Linguagem fotográfica como registro e memória, por Marly Porto

29 mai 2016, 16h33

A arte contemporânea não se interessa mais por apenas produzir saberes, mas por articular questões. O trabalho de artistas como o paraguaio Fredi Casco, por exemplo, problematiza limites da linguagem fotográfica como registro e memória.

É essa a questão articulada por Marly Porto no texto abaixo, publicado originalmente no catálogo da SP-Arte/Foto/2015 (confira a publicação na íntegra aqui). A curadora e pesquisadora reflete também sobre trabalhos fotográficos de artistas como o brasileiro Marcelo Brodsky e a mexicana Maruch Sántiz Gomez. Confira!

 

Através da imagem: fotografia e memória

(por Marly Porto)

Por volta da década de 1980, com o impacto provocado pelo surgimento de novas mídias e pelas possibilidades de difusão da imagem, a fotografia deixa de ser suficiente para registrar o mundo. Assim, o modelo de retratar o real se altera. A qualidade de evidência normalmente atribuída à fotografia é subvertida, uma vez que o artista passa a questionar a veracidade contida em cada imagem, mostrando que a fotografia não é uma realidade e, sim, um jogo de códigos culturais. Ao apropriar-se de situações pertencentes à vida de outras pessoas e situá-las em um contexto artístico, artistas como Marcelo Brodsky exploram a força que a fotografia possui como testemunho de rituais culturais e de memórias compartilhadas. São imagens que, quando transpostas para um novo contexto, vivificam o passado e expandem o presente.

O conjunto de objetos que integram nossa história, os chamados objetos biográficos, é formado para estabelecer nossa identidade e relação com o mundo e acaba por tornar-se um elo entre as pessoas de determinada comunidade. Em muitos casos, esse conjunto de objetos é transmitido de geração a geração. Tomemos como exemplo a série Creencias, que a artista mexicana Maruch Sántiz Gomez criou fazendo uso do cruzamento de diversas formas de representação visual. Sántiz Gomez mostra, por meio de imagens e comentários em tzotzil (língua de origem maia), espanhol e inglês, as crenças e condições de vida de seus antepassados indígenas. Ao associar suas crenças às imagens que constrói, a artista nos leva para além do campo visual retratado e abre as portas para um mundo de ideias e conceitos coletivos que integram a alma da natureza e dos objetos. Desse modo, ao mesmo tempo em que preserva costumes, ritos e conhecimentos de seu povo para as gerações futuras, ela cria relações interculturais, por meio de imagens que vão muito além da mera documentação.

A arte contemporânea não se interessa mais por produzir saberes, mas, sim, por articular questões. Daí o surgimento do uso de objetos banais, restos de cultura que passam a ser reaproveitados, e, tal qual um bricoleur, os artistas articulam esses elementos criando uma vasta rede de novos significados. O artista contemporâneo trabalha não mais com o desejo de rompimentos ou superações, mas com o desejo de deslocamentos, através de colagens e sobreposições. Com isso, é a própria experiência da arte que se modifica, bem como nossos parâmetros de percepção e discurso.

A série fotográfica Operaciones y Ceremonias, do artista paraguaio Fredi Casco, revela o imaginário e contextos culturais configurados por condições pós-coloniais latino-americanas. Nela, coexistem imagens da revista italiana Killing e fotografias publicadas nos livros produzidos pela Escola das Américas, as quais, ao serem agrupadas pelo artista, revelam o aspecto obscuro da história do continente – que, por sua extrema violência. poderia facilmente se confundir com um relato de ficção. Casco manipula as imagens com a intenção de refletir sobre o processo de recordação e apagamento da memória, fazendo uma clara alusão à natureza transitória da existência humana, da memória e da História.

Ao se apropriar de imagens que um dia tiveram como principal função documentar, registrar, marcar um momento, Casco não está em busca de construir uma nova linguagem para a fotografia. No entanto, tal procedimento conduz a uma problematização dos limites que a linguagem fotográfica apresenta como forma de registro e preservação de memória. A ficção documental – criada pelo artista tendo como ponto de partida o registro fotográfico – constrói-se como numa trama que surge a partir da escolha do tema e do material, até a editoração e a manipulação digital das imagens. Casco desvia a função indicial da fotografia e agrega à imagem o desvelamento de camadas até então subordinadas à materialidade original do documento, evidenciando que uma mesma história pode conter diferentes narrativas, que vão além da superfície e da aparência e que se ocultam em seus detalhes. O caráter icônico da fotografia é colocado em questão e sugere uma releitura do paradigma fotográfico, deixando em evidência que o ato fotográfico sempre foi passível de interferências. Por mais que se tente criar uma imagem que defina claramente seu conteúdo, sempre haverá muitas formas de interpretação, não apenas no modo de fazer, como também na leitura exercida pelos diversos receptores.

Como afirma o professor da Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle, Philippe Dubois: “uma foto nada mais é que uma superfície. Ela não tem profundidade, mas possui uma fantástica espessura. Uma foto esconde sempre (pelo menos) uma outra, embaixo dela, atrás dela, em torno dela”.1

 


Marly Porto é curadora dos seminários A imagem: aspectos analíticos e transdisciplinares (2015) – que conta com a presença dos artistas Fredi Casco, Marcelo Brodsky e Maruch Sántiz Gomes, bem como dos pesquisadores Dario Arce, Geoffrey Kantaris e Sylvia Valdes – e O sequestro da imagem: apropriações na fotografia contemporânea – realizado em 2013, com a presença dos artistas Oscar Muñoz, Dor Guez, Rosângela Rennó e Cássio Vasconcellos. É também diretora da empresa Porto de Cultura e mestranda do programa de pós-graduação interunidades em Estética e História da Arte, da Universidade de São Paulo.

 


Nota: (1) DUBOIS, Philippe. Photography mise-en-film of modern autobiographical cinema. Revista Laika, São Paulo, July 2012, p. 34.

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