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Artigo

Um Sertão Negro no meio de Goiás

Jordana Barbosa
2 ago 2022, 15h06

Não quero que esse nome, Dalton Paula, fique em foco, mas sim o coletivo, é a ideia desse quilombo, do terreiro.
– Dalton Paula

Em um dia típico em Goiás, sol arrebentando mamona – como se diz por aqui –, com umidade do ar abaixo de 20% chego caminhando pelas ruas do Setor Shangri-lá. As ruas largas fazem contraste com os vários bosques pelo bairro. Paro em frente ao portão azul do Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes com um cacto enorme em cima das duas colunas de sustentação do portão. Um homem jovem, Rafael Vaz, me atende da janela da casa e sorrindo pergunta se eu não sabia a senha para entrar. É esse o clima que encontro lá dentro, como se todos, até os desconhecidos, fossem companheiros de longa data.

Sertão Negro. Foto de Paulo Rezende.

Sertão Negro. Foto de Paulo Rezende.

A casa-escola-ateliê é dentro de um bosque. A direita da garagem tem um viveiro de plantas medicinais e frutíferas, uma das paixões de Dalton. Alguns passos à frente já estamos no quintal, ele tem um espaço pequeno aberto que sempre é utilizado para os almoços e lanches coletivos, o restante do caminho é feito entre árvores finas e altas. Atrás da casa há duas fontes de água com cascata e peixes, lugar que os passarinhos vêm para se refrescar durante o dia e onde é possível ouvir, sem parar, o canto dos pássaros. Do portão, olhando para o bosque que segue a frente várias bandeirolas estão amarradas às árvores indicando que uma festa junina aconteceu recentemente.  

A casa começa em paralelo ao canteiro, da rua é possível ver pelas janelas, que parecem duas portas, a estante que toca o teto carregada de livros. A entrada é pela cozinha pequena, mas sempre com pessoas, café e chá circulando por lá. À esquerda está o ateliê, à direita a saída para a choupana e, logo à frente, uma escada que dá acesso ao lar de Dalton e Ceiça no primeiro andar. 

O ateliê está carregado de obras de artes, todos os residentes têm um pedacinho da sua história ali, seja em argila, tecidos, pinturas, telas, desenhos, pirografia. Estante com livros e diversos tipos de materiais, mesas com desenhos e esculturas, cavaletes com telas em processo de pintura, paredes com quadros finalizados. Grande parte dos quadros que estavam em finalização fazem agora parte da exposição Retratos brasileiros, no Masp, obras do artista Dalton Paula sobre pessoas negras brasileiras esquecidas pela história.

Dalton Paula (Brasília, Brasil, 1982), "Manuel Congo", 2022. Folha de ouro e óleo sobre tela, 61 x 45 cm. Doação do artista ao acervo MASP, 2022. Foto de Paulo Rezende. Crédito: Divulgação MASP.
Dalton Paula (Brasília, Brasil, 1982), "Maria Firmina dos Reis", 2022. Folha de ouro e óleo sobre tela, 61 x 45 cm. Foto de Paulo Rezende.

Dalton Paula (Brasília, Brasil, 1982), "Manuel Congo", 2022. Folha de ouro e óleo sobre tela, 61 x 45 cm. Doação do artista ao acervo MASP, 2022. Foto de Paulo Rezende. Crédito: Divulgação MASP.

Dalton Paula (Brasília, Brasil, 1982), "Maria Firmina dos Reis", 2022. Folha de ouro e óleo sobre tela, 61 x 45 cm. Foto de Paulo Rezende.

Às sextas-feiras, a partir das 14 horas, a entrada da choupana fica cheia de mesas com pessoas trabalhando a argila com a orientação de Anahy Jorge. Os alunos modelam búzios e ferramentas de Orixás enquanto têm conversas tranquilas e cheias de risadas. Existe um tópico em pauta nas conversas que é o prêmio que Lucélia Maciel, a primeira estagiária de Dalton, tinha recebido na noite anterior. Suas obras foram premiadas no Salão Nacional de Arte Contemporânea de Goiás e passa a integrar o acervo do Museu de Artes Plásticas (Mapa) na cidade de Anápolis. 

A choupana é uma edificação redonda, conectada a casa, sem paredes e com teto de palha, é o local do Cine Maria Grampinho coordenado por Ceiça Ferreira e das aulas de capoeira com Carlos Alberto Martins, o Mestre Guaraná. Essa edificação foi pensada por Dalton em conjunto com Mestre Guaraná fazendo referência a circularidade ancestral e ao próprio jogo da capoeira.  

Ao final da aula de cerâmica, as mesas são retiradas e colocadas ao lado do canteiro, um lanche coletivo é servido e lá se vão mais 40 minutos de conversas, planejamentos e reflexões, como por exemplo, como Genor Sales utiliza a música para construir seus desenhos. Lucélia, Dalton, Rafael e Ceiça e vários outros alunos de Anahy vestem suas roupas de capoeira e se preparam para a próxima atividade. 

A última atividade do dia é uma roda de capoeira comandada por Mestre Guaraná. O capoeirista prepara a choupana para receber seus alunos, estica a corda dos berimbaus, testa o pandeiro, sente o couro do atabaque, ensaia umas músicas enquanto seus alunos chegam em roupas brancas e vão enchendo o círculo. A capoeira é uma brincadeira, um jogo, é riso, é música, é dança, é perigo. O corpo na capoeira é arma, a palavra na capoeira é ensinamento. A capoeira é coletividade, é conquista da comunidade. Mestre Guaraná encerra sua aula dizendo “jogo é troca, é perto que se cria tempo e espaço; jogo é comunicação, provocação e honra”. E ele logo puxa em seu berimbau: “sela meu cavalo/que eu já me vou embora…” a aula acaba, as conversas e os sorrisos continuam numa mesa de bar logo ali. 

Foto de Paulo Rezende

Foto de Paulo Rezende

O quilombo-escola

Caminhos, terreiro, senhoridade, ancestralidade, orixá, natureza, micropolítica, comunidade artística, Beatriz Nascimento, acolhimento, disposição. Essas foram as palavras que escutei quando perguntei sobre o que era o Sertão Negro, uma miscelânea de conceitos que explicam uma ideia maior: o quilombo. Não é apenas a casa que Dalton e Ceiça moram, também não é apenas o ateliê onde Dalton e vários artistas trabalham e não é apenas uma escola de artes que residentes estudam. 

É um lugar sem fronteiras ou limites, um lugar criado para ser uma comunidade artística onde todos bebem e dão de beber. As trocas acontecem cotidianamente, Lucélia auxilia Dalton que faz aulas com Mestre Guaraná que faz aulas com Anahy que dança ao som da discotecagem de Genor nas noites especiais. É importante dizer que Dalton exige que todos os artistas estudem e pesquisem antes de iniciar os trabalhos, não apenas a teoria, mas as várias artes que se influenciam, se conectam e se modificam.  

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Dalton, durante a entrevista, insistiu várias vezes que o Sertão Negro não é sobre ele, mas sim sobre as várias pessoas que formam essa comunidade e todos os residentes insistem em dizer, sem pergunta alguma, que encontraram um quilombo que ao mesmo tempo acolhe e expande as fronteiras das possibilidades artísticas. “Não quero que esse nome, Dalton Paula, fique em foco, mas sim o coletivo. É a ideia desse quilombo, do terreiro. Os anéis ficam todos lá na porta e só entra esse indivíduo que tem esse tempo da convivência, das coisas sendo permitidas. A ideia é pegar essa sabedoria ancestral e levar para a arte contemporânea”. Não por acaso, só nos meses de maio e abril deste ano, cinco dos oito residentes foram selecionados para exposições, residências ou premiados. Dalton está ali para ensinar como voar e eles estão alçando voos juntos. 

Existe uma tríplice relação que orienta essa comunidade artística, a relação com o sagrado, a arte e o Sertão Negro. Cada artista vai formar o quarto pilar dessa relação, cada um a sua forma, deixando sua marca. Dalton afirma que o quilombo “se propõe a representar novos caminhos, novas possibilidades pautadas na referência de matriz africana. Algo que vem dos fundamentos dos terreiros, do quilombo, do respeito ao mais velho, de cultuar os elementos da natureza, onde tudo é sagrado. Não poderia ser diferente no sentido de compartilhar com os outros artistas, é uma micropolítica de influenciar o local onde a gente mora”.

Foto de Paulo Rezende

Foto de Paulo Rezende

Esse lugar é também lugar de cuidar da ancestralidade, de se conectar com a terra, enxergar a interligação da natureza com a arte, com a capoeira, com o corpo. Nada está separado e isolado no mundo. É local de aprendizado, nenhuma linha é desenhada sem leitura. O Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes é formado por Dalton Paula, o artista a frente do projeto, Ceiça Ferreira, responsável pelo Cine Clube Maria Grampinho; Mestre Guaraná, mestre de capoeira; Genor Sales, artista residente; Anahy Jorge, professora de cerâmica; Okúm, estagiária; Rafael Vaz, artista residente; Lucélia Maciel, assistente de arte; Manuela Costa Silva, artista residente; Debora Taiane, artista residente.


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Jordana Barbosa é doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas, mestra em Antropologia Social e bacharela em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás. Pesquisadora do Laboratório Antropológico de Grafia e Imagem (La’grima) e fundadora do clube de leitura Clube das Pretas. Pesquisa tradição oral africana na diáspora, feminismos e movimentos de mulheres negras, movimentos diaspóricos e literatura em conexão com a vida do povo negro.

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