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SP–Arte Viewing Room

Viewing Room: o chacoalhão pandêmico e o desafio de construir um espaço do zero

Julia Flamingo
24 ago 2020, 10h55

Sem portas ou janelas, sem ter de passar por um sistema de segurança ou tocar a campainha para entrar: no âmbito digital, as galerias estão menos para um cubo branco e hermético, e mais para um papel em branco a ser desenhado. Com o Coronavírus, o mercado de arte foi obrigado a criar espaços digitais em um período de quarentena que empurrou galerias, feiras e instituições a desvendar a linha tênue entre improvisação e inovação, como há muito tempo o comodismo não permitia. A epidemia é global, assim como o movimento de desbravamento do ambiente digital. Já vimos que feiras de arte online funcionam e que lances com dígitos gigantescos são dados até através da tela do celular. Agora chegou a vez da feira mais relevante da América Latina, a SP-Arte, testar o seu Viewing Room online entre os dias 24 e 30 de agosto. E de percebermos de que maneira, quando esse modelo é transposto para o nosso contexto brasileiro, a feira de arte e as galerias se ajustam a ele.

A experiência deliciosa de passear por uma exposição fisicamente é incomparável e insubstituível. Quanto mais estreita a relação entre a obra de arte e o espaço onde ela é exposta, maior a potência de uma experiência enriquecedora. Curadores, artistas e profissionais da arte vêm há décadas pensando em como transformar esse momento de contato com a obra no mais especial possível. Tentar transpor isso para o digital significa já começar perdendo. O grande desafio não é fazer um simulacro digital da experiência física, mas construir outro espaço do zero, o tal do desenho no papel em branco que exige um alto nível de abstração. Como não existem referências, está na ordem do dia ouvir a opinião dos Millenials sobre experiências digitais, contratar ratos de tecnologia e apostar em criadores de software.

Reunião da equipe da Galeria Jaqueline Martins para produção da exposição “Que vão que vem” (Foto: Cortesia Galeria Jaqueline Martins)

Reunião da equipe da Galeria Jaqueline Martins para produção da exposição
“Que vão que vem” (Foto: Cortesia Galeria Jaqueline Martins)

No Viewing Room da SP-Arte o foco, então, é a informação e produção de conteúdo. Se, no Pavilhão da Bienal, os cinco dias de visitas físicas à feira eram passeios riquíssimos pela arte moderna e contemporânea, pela produção do design nacional, pelas publicações de arte, o Viewing Room não pretende transpor esse passeio para o virtual, mas pede que cada galeria produza conteúdo para além de apenas expor um belo PDF de obras. A ideia é que cada estande virtual possa produzir projetos curados, exponha textos e vídeos de artistas, traga explicações sobre as obras, e aposte na tecnologia para agregar conteúdo. No Pavilhão da Bienal, havia pouca ou nula informação sobre as obras apresentadas. É claro que o objetivo primário de uma feira é a venda – mas a aquisição de uma obra também significa a compra de uma experiência, de uma história, de uma narrativa que é enriquecida pela informação. No chacoalhão pandêmico, ficou mais claro que o papel da feira e das galerias também é o de formar novos públicos e de contribuir para o fomento de conhecimento e opinião. “Esse é um desafio e tanto para melhorar a nossa comunicação com o mundo. Muitas vezes, acabamos afastando as pessoas que consomem arte, tanto no que concerne a compra como também o consumo de informação, por conta da maneira como nos apresentamos. Acredito que as galerias têm uma obrigação como agente cultural. E agora, mais do que nunca, estamos repensando em como ampliar o nosso vocabulário”, diz a galerista Jaqueline Martins, que conversou com diversos profissionais como arquitetos e desenvolvedores para produzir a exposição online “Que vão que vem”. 

Em um país gigantesco como o Brasil, a versão online da feira também ajuda a superar a dificuldade geográfica de estar presente fisicamente no Pavilhão da Bienal em abril ou no Shopping JK Iguatemi para a SP-Foto, em agosto (o que para mim, assim como para muitos paulistanos, é um passeio anual quase obrigatório!). Vários estados do país têm pouquíssimas galerias de arte, porém têm um mercado potencial. Em 2014, a SP-Arte fez uma edição experimental em Brasília justamente com o intuito de expandir a cobertura desse mercado, o que significou o deslocamento de obras, equipes, e a contratação de uma logística local. Hoje, apenas seis anos depois, esse tipo de deslocamento por ocasião de megaeventos como as bienais e feiras de arte passou a ser questionado, já que implica um grande impacto ambiental. Essas estruturas demandam transporte de avião e de navio de obras, equipes e milhares de visitantes, além de gastos exorbitantes com seguro e montagem. Tem sido colocado em pauta, por exemplo, o fato de um trabalho que toque em assuntos relacionados a questões ambientais ser apresentado a quilômetros de distância de onde foi realizado em um evento que investe em estruturas totalmente descartáveis. O movimento para o online também força a consciência contra a agenda das galerias que participam de seis, sete, e ou oito feiras em um ano, numa dinâmica cansativa que ganhou o apelido de ‘fairtigue’ – a fadiga causada pelo deslocamento para participar do maior número possível de feiras internacionais.

Viewing Room da SP-Arte (Foto: Divulgação)

Viewing Room da SP-Arte (Foto: Divulgação)

No Brasil, a quarentena também significou um alerta para que as galerias façam mais alianças no lugar de prezar pelo ganho individual. A plataforma Transe une as galerias Fortes D’Aloia & Gabriel, Estação, Sé e Superfície a espaços e projetos como o Vênus e 01.01 Art Platform. Outro exemplo é o p.art.ilha, uma aliança entre galerias como a Aura, b_arco, Janaína Torres, Eduardo Fernandes, Mapa e Lume. Num cenário desesperador que impulsionou o fechamento de espaços como a Fortes, na Vila Madalena, em São Paulo, e da Luciana Caravello, no Rio de Janeiro, se faz necessário que essa consciência de compartilhamento e diálogo perpetue: a saúde do circuito é fundamental para a sobrevivência do mercado.  

O projeto Latitude, braço de internacionalização de galerias da Abact, vem propondo essa articulação já há algum tempo, e agora auxilia as galerias associadas na sua apresentação em feiras online. Na SP-Arte, a Abact participa pela primeira vez com um stand com obras de cerca de trinta das galerias associadas. Elas foram oferecidas pelas galerias (seus valores são 20% abaixo do mercado) e parte das vendas será doada para a Casa de Apoio Vida Divina. Diversas redes de apoio do tipo foram organizadas durante o Covid-19 – talvez, o Coronavírus tenha criado um novo público de compradores de arte: as pessoas engajadas em causas sociais. 

Outro público que está sendo criado é o de compradores jovens, cuja mentalidade é mais digital. Mas de acordo com a matéria de Scott Reyburn publicada na Folha de S. Paulo, os níveis de preço que eles investem são mais baixos do que os endinheirados já acostumados `as vendas tradicionais, que sustentam uma “indústria mundial que movimenta US$ 60 bilhões ao ano e que, segundo estimativas, envolve 310 mil empresas, que empregam cerca de 3 milhões de pessoas”, de acordo com um relatório publicado este ano pela Art Basel e pelo banco UBS. Na mesma matéria, o jornalista cita o Hiscox Online Art Trade Report cuja edição de 2019 constatou que 29% dos colecionadores entrevistados com idade inferior a 35 anos disseram preferir a experiência de comprar arte online. Em contraste, apenas 10% das pessoas com mais de 60 anos afirmaram preferir fazer aquisições de obras pela internet.

No projeto da Fortes D’Aloia & Gabriel para a SP-Arte, as fotos das obras foram tiradas em um apartamento no centro de São Paulo (Foto: Eduardo Ortega / Cortesia Fortes D’Aloia & Gabriel)

No projeto da Fortes D’Aloia & Gabriel para a SP-Arte, as fotos das obras foram tiradas
em um apartamento no centro de São Paulo (Foto: Eduardo Ortega / Cortesia Fortes D’Aloia & Gabriel)

Uma grande diferença da feira online é a transparência dos preços, já que as galerias devem escolher entre apresentar o valor exato das obras ou uma faixa de preço. “Isso é a grande porta de entrada para novas vendas. Muita gente tem vergonha de perguntar o preço das obras nas feiras. Acha que é caro demais para seu bolso, que poderia achar mais barato em outro lugar…no online, a pessoa não tem mais que perguntar. Ela pesquisa no tempo dela, compara valores, sabe o quanto quer gastar. É um dos maiores atrativos do online”, comenta Alexandre Gabriel, diretor da Galeria Fortes D’Aloia & Gabriel que, neste ano, já participou de quatro feiras online: a Art Basel Hong Kong, em março, a primeira a responder rapidamente ao lockdown e que teve um sucesso surpreendente (em uma semana, teve 250 mil visitantes que passearam por stands de 235 participantes e mais de 2 mil trabalhos que custavam entre 750 dólares e 3 milhões de dólares); a nova-iorquina Frieze, em maio; Not Cancelled Brazil, em junho; e a Art Basel, que comemoraria seus 50 anos de existência em uma edição festiva em Basel, na Suíça, porém foi forçada a fazer seu Viewing Room em junho. “O online pede storytelling, algo a mais do que simplesmente o artista explicando a sua obra. Nós criamos um pensamento curatorial, uma narrativa que conecta todas as obras. O cuidado que você tem com o espaço na feira física é levada para o online nesse projeto curatorial”. 

“Microcosmos 8 obra colar crochê bocas”, trabalho de Maria Nepomuceno e Antonio Bernardo para o projeto d’ A Gentil Carioca para a SP-Arte (Foto: Cortesia da artista e A Gentil Carioca)

“Microcosmos 8 obra colar crochê bocas”, trabalho de Maria Nepomuceno
e Antonio Bernardo para o projeto d’ A Gentil Carioca para a SP-Arte (Foto: Cortesia da artista e A Gentil Carioca)

O conceito de Viewing Room foi concebido pela David Zwirner Gallery, em 2017, e seguido pela Gagosian Gallery, em 2018 – duas das maiores galerias do mundo. Nesse modelo seguido pelas feiras online, as vendas não são realizadas como um e-commerce, já que o cliente negocia diretamente com a galeria. Com 136 participantes, o Viewing Room da SP-Arte tem a presença de galerias internacionais, mas irá valorizar principalmente o mercado nacional, em um momento de profunda crise sanitária, econômica, social e política. “A feira de arte cria um momento, cria o desejo”, conta Márcio Botner, diretor d’A Gentil Carioca, que criou um projeto específico para a Art Basel e outro para a SP-Arte dedicado aos amuletos (em tempos de pandemia, o que precisamos é proteção). “A SP-Arte tem vontade de valorizar o mercado brasileiro e nós precisamos disso. Ela cria expectativas: os colecionadores que conhecem o artista e querem ver a sua nova obra ou quais os novos artistas que estão despontando”, acrescenta. 

“Dar condições para os artistas se desenvolverem: é esse é o papel da galeria”, afirma Jaqueline Martins. Tomara que quem se beneficie com o movimento para o online sejam os artistas. Sem eles não há arte, muito menos mercado ou feiras. “É para eles que temos que olhar. A ida para o digital não é apenas pela sobrevivência das galerias, mas para oferecer suporte para o desenvolvimento dos seus trabalhos”.


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Julia Flamingo é jornalista de arte e fundadora do Bigorna, plataforma didática de arte contemporânea. Tem graduação em jornalismo pelo Mackenzie, e história pela PUC-SP. Vive em Lisboa, onde é mestranda em Culture Studies na Universidade Católica, e colabora com veículos do Brasil e Portugal. Trabalhou como repórter e crítica de exposições da revista Veja São Paulo entre 2015 e 2017.

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