O corpo, a cabeça e os adeuses

5 jul 2019, 15h47

por Miguel Del Castillo

 

A quem pertence esta cabeça que parece descolada do corpo, envolta por uma leve penumbra?

Considerando o tamanho do Brasil, pode-se dizer que é um país praticamente sem trens – o rodoviarismo de Juscelino Kubitschek e daqueles que o sucederam não deu muitas chances para o transporte sobre trilhos, e sentimos os efeitos ainda hoje. Mas poucos comboios de passageiros foram tão marcantes na história da nação quanto o chamado “trem baiano”, que Claudia Andujar fotografou para uma reportagem da revista Realidade, em maio de 1969. Os vagões levavam sobretudo migrantes que haviam ido a São Paulo tentar ganhar a vida e que, por um motivo ou outro, não conseguiram, recebendo então, do Departamento de Imigração e Colonização da Secretaria da Agricultura, uma passagem de volta nos trens cujo destino final era Salvador, com muitas escalas pelo caminho.

Andujar retratou diversos passageiros desse trem, mas só este da imagem acima possui essa natureza quase surrealista: uma cabeça fora do corpo. O corpo deitado e contorcido, os olhos fechados, tudo nele parece demonstrar cansaço. Será que dorme? Pensa em algo? Terá adoecido? Veste roupa social, com paletó e tudo, mas o pé está coberto apenas por uma meia, e não há sapato à vista. A mão e o braço poderiam apoiar a cabeça, porém se limitam a desenhar com ela uma linha na foto, quase perpendicular àquela formada pelo corpo – diagonais que fazem pensar nos oblíquos caminhos de ida e de volta.

A novela Los adioses (Os adeuses, 1954, sem edição no Brasil), do uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-94), tem uma temática semelhante e inversa à história registrada por Andujar: se o trem baiano despejava os migrantes de volta a suas cidades de origem, o livro de Onetti é ambientado numa localidade na montanha aonde muitos tuberculosos vão para tentar se curar. O narrador em primeira pessoa é o dono da mercearia local, ex-tuberculoso; observador perspicaz, é famoso por conseguir discernir se os recém-chegados vão conseguir se curar ou não, tão logo os vê. A doença acaba sendo o que estrutura aquela sociedade e revela muito a respeito de cada indivíduo – tanto pacientes como enfermeiros, médicos e funcionários dos hotéis. Essa observação da realidade movimenta a história, centrada num forasteiro misterioso que fala pouco e desafia a habilidade do dono da mercearia. Estática à primeira vista, a atmosfera melancólica do livro é destrinchada por Onetti de tal forma que resulta numa novela dinâmica – embora seu narrador praticamente não saia de trás do balcão:

“Queria ter visto do homem, na primeira vez que adentrou a mercearia, apenas as mãos; lentas, intimidadas e torpes, movimentando-se sem fé, compridas e ainda não tostadas, desculpando-se por sua maneira desinteressada. Fez algumas perguntas e tomou uma garrafa de cerveja, de pé, no canto mais sombrio do balcão […]. Queria ter visto apenas as mãos, me bastaria vê-las quando devolvi o troco de cem pesos e os dedos apertaram as notas, tentaram sem sucesso acomodá-las e, em seguida, resolvendo de repente, embolaram-nas e achataram-nas e esconderam-nas com pudor num bolso do paletó; bastaria-me ter visto aqueles movimentos sobre a madeira repleta de veios cheios de gordura e sujeira para saber que ele não iria se curar, que não tinha de onde tirar vontade para ser curado.”

Como o narrador de Los adioses, Claudia Andujar observa a realidade do trem a partir da ótica de quem também é, ou já foi, migrante – fugida da Hungria para a Suíça durante a Segunda Guerra Mundial, de lá para a independência em Nova York, e da capital cultural dos Estados Unidos para o reencontro com a mãe no Brasil, onde se estabeleceu em 1955 e logo começou a tentar compreender o novo país através da objetiva. Essa reportagem, feita catorze anos após sua chegada, carrega também um forte teor político, em plena ditadura. E, ao fotografar os passageiros quase inertes, movimenta aquela pequena sociedade, composta não de tuberculosos, mas de migrantes indesejáveis e “sem sorte”. A atmosfera no “trem do diabo”, como era chamado alternativamente, e na pequena cidade fictícia de Onetti, é de despedida: os adeuses. Despedem-se de uma possibilidade, talvez de um sonho que não foi concretizado, ou que foi destruído. Estirado num banco bem menor que si, dormindo de mal jeito, eis nosso forasteiro, cuja história Andujar também poderia estar tentando imaginar ao fazer a foto.

Qual terá sido o destino desse corpo sem cabeça, dessa cabeça sem corpo?

A imagem é muito eloquente, emblemática até: o migrante desesperançado, deslocado, contorcido, exaurido. O migrante que não pensa e vai, guiado pelo instinto do corpo, ou que pensa muito e carrega o corpo consigo, para depois voltar dividido, despedaçado. O migrante que perde a cabeça, ou que se perde em pensamentos obscuros, na penumbra. Tal é a potência política e de denúncia da fotografia de Claudia Andujar.

Hoje, a imagem ganha ainda mais força e parece indagar: como o Brasil trata seus migrantes – os que vêm de fora e também os que se deslocam por suas próprias entranhas?

Há inúmeros relatos que atestam que, caso sejam brancos, vindos da Europa, de países de primeiro mundo ou de grandes centros urbanos brasileiros, serão bem-recebidos; do contrário, nem tanto: basta trazer à memória os inúmeros bolivianos que viveram situações análogas à escravidão em oficinas têxteis em São Paulo; ou lembrar dos recentes conflitos na fronteira entre Brasil e Venezuela, em agosto de 2018, quando moradores da cidade brasileira de Paracaima expulsaram migrantes venezuelanos aos gritos de “fora, fora, fora, volte para a Venezuela”, enquanto aqueles corriam na direção de seu país de origem, carregando o que podiam. Na esteira de uma onda reacionária mais ampla, que inclusive elegeria um candidato cujo lema de campanha era “Brasil acima de tudo”, os locais chegaram a queimar os pertences deixados para trás pelos venezuelanos.

A fotografia do migrante no “trem baiano” me remete também àquela do menino sírio Aylan, seu corpo sem vida estendido na areia de uma praia grega após o bote em que ele e outros migrantes tentavam a travessia desde a Turquia virar. Feita em 2015 pela fotógrafa turca Nilüfer Demir, é impossível de esquecer.

São exceções, contudo: recebemos e vemos outras tantas fotografias do tipo quase todos os dias, que logo são atropeladas pelo intenso fluxo de imagens em que vivemos. Todas acabam atenuadas, pasteurizadas por nossa própria mente, seja devido a uma negligência ativa, seja por um mecanismo de nosso próprio inconsciente, tentando sobreviver a tudo isso. Portanto, fotografias como a de Andujar e a de Demir acabam servindo, também, como sinais de alerta, marcos visuais para que prestemos mais atenção. Para que, ao menos, possamos olhar de verdade, como o dono daquela mercearia do romance de Onetti – ou, quem sabe, olhar e imaginar futuros possíveis, por mais tenebrosas que sejam as perspectivas atuais.

 

 

Uma versão anterior deste texto foi publicada no site da revista ZUM, em 19 de outubro de 2015. Naquele momento, estava em exibição a mostra Claudia Andujar: no lugar do outro, no IMS Rio. Desde então, todo um pavilhão em Inhotim foi dedicado à obra da fotógrafa, e em 2019 o IMS exibiu Claudia Andujar: a luta Yanomami, com curadoria também de Thyago Nogueira, no IMS Paulista.

 


Miguel Del Castillo é escritor, tradutor e editor, autor de Restinga (contos, 2015) e Cancún (romance, 2019), ambos pela Companhia das Letras. Foi editor da Cosac Naify e do site da revista ZUM, e atualmente é curador da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles em São Paulo.

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