Still de "O Ensaio" (2018), de Tamar Guimarães
Videoarte

Videoarte contra o poder!

Felipe Molitor
26 mar 2021, 11h24

Desde o momento em que o filme e o vídeo foram introduzidos nas artes visuais como uma linguagem possível de se explorar, as relações entre política e arte e a crítica aos sistemas de poder se intensificaram. Isso ocorreu tanto pelo contexto histórico dos anos 1960 e 70, quando a “categoria” videoarte emergiu com força, quanto pela versatilidade narrativa própria desse tipo de mídia. Não seria estranho afirmar, portanto, que há uma espécie de tradição política na videoarte brasileira, hoje em dia bastante explorada por artistas não necessariamente ligados apenas ao vídeo, mas também à performance.

Para quem quer se aprofundar um pouco mais nesse tipo de produção artística, a SP-Arte selecionou algumas obras de videoarte feitas por artistas brasileiros e disponíveis online, que ampliam as discussões sobre como a arte pode desvelar os mecanismos dos vários tipos de poder – militar, político, sexual ou religioso – e atuar como veículo e ação de transformação política. 

Acima: Still de "O Ensaio" (2018), de Tamar Guimarães

Still de Marca Registrada" (1975), de Letícia Parente

Still de Marca Registrada" (1975), de Letícia Parente

Letícia Parente
“Marca Registrada”, 1974
10’

“Marca Registrada” é uma das mais importantes obras de videoarte do Brasil, tendo circulado por diversas exposições e instituições mundo afora. Retomando uma antiga brincadeira de infância, a artista e cientista Letícia Parente mantém a lente enquadrada na sola do seu pé enquanto costura com linha e agulha sobre a própria pele a frase “made in Brasil”. A simplicidade da ação contrasta com a agonia causada pelo ato, sendo o desconforto um operador importante na poética da obra.

Parente coloca em xeque o lugar e a função do corpo na arte, utilizando a si mesma nas obras em vídeo como matéria de intervenção. A artista foi pioneira na videoarte nacional, participando ativamente das discussões em voga na sua época e deslocando o papel do corpo na obra e na fruição da arte. Produzido em plena ditadura civil-militar, “Marca Registrada” evoca não apenas a violência do regime como também questiona a quem pertence o corpo da mulher, se o corpo do cidadão pertence à nação, os limites do corpo enquanto obra, ou mesmo a transformação do corpo em pura mercadoria.

 

Still de "A Rebelião dos Animais" (1974), de Nelson Leirner

Still de "A Rebelião dos Animais" (1974), de Nelson Leirner

Nelson Leirner
“A Rebelião dos Animais”, 1974
15’

Temas como a sociedade de consumo e a violência de Estado são escrachados na obra “A Rebelião dos Animais”, vídeo produzido por Nelson Leirner em 1974. A obra mostra imagens de como são criados para alimentação humana animais como galinhas, porcos e vacas. Em seguida, em versão antropomórfica, esses animais realizam um banquete canibalesco se regozijando ao comer carne. Se a estética Super-8 nos remete hoje ao passado, a obra permanece atual em sua crueza alegórica para descrever certa amnésia social crônica que paira no Brasil.

O filme sucedeu uma exposição de nome homônimo no MASP, onde o artista realizou em 1969 uma primeira ocupação no vão do museu. Em “Banquete dos Animais”, Leirner expôs uma série de desenhos críticos ao regime civil-militar que lhe renderam um prêmio da APCA. No ano seguinte, em 1975, o artista era boicotado pela mesma associação de críticos. Para um provocador nato como Leirner, cutucar o sistema da arte era sempre um objetivo.

 

Still de "Le retour des sans-culottes" (2013-2016), de Guilherme Peters

Still de "Le retour des sans-culottes" (2013-2016), de Guilherme Peters

Guilherme Peters
“Le retour des sans-culottes”, 2013-2016
27’

Em junho de 2013, o Brasil assistiu a uma série de imensas manifestações pelo país que pediam por mais direitos e maior representação. Três anos depois, nossa primeira presidente mulher era deposta por um duvidoso processo de impeachment que rachou o país. Foi nesse período que o artista Guilherme Peters produziu a obra “Le retour des sans-culottes”, um curta satírico e bastante crítico ao momento político atual. O artista, que transita pela performance e o vídeo na maioria de suas produções, se apropriou de símbolos e representações dos Sans-cullote, grupo de guerrilha urbana formado no seio da Revolução Francesa (1789-1799).

Segundo o artista, “cada uma das alusões que o filme traça leva à um corpo estranho formado pelas matrizes europeias de ordenação dos saberes, olha para elas e as tenta reproduzir, mas não é dono delas. Na verdade, revolta-se com o quanto elas não lhe pertencem, ou pior, o quanto elas parecem incapazes de conter as próprias contradições frente à indigesta realidade do presente”.

 

Still de "O Ensaio" (2018), de Tamar Guimarães

Still de "O Ensaio" (2018), de Tamar Guimarães

Tamar Guimarães
“O Ensaio”, 2018
51’

Tamar Guimarães possivelmente é uma das mais relevantes videoartistas brasileiras em atividade. Suas obras partem de dados documentais e históricos, seja uma fotografia ou uma cidade, para o plano da ficção, misturando gêneros em diversas camadas narrativas e deixando entrever como as relações sociais se expressam na cultura através do tempo. Para isso, Guimarães costuma misturar atores com expoentes profissionais da arte e investigar a história de edifícios icônicos desse campo, embaralhando os papeis desses elementos na desconstrução de uma “história oficial”.

“O Ensaio” foi comissionado pela 33a Bienal de São Paulo, e tal como em trabalhos anteriores, a artista mobilizou o próprio edifício da Bienal e suas diversas equipes na construção e participação na obra. No enredo, Isa é uma artista negra que propõe como projeto para a instituição de arte uma adaptação da cena de velório do livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, clássico de Machado de Assis. Diversos “fantasmas” então se levantam: são eles antigos curadores e artistas da mostra, como os personificados por Ivo Mesquita e Suely Rolnik, e outros mais subjetivos a atrapalhar o dia de ensaio dos atores do velório.

 

Still de "Cine Brasil" (2012-2013), de Paulo Nazareth

Still de "Cine Brasil" (2012-2013), de Paulo Nazareth

Paulo Nazareth
“Cine Brasil”, 2012-2013
10’

Paulo Nazareth leva os limites da performance e do objeto de arte ao extremo, utilizando o vídeo como registro e reiteração de conceitos caros à sua poética. Andarilho que é, em sua obra mais conhecida, Nazareth saiu de sua Minas Gerais natal a pé até chegar à cidade de Miami, nos EUA, para a feira Art Basel em 2010. O caminho só de ida, no entanto, representa um retorno às suas raízes africanas e indígenas.

Em “Cine Brasil”, gravado em Belo Horizonte, assim como em outras obras audiovisuais de Nazareth, o artista dá voltas de costas em um ipê amarelo, remetendo ao ritual da Árvore do Esquecimento, no qual os homens eram obrigados a dar sete voltas para apagar a memória do passado antes de serem enviados como escravos para as Américas. Aqui, o mesmo gesto recuperado pelo artista serve para que não nos esqueçamos mais.

 


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Felipe Molitor é jornalista e crítico de arte, parte da equipe editorial da SP–Arte.

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