Ingá (PB), Elaine Eiger
Opinião

Transformações do art déco sertanejo

Jose Marconi Bezerra de Souza
23 jul 2021, 14h14

A palavra “sertão” vem do português colonial desertão, ou grande deserto. Lugar distante, longe da civilização e oposto ao litoral. O sertão é a maior região fisiográfica do Nordeste, famosa por sua cultura tradicional, sua devoção religiosa, pelo clima semiárido e pela vegetação única no mundo, a caatinga. Em termos da linguagem arquitetônica, as fachadas populares fotografadas neste livro se relacionam diretamente com a geometria do estilo art déco internacional, inspirado nos templos mesopotâmicos (zigurates), nos relevos egípcios, nas construções de civilizações da América pré-colombiana, no classicismo greco-romano (e, posteriormente, no ecletismo), nas curvas do aerodinamismo norte-americano dos novos veículos e em elementos da arte moderna como o abstracionismo, o cubismo e o futurismo.

Em 1982, quando o termo art déco sertanejo foi usado pela primeira vez pela designer e professora Lia Monica Rossi (1945-2018), o entendimento de que os geometrismos subjacentes nas platibandas nordestinas representavam uma nova expressão do estilo era apenas uma hipótese, sem nenhuma base teórica. Este art déco nordestino, ao contrário das superfícies brilhantes e ricos materiais do art déco norte-americano e europeu, exprimia uma manifestação popular feita de simples alvenaria pintada com cal e o pigmento conhecido como pó Xadrez. Em outras palavras, tratava-se de fachadas “modernas” que escondiam os velhos telhados com inventividade e beleza. Um interessante dialeto arquitetônico que foi percebido pelo olhar sensível e atento da designer, e apresentado naquele ano para a comunidade acadêmica durante o Encontro do Curso de Design da Universidade Federal da Paraíba (atual Universidade Federal de Campina Grande). Dois anos depois, o artigo foi apresentado também em um encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

Acima: Ingá (PB), Elaine Eiger

“Um estudo de caso”. 1a Semana de Desenho Industrial da Paraíba, Museu de Arte Assis Chateaubriand. Campina Grande: junho de 1982.

Art déco sertanejo: manifestações arquitetônicas e decorativas nordestinas”. São Paulo: Seção 08-A.2. Resumos, 36a Reunião Anual SBPC, USP, 1984.

Belo Jardim (PE), Elaine Eiger

Belo Jardim (PE), Elaine Eiger

Lagoa de Cima (BA), Elaine Eiger

Lagoa de Cima (BA), Elaine Eiger

Da descoberta do estilo à divulgação acadêmica

Em seu artigo pioneiro, Lia Monica Rossi perguntava-se: o que são essas casinhas de fachadas geométricas? Quais são as semelhanças dessas fachadas com o art déco internacional?

Não havia respostas: a bibliografia sobre o assunto era inexistente, assim como qualquer menção ao fenômeno por parte dos arquitetos. Pouco depois surgiram ensaios fotográficos, como o de Monica Szilard (Grafismo popular, 1986) e o belíssimo livro de Anna Mariani, Pinturas e platibandas (1987).4 O tema só seria retomado, porém, em um artigo assinado por Rossi e publicado em 1994 na revista Design e Interiores.

O art déco sertanejo era fonte de inspiração para os estudantes de design que se formavam em Campina Grande, Paraíba, o autor incluso (turma de 1985). Ironicamente, foram alguns professores egressos do “Sul Maravilha” — que em 1978 participaram da inauguração de um dos primeiros cursos de design numa cidade do interior nordestino —, que estimularam os estudantes a conhecer e valorizar as riquezas de seu entorno e, como na canção de Arnaldo Antunes, perceber que “riquezas são diferenças”. Por meio da apreciação desse art déco endógeno passou-se a compreender o significado da frase de Leon Tolstói: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.

Apesar do fascínio que as culturas do sul brasileiro, europeia e norte-americana exercem sobre os moradores locais, tinha início a busca da construção de uma identidade própria e da superação do “complexo de vira-latas”, não raro alimentado pela aprendizagem da profissão a partir exclusivamente de cânones internacionais.

Arquitetura Revista. Rio de Janeiro: FAU/UFRJ, n. 4, 2o sem/1986, pp. 30-33.

São Paulo: IMS, 2010.

Art déco sertanejo”. Design e Interiores. São Paulo: no 41, ano 7, maio/junho de 1994, pp. 88-91.

Piaçabuçu (AL), Elaine Eiger

Piaçabuçu (AL), Elaine Eiger

Da revelação para o povo à revitalização urbana de campina grande — o estilo “art-de-cores”

A partir de 1993, em parceria direta com Lia Monica Rossi, passei a dedicar-me à pesquisa das manifestações art déco de Campina Grande. Nessas pesquisas, logramos encontrar os projetos originais das fachadas da cidade no Arquivo Municipal da cidade. Foi emocionante descobrir as datas de construção e seus autores. A mídia local apoiou a divulgação da importância da preservação deste patrimônio. Em 1999, a prefeitura iniciou o projeto de recuperação das fachadas com os procedimentos necessários à revitalização da rua Maciel Pinheiro como primeira fase do Projeto Campina Déco, que constituiu na definição de abrangência, em leis de isenção fiscal e preservação estilística, licitação para obras de infraestrutura de redes — como retirada de fiação aérea e postes de concreto, projetos elétrico, hidráulico, telefônico, de pavimentação e calçadas —, retirada de todos os revestimentos das fachadas — como coberturas metálicas Luxalon — e posterior análise das marquises pela Defesa Civil.

O projeto constou de finalização da pesquisa de projetos originais, documentação e digitalização das fachadas, classificação dos prédios por área — preservação, tutela e tombamento —, prospecção das cores originais, criação da cartela geral de cores, criação de fichas dos imóveis (abrangendo projeto original, levantamento fotográfico, características estilísticas, mapeamento de danos, lacunas e projeto cromático), normas para letreiros e iluminação, proposta de placas de identificação histórica dos prédios, entre outras medidas.

A oportunidade de colorir o centro da cidade, já livre de suas coberturas, aliada à tradição dos bairros de pintar as casas para as festividades de São João, transformou o art déco campinense numa real art-de-cores, como o estilo foi rebatizado popularmente.

Xique-Xique (BA), Elaine Eiger
Irecê (BA), Elaine Eiger

Xique-Xique (BA), Elaine Eiger

Irecê (BA), Elaine Eiger

Missão Velha (CE), Elaine Eiger

Missão Velha (CE), Elaine Eiger

Por uma descrição sistemática do estilo

Depois de 2015, o estudo prosseguiu através de uma série de artigos em que se apresentou um método de análise formal que ajudaria a descrever e entender a lógica por trás da criatividade dos construtores e criadores do estilo. De caráter indutivo, essa proposta classificatória buscou mapear uma parcela significativa das possibilidades de composições geométricas, bem como se propôs a apoiar o processo criativo na geração de novos produtos coerentes com o estilo.

O método consistiu no estudo de composições e elementos decorativos de aproximadamente mil fachadas, localizadas em dezenas de cidades nordestinas, e registradas ao longo dos anos. Essas composições foram analisadas sintaticamente, isto é, observando-se a maneira como os elementos se relacionavam entre si. Essa análise foi sustentada no campo da percepção pela teoria da Gestalt e, no campo da geometria, pelas leis da simetria. Foram encontradas então quatro categorias de análise: a superfície onde ocorrem as composições, os elementos dessas composições, os arranjos de elementos iguais entre si e os agrupamentos perceptuais dos elementos.

Ver também José Marconi Bezerra de Souza e Lia Monica Rossi, “Art déco sertanejo: proposta de análise morfológica e sintática de elementos geométricos de fachadas populares nordestinas”. Em Solange G. Coutinho, Monica Moura, Silvio Barreto Campello, Renata A. Cadena e Swanne Almeida (orgs.), Proceedings of the 6th Information Design International Conference, 5th InfoDesign, 6th CONGIC. São Paulo: Blucher, 2014.

Barra (BA), Elaine Eiger

Barra (BA), Elaine Eiger

Ingá (PB), Elaine Eiger

Ingá (PB), Elaine Eiger

Os detalhes do estilo em uma pequena cidade do interior — ingá — e a identificação de mudanças

Em 2010, a pesquisa se estendeu às ocorrências do estilo na cidade de Ingá, localizada a 40 quilômetros de Campina Grande. Para isso, foi feito um levantamento fotográfico com mais de quinhentos registros. A pesquisa resultou num folheto que mapeia, ilustra e descreve o art déco sertanejo na pequena cidade e suas cercanias. Cidade esta que, aliás, mereceu especial atenção de Anna Mariani, contando com o maior número de entradas em seu livro seminal.

Durante a pesquisa constatou-se que algumas das fachadas tradicionais haviam sido recobertas de azulejos e pastilhas em cores, formando arranjos por vezes criativos. Quando questionados, os moradores justificaram as alterações pela economia de gastos: apesar do investimento inicial relativamente alto, não haveria necessidade de pintar as fachadas anualmente. Além disso, a manutenção dos novos acabamentos é mais fácil. Embora tendo alterado o patrimônio art déco local, os habitantes demonstraram mais uma vez seu gosto pela geometria, pois o revestimento modular foi cuidadosamente arranjado para respeitar a estrutura formal subjacente. Em outras palavras, as linhas do estilo permaneceram. Também se constatou que o uso de material de acabamento mais dispendioso e sofisticado poderia ser decorrência do crescimento econômico proporcionado por políticas públicas do governo federal nos anos Lula (2003–2010). Hoje, vendo as belas fotos de Elaine Eiger, encontramos o registro dessa nova transformação do estilo.

ROSSI, Lia Monica, “Art déco sertanejo e uma revitalização possível: programa Campina Grande Déco”. Em Revista UFG. Goiânia: v. 12, n. 8, 2010. pp. 28-34.

Ingá (PB), Elaine Eiger

Ingá (PB), Elaine Eiger

O conjunto de fotos reunido neste livro mostra que o art déco sertanejo é resistente, rico e adaptável às transformações impostas ou permitidas pelas políticas sociais, pelo desenvolvimento tecnológico de materiais e pela pujante criatividade do construtor popular. Este livro registra, assim, um novo momento de mudança, no qual percebemos que as originais fachadas de argamassa pintadas com cal pigmentado com tons pastéis, depois pintadas em tons saturados de tinta lavável são agora revestidas por materiais como azulejos e pedras.

É reconfortante perceber que, apesar das transformações do tempo e da sociedade, o encantamento do casario perdura. Mais uma vez um olhar “estrangeiro”, vindo de fora dos limites do sertão, capta a riqueza que Fernando Pessoa descreveu quando cantou o “rio da minha aldeia” — aquele que, por sua verdade e simplicidade, é mais belo que seus congêneres mais célebres e pujantes.

Esse texto, publicado com exclusividade pela SP–Arte, faz parte do livro “Brasil de Dentro”, coletânea de fotografias organizada por Elaine Eiger recém-lançada pela Editora BEI.


autor-josémarconibezerradesouza

Jose Marconi Bezerra de Souza é professor de design da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Pesquisador (2008-2011) no Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em Design da Informação pela Universidade de Reading, na Inglaterra, mestre em Industrial Design pela Birmingham City University e bacharel em Desenho Industrial pela Universidade Federal da Paraíba. Ilustrador, é um dos fundadores do coletivo Croquis Urbanos Curitiba.

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