Editorial
Opinião
Uma arte que recusa
Renan Marcondes
29 jul 2020, 10h40
Em meados dos anos 1950, a ação passa ao centro dos debates sobre a arte. Na produção artística estadunidense, o termo “action painting”, cunhado pelo crítico Harold Rosenberg, marca o trabalho de uma série de artistas que passaram a fazer da tela menos um campo de representação do que uma “arena na qual se age”. Fortemente influenciado por esse vetor (e especialmente por Jackson Pollock) o artista Allan Kaprow torna-se um dos pioneiros do happening, prática popularizada nos anos 1960 ao expandir a noção de obra artística para incluir acontecimentos compartilhados entre artista e público, tornando ambos igualmente responsáveis pelo que ocorria. Ao mesmo tempo, o nosso país estava efetivamente se tornando moderno, como coloca Sonia Salzstein, e nas artes cênicas e visuais esse processo também foi marcado por um apelo à participação e à experimentação com o espaço da vida, impulsionada pela violência de nosso período ditatorial.
Cito aqui apenas alguns dos casos que fazem parte da narrativa habitual sobre a gênese da arte da performance, que por sua vez ganhou contornos próprios e se configurou como linguagem que resiste até os dias de hoje. Segundo o artista e curador Fernando Ribeiro, ela inova em relação a seus precursores à medida que “a ação assume o status de obra”. Agora em primeiro plano, a ação não é mais renegada ao espaço privado do ateliê e a um tempo passado em relação ao da experiência do público (o que leva Thierry de Duve a chamar a performance de arte do “aqui e agora”). Há, em grande parte do discurso sobre a performance, uma valorização dessa ação no tempo presente como mais eficaz e rompendo com o campo representacional (mal visto dado o potencial alienante da imagem). Não cabe aqui entrar nesse debate, mas sim reconhecer que a performance firma seu compromisso político através dessa recusa da mediação e do signo em favor do ato, como bem sintetizou o luso-brasileiro Antonio Manuel ao afirmar: “eu quero atuar, não representar!”.
Uma ação, porém, precisa ser eficaz. Espera-se que ela se conclua e produza algo no mundo (como algumas das principais teorias da performance sugerem, a ação performativa deve determinar uma mudança reconhecível no tecido social). Mas hoje, parece que a ação é tão demandada aos artistas a todo tempo que ela corre o risco de ser banalizada: não basta apenas produzir seu trabalho (independentemente de se a ação que o constitui ocorre no ateliê ou em presença do público), mas é preciso estar o tempo todo em ação e comprová-la: tornar públicas imagens de processo nas redes sociais, falar em talks, lives e palestras, comunicar-se com seus pares, posicionar-se para seu público em relação a todo acontecimento recente, manter sites e statements atualizados etc. Neste momento de pandemia, a demanda constante se intensifica ainda mais, pois artistas que não se colocam imediatamente em ação no campo virtual correm o risco de ficarem isolados e esquecidos.
Acima: Clarissa Sacchelli
Sem título [detalhe], 2011
Performer retratada: Maria Sideri
(Foto: Monika Kita. Cortesia da artista)
ROSENBERG, Harold. A tradição do novo. Tradução de: Cesar Tozzi. São Paulo: Perspectiva, 1974. pp. 12-13
SALZSTEIN, Sonia. Construção, desconstrução: o legado do neoconcretismo. Novos estud. – CEBRAP [online]. 2011, n.90 [citado 2020-07-21], pp.103-113. Disponível em: https://bit.ly/3jNSvdx. ISSN 0101-3300.
RIBEIRO, Fernando Cesar. Action painting, happening e performance art: da ação como fator significante à ação como obra nas artes visuais. Visualidades, v. 8, n. 2, 2010. p. 135.
DE DUVE, Thierry. Performance here and now: Minimal art, a plea for a new genre of theatre. Open Letter, v. 5, p. 5-6, 1983.
MANUEL, Antonio. I Want to Act, Not Represent. New York: Americas Society.
Sinto que o momento em que vivemos não é apenas de intensificação massiva dos vetores de produção artística (dado positivo e urgente por conta da pluralidade de produções, abarcando os mais diversos contextos e cenários), mas da sua submissão ao tecido mercadológico e autopromocional da rede social – que, apesar dos diversos nomes, é uma só empresa. A impressão de que vivemos uma suspensão dos modos usuais de produção por estarmos em casa acaba por colaborar com uma maior e mais intensa internalização do produtivismo em todos os aspectos da vida. Como afirma Achille Mbembe, os sujeitos neoliberais são marcados pela “capacidade de reconstruir publicamente sua vida íntima e de oferecê-la no mercado como uma mercadoria passível de troca”. Ou seja, a questão não é mais a possibilidade de que qualquer campo da vida faça parte do campo da arte, mas sim que a obrigação de que cada campo da vida faça parte do campo da arte. Nós, artistas, precisamos nos provar produtivos e ativos já nas primeiras semanas de uma nova situação de vida, criando rapidamente obras para editais emergenciais e/ou impulsionando nossas imagens em feeds, lives e stories. É falsa a sensação de que estamos parados.
Já hoje, quatro meses após aquela interrupção generalizada percebida no meio de março (e que gerou tantas rápidas considerações teóricas sobre como poderíamos sair diferentes dela, reinventando-nos enquanto sociedade), o Brasil parece retomar atividades como se nada tivesse se passado, enquanto os artistas seguem presos em casa, produzindo mais que nunca, de forma ainda mais precarizada que antes e obrigados a submeter seu busto a inúmeras salas de conferência virtual. Se estamos em ação o tempo inteiro, talvez um passo importante para a arte da performance neste momento seja uma recusa, retração ou suspensão da integração a esse mesmo tecido de ação 24 horas por dia, 7 dias da semana.
Nesse sentido, penso que pode ser um caminho pensarmos a performance menos como uma arte da ação e mais como arte do gesto. Walter Benjamin já assinalou essa diferença nos anos 1920 para pensar como o teatro de Bertolt Brecht promove, no gesto, a interrupção da ação. Para o filósofo, é só ao interromper o protagonista que age que se descobre as condições históricas e sociais de cada situação, escondidas no fluxo dos acontecimentos. Ou seja, quanto menos se age no entorno, mais se reconhece ele.
Também Agamben busca, a partir de Benjamin, diferenciar ação e gesto. Para ele, nosso entendimento de ação como algo intencional e finalizável integra um dispositivo do qual também fazem parte a causa e a culpa. É pela relação dessa tríade que tudo o que fazemos se inscreve em um sistema jurídico que nos torna inteiramente responsáveis pelas nossas próprias ações e, portanto, passíveis de nos tornarmos culpados. Parece ser nesse sentido que Fernando Ribeiro propõe que é no corpo do artista da performance e no seu “poder como agente que repousa a deliberação de qual ação tomar, ou mesmo não tomar”. O artista da performance, por ser um/a artista da ação, seria consciente de suas ações e responsável pelos possíveis fins que ela deveria ter.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
Op. Cit.
Por outro lado, se uma ação precisa ser eficaz e intencional, o gesto é ausente de finalidades. Quando Bartelby diz que prefere não trabalhar, realiza um gesto. Quando Macunaíma responde com ai que preguiça! a todo estimulo de atividade que não seja o sexo, realiza um gesto. Quando o homem fica parado diante de um tanque de guerra segurando sacolas de compras no ano de 1989 em Beijing, realiza um gesto. Quando o coreógrafo Trajal Harrel põe seus performers para dormir no museu e cuida deles nesse estado de passividade, realiza um gesto. São atividades marcadas não tanto por sua finalidade ou sucesso, mas por seu potencial de interrupção e suspensão do funcionamento diário das coisas. É claro que situar cada um desses casos dentro ou fora da linguagem da performance é outro debate. Mas penso que eles indicam que podemos inclusive reler sua história pela perspectiva do gesto, compreendendo a/o performer não tanto como quem age, mas como quem cria uma situação que expõe os modos usuais de ação. Quando Yoko Ono deixa, imóvel, sua roupa ser cortada pelo seu publico, penso que é um gesto que está em jogo e que faz revelar uma ação que não é dela, mas sim do público (esse talvez deva ser culpabilizado). Quando Flavio de Carvalho anda ao contrário na procissão, importa menos a ação do que o potencial revelador do gesto (que inclusive pode se dar só em nível narrativo, como tantas performances de Yoko Ono e do Fluxus também sugeriram). Quando Pope L. se arrasta pelas ruas até ser enquadrado por policiais, é claro que não importa onde ele chegará ou qual o destino de seu arrastar, mas sim a violência própria ao espaço público.
E se, nesse sentido, arriscássemos afirmar que o artista da performance é o propositor de um gesto que expõe determinada situação? Menos um agente, ele é um revelador. E o que é mais curioso nessa perspectiva é que tal revelação, às vezes, demanda dos corpos passividade e repouso. O poder da ação é substituído pela vulnerabilidade da objetificação e do aceite de quem simplesmente permanece ou recusa. Nesse caminho, talvez a arte da performance possa ser justamente aquela que se recusa a integrar o tecido produtivista a qual todo o campo artístico foi submetido, fazendo da própria negação de estar presente seu gesto performático. Para isso, é preciso uma guinada contra a própria história da performance. Quer dizer, contra aquela história que nos contaram…
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