Volpi. Parte do acervo do Masp (Foto: Acervo Masp)

Nas décadas seguintes, embora em ritmo distinto, a política de aquisições foi mantida. Um aspecto de extrema relevância foi a contribuição e doação de coleções que passaram a integrar o acervo. Em 1974, o Masp recebeu da Coleção Osório César, um conjunto de desenhos de pacientes do Hospital Psiquiátrico do Juquery. O museu com tal gesto assumia o pioneirismo de reconhecer e incluir a produção de pacientes psiquiátricos. Tal pioneirismo também se deu com a formação de sua coleção de moda brasileira. As peças pertencentes à segunda metade do século 20 contam com destaques como a Coleção Rhodia, provenientes da empresa têxtil de mesmo nome. Essa coleção, doada também no início da década de 1970, traz uma série de estampas assinadas por artistas como Alfredo Volpi, Willys de Castro, Manabu Mabe, Antônio Bandeira, Nelson Leirner, entre outros.

O afastamento de Bardi, no final dos anos 1980, tornaria o processo de doações ainda mais lento. Episódios espaçados apontavam algumas obras de grande relevância doadas por particulares e, em alguns casos, restauradas pela equipe do museu. A esse processo, seguiu-se uma paulatina crise que, nos anos 1990, englobava medidas de descaracterização do edifício original, abandono da museografia da Pinacoteca e culminou em episódios mais críticos vinculados à uma crise econômica e de gestão.

O icônico e ousado projeto protagonizado pelo casal Bardi e viabilizado por Chateaubriand parecia alcançar, no início do século 21, um caminho bastante tortuoso. Aliando a recorrente e infeliz história da gestão de patrimônios públicos brasileiros, o museu carecia não só de ajustes em sua estrutura como de reformas que incluíam do prédio à sua programação.

Em meados dos anos 2010, uma nova diretoria foi constituída com um propósito claro de retomada dos anos paradigmáticos do Masp. O projeto, que buscou revisitar a história de constituição do museu, trouxe como linha curatorial e também de intervenção em seus espaços um estudo minucioso dos seus propósitos fundacionais. Assim, uma reforma trouxe novamente à tona a museografia original de Lina para a Pinacoteca, alguns espaços foram adequados e a programação assumia a transversalidade original do museu – aliada a temáticas urgentes e inclusivas da produção contemporânea.

Adoração (altar para Roberto Carlos) (1966), Nelson Leirner. Parte do acervo do Masp (Foto: Acervo Masp)

Adoração (altar para Roberto Carlos) (1966), Nelson Leirner. Parte do acervo do Masp (Foto: Acervo Masp)

Em meio a criticas sobre a reconfiguração de seu espaço expositivo com base em um modelo museográfico que já teria se tornado datado, as novas diretrizes encampadas pela atual direção mais do que reencenar uma proposta expográfica de Lina tem testado a potencialidade de suas pesquisas no âmbito da dessacralização da obra e da experiência do visitante diante do que lhe é mostrado. Com um acervo bastante mudado frente à proposta original – cabe salientar que o enfoque a aquisições contemporâneas permanece ainda hoje como um dos principais nortes da coleção – os cavaletes de Lina ainda ressoam como uma positiva indagação ao público do museu. 

Mais do que argumentos sobre estanqueidade ou preservação de seus espaços museais, a proposta de 1947 reiterada uma década depois, guarda uma marca irrevogável: a de que o Museu de Arte de São Paulo surgiu com o propósito claro de acesso e formação popular. Um propósito que não pode esvair-se uma vez vencidas as difíceis intempéries de manutenção das instituições brasileiras. 


Priscyla Gomes é curadora e pesquisadora em arte e arquitetura, doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde concluiu seu mestrado e sua graduação. Atualmente, é curadora associada do Instituto Tomie Ohtake e integra seu Núcleo de Pesquisa e Curadoria, coordenando as pesquisas desenvolvidas pela equipe curatorial. Foi curadora de exposições como: “Jamais me olharás lá de onde te vejo” (2019), “E para que poetas em tempo de pobreza?” (2019), “É como dançar sobre arquitetura” (2017), “Eduardo Berliner: corpo em muda (2016), entre outras.

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