Editorial
O editor e curador Leonardo Araujo Beserra escreve sobre "The Gallerist, the Letter and the Garden", exposição de Charbel-joseph Boutros na Galeria Jaqueline Martins
18 fev 2019, 11h18
por Leonardo Araujo Beserra
No último sábado, o artista libanês Charbel-joseph H. Boutros inaugurou sua última exposição individual “The Gallerist, the Letter and the Garden”, na Galeria Jaqueline Martins, com um conjunto de onze trabalhos inéditos. Há quatro anos atrás Boutros realizava, entre os meses de maio e junho de 2015, “Distant Waters”, sua primeira individual na galeria brasileira.
Entre as duas apresentações, não somente é possível encontrar semelhanças de raciocínio simbólico, como também uma possível metodologia de relações conceituais existente no processo de formalização do artista.
De supetão, nas primeiras horas da abertura da exposição, o público foi recebido por uma mesa e algumas ferramentas com um homem realizando um trabalho manual, quase artesanal, no corredor de entrada da galeria. Para quem chegava sem conhecer o artista ou mesmo o projeto de sua exposição, foi comum acreditar que estavam finalizando a montagem, uma vez que a cena se desenrolava do lado de fora da sala expositiva no térreo do prédio da galeria.
Não era o caso. Como um espetáculo invisível e silencioso, com pouquíssimo espaço e nenhum convite a ser assistido, o trabalhador gravava uma placa de mármore com o nome Gastão, em uma tipografia similar às lápides de cemitérios europeus. A peça foi colocada pelo trabalhador no primeiro plano de entrada da exposição. E a primeira matéria vista por quem adentra o espaço é a retangular placa de mármore com o nome daquele que foi seu primeiro visitante.
O trabalho se chama “The Exhibition Between Us”. Nele, prevê-se que, em outra placa de mármore, se grave o primeiro nome do último visitante da exposição. A segunda peça se encontra localizada no que seria o final do percurso expositivo, em que o público poderia acessar o jardim externo da parte de trás da galeria. Este percurso se encontra limitado por outro trabalho, que acompanha geograficamente todo o espaço: a passarela branca suspensa “Catwalk”, em que a “lápide” se apoia.
O artista anotou a lápis, em inglês, algo próximo à “apenas a equipe da galeria”, sinalizando que os trabalhadores do espaço seriam os únicos permitidos a subir e andar na passarela, aptos a usufruir da perspectiva elevada e sublevação expográfica que o trabalho oferta. A situação criada pelo título, pela legenda e pela forma dominante de “Catwalk” no espaço impõe um limite. A equipe da galeria também, com isso, é convidada a não descer da passarela, podendo acessar a exposição exclusivamente por meio dela.
Há algo que acontece entre estes dois trabalhos do artista, certa performatividade que se sente entre duas qualidades do próprio trabalhar. Não é simples compreender se Boutros alastra uma negativa sobre esta imaginação do público ou se apenas deflagra as estruturas do mundo do trabalho. Mas é certo que nos dois casos existem delimitações tanto literárias quanto físicas. O peso do mármore gravado com o nome do sujeito, do público, e a elevação dos referenciais que tornam suas ideias possíveis, a galeria, conversam simbolicamente por meio de suas representações no campo social, tensionados nas relações conceituais que ambos trabalhadores exercem enquanto sujeitos também do fazer artístico de Charbel.
Em “I Stood in the Middle of the Strait of Gibraltar and Dropped My Left Tear in the Atlantic Ocean and My Right Tear in the Mediterranean Sea” (2016-19), trabalho apresentado na atual exposição, Charbel deixa claro que a imaginação invocada pela performatividade que se dá entre o título e o objeto de suas criações é um dos raciocínios requeridos ao público em sua produção. Como se, por meio de processos narrativos estritamente literários, ele estivesse imputando um imaginar social corporal.
Trata-se de duas caixas de madeira em formato de paralelepípedo pintadas de cinza escuro, suspensas por uma estrutura simples de ferro. Na legenda do trabalho encontra-se: “o recipiente esquerdo contém água do Oceano Atlântico misturada com uma gota de lágrima do olho esquerdo do artista e o recipiente direito contém água do Mar Mediterrâneo misturada com uma gota de lágrima do olho direito do artista”. Porém, na perspectiva do espectador, dependendo de sua localização no espaço expositivo, não é possível reconhecer fielmente qual seria o caixão esquerdo ou direito. Caixão mesmo. Eles se propõem como dois em um, ou as duas direções ao mesmo tempo, quase como se fossem um casal que possa ter falecido abraçado, em simbiose.
A similaridade com a morte não parece ser algo impensado, ao contrário, toda lágrima contém algo de falência, até mesmo aquelas provenientes de momentos felizes, nostálgicos e ligeiros. Talvez uma pergunta poderia ser feita em uma entrevista: Charbel, o que lhe fez chorar sob o Estreito de Gibraltar?
Do mesmo modo, a estrita relação entre “Life Variation #2” e “The Soil of Modernity” inverte a literatura do falecimento à fertilização, ao engendramento próprio da natureza. Em “Life Variation #2”, cerca de três sementes de melancia repousam em um covil côncavo realizado com peso da própria fruta de onde saíram. O buraco, produzido na superfície de uma das laterais de mais um paralelepípedo da exposição, dessa vez formado por concreto maciço, resguarda a sobrevivência de um possível renascimento. Já em “The Soil of Modernity” – em que repousam sobre um dos carpetes da exposição um armário metálico, com terra vermelha retirada do solo de Brasília em suas prateleiras, uma estrutura de metal que apoia uma foto de uma mata caída e um projetor, debaixo do “tapete”, que imprime um texto sensível em luz branca na parede – o solo da capital do país onde a exposição ocorre irá ser novamente transportado logo que a exposição encerrar, mas para o jardim do pai do artista nas montanhas do Líbano, deixado à família após seu falecimento.
Assim, com estas ligeiras descrições, se torna possível empreender mais uma vez, em meio às relações conceituais e simbólicas do projeto expositivo de Boutros, um imaginar social performativo. Não seria demais acreditar que as sementes de “Life Variation #2”, caso sobrevivam até o fim da exposição, sejam plantadas com a terra de Brasília de “The Soil of Modernity” no jardim legado pelo pai nos montes libaneses. Há, no sentido em que se dirige estas linhas, certo modo de explicitar o “falecimento” do projeto modernista da sociedade ocidental com seu usufruto material no “nascimento” de uma tradição inerente à terra, ou melhor, à natureza, que o artista sensivelmente articula entre seu contexto de origem e seu trabalho de passagem.
Certo seria dizer, que o sujeito que há quatro anos aparentava se preocupar com sua qualidade alhures de viajante, no trânsito entre mares, distante de seu contexto de origem (Monte Líbano), como sugere o título da exposição “Distant Waters”, agora se apropria de sua própria “dor” ou “alegria” para se afirmar algures, não mais em qualquer lugar, mas em algum que ainda não se está completamente, mas já lá se encontra.
“The Gallerist, the Letter and the Garden”
Até 16 de março
Galeria Jaqueline Martins, Vila Buarque
Terça a sexta, das 10h às 19h
Sábado, das 12h às 17h
sobre o autor
Leonardo Araujo Beserra é escritor, curador, pesquisador independente e editor da Glac Edições Textólatras. Graduou-se em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes e cursou Filosofia pela Unifesp. Pesquisou e escreveu junto do “Grupo de Estudos Práticos em Linguagem Experimental”, curou exposições individuais e coletiva em instituições públicas, galerias e espaços independentes e atualmente desenvolve o programa de seminários “Cidadãos, Voltem Pra Casa!”. Pela Glac editou o livro “Claire Fontaine: em vista de uma prática ready-made”, e outros. Pesquisa escrita conceitual em consonância com práticas literárias de políticas invisíveis nas artes visuais e na ciência política.
*Este texto faz parte de uma série de reviews publicadas no site da SP-Arte. As opiniões veiculadas nos artigos de autores convidados não refletem necessariamente a opinião da instituição.
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