Editorial
Bianca Leite, especialista que irá ministrar visitas guiadas na 15a edição da SP-Arte, escreve sobre o repertório estético afro-brasileiro de Dalton Paula
2 abr 2019, 17h43
por Bianca Leite
Dalton Paula é um artista visual de múltiplos recursos expressivos. Sua produção transita poeticamente pelas rotas da pintura, objeto, fotografia e vídeo. Cada vez mais sua produção vem ganhando visibilidade no cenário das artes visuais contemporâneas no contexto nacional e internacional.
A produção de Dalton Paula traz uma expressiva plasticidade-visual que conforma toda uma contundência de reflexões éticas e poéticas no contexto da temática afro-brasileira. O artista tem se destacado como um dos artistas afrodescendentes de grande proeminência da atualidade.
Debruçar-se sobre a poética inscrita na produção de Dalton é percorrer rotas do repertório estético cultural afro-brasileiro numa perspectiva de reescrita estético-visual e de revisão da história do Brasil, tendo a experiência da população negra como centro de reflexão de sua criação artística.
Em “Rota do tabaco”, Dalton Paula provoca o espectador a adentrar o universo afro-religioso, respaldado por uma pesquisa plástico-visual que reescreve a presença negra na história de forma afirmativa. Saberes ancestrais são elaborados em sua visualidade, ativando sistemas de representação afro que desafiam os regimes de visibilidade hegemônico. Dalton traz um repertório visual que reencena a negritude como personagem central da história, como partícipe fundamental da história do Brasil.
A rota afro-poética do artista traz um pensamento visual em que objetos são destituídos de suas funções originais, ou melhor, são reelaborados em uma materialidade outra, numa perspectiva estético-visual afro-orientada. Dessa maneira, seus objetos são reescritos visualmente como suporte da pintura. Chamando atenção para os saberes afro-religiosos, seus suportes materializam formas de comunicação afro-brasileira e o engajamento estético-visual de uma produção artística que resiste e re-existe em um sistema excludente.
A produção artística de Dalton Paula nos convida a descolonizar o olhar, o saber. Sua pintura traz uma abordagem plástica visual que remete a um revisionismo dos regimes de verdade hegemônico. Dalton nos expõe a outro sistema de representação e de saberes caros às populações afro-ameríndias que sempre foram negligenciados e omitidos pela história oficial.
A sua afro-poética desnuda narrativas ainda vigentes do passado colonial brasileiro. Por meio da visualidade, o artista traz para o presente as práticas de silenciamento que a história oficial insiste em sacramentar. Em “Rotas do tabaco”, saberes, espiritualidade, sujeitos e lugares são reencenados e tensionadores da História, perpassada por uma reescrita estético-visual em rotas afro-orientadas.
Na série “As plantas curam”, o repertório afro-religioso é o mote para a composição do conjunto de pinturas. Nesta série, os saberes ancestrais dão o tom da abordagem plástico-visual empreendida pelo artista. É a lógica do sagrado afro-religioso que ilustram as capas dos livros. O artista traz como pesquisa fundamental a articulação dos saberes epistêmico-corpóreos afro-orientados. É a narrativa na perspectiva negra com seus saberes, ritos, estética e espiritualidade que ganham forma em sua abordagem plástica. A poética inscrita em “As plantas que curam” explora a potencialidade das dimensões afro-referenciadas.
Dalton Paula dá cor às capas dos livros. É a cor verde que encarna o saber ancestral, que evidencia o legado das práticas medicinais milenares das populações africanas e sua atualização ritualística empreendida pelos afro-brasileiros. O verde evoca ancestralmente Ossaim, a personificação da cura, o senhor das folhas, das plantas, é o sagrado que reexiste na contemporaneidade. As cores utilizadas por Dalton ganham frescor epistêmico-corpóreo, imprimindo reflexões sobre saber, presença e reelaboração de narrativas visuais sobre si.
As obras de Dalton Paula perpassam a dinâmica da representação do imaginário social brasileiro e trazem reflexões sobre o lugar que pessoas negras ocupam na sociedade brasileira. Em suas “Capas”, Dalton chama atenção para elementos simbólicos impregnados de significação histórica, compondo seu imaginário por meio de pinturas de cadeiras, poltronas, garrafas, sinos, caprinos, mala, cortina e rede. Cada um desses elementos evoca o repertório cultural afro-religioso e a história do período colonial. Dessa maneira, é a revisão de narrativas histórica e o contexto ritualístico que reinscreve toda a cena. Por meio dessa temática a pintura da “cadeira” evoca a ideia de extensão do corpo, é o lócus de reverencia e também indicativo de assentamento. Os “sinos” e a “rede” trazem um olhar para a história do país, uma vez que a persistência da rede em seus trabalhos abre diálogo com a iconografia registrada por Debret e Rugendas no período colonial que traz a rede como objeto de manipulação escravocrata, mas sem o sujeito negro na posição de escravizado e obrigado a carregar seus senhores nessas redes. Ao abrir diálogo com essa iconografia cristalizada sobre a experiência negra brasileira, o artista desloca a narrativa imagética oficial, joga com outro regime de visibilidade e de narrativa, porém agora a favor da população afro-brasileira, representando a rede sem a sustentação do trabalho servil. Já o sino é representado em uma posição de silenciamento, sem alusão a movimento. Durante o período colonial os sinos também eram utilizados como marcadores em igrejas, atrelados também ao sistema de exploração do ouro, e, sendo assim, à mão de obra escravizada.
Quanto às garrafas, Dalton potencializa esse tipo de recipiente para um recipiente de teor mágico-ritualístico. A garrafa ganha pluralidade e é inscrita como evocando um poder de cura, recipiente que guarda saber ancestral, que traz as figuras de curandeiros, raizeiros e toda uma ancestralidade afro-ameríndia. Ainda dentro da temática religiosa, os caprinos evocam meios de cura, de purificação. Já a cortina e a mala trazem a abordagem do segredo, o devir da história do povo brasileiro.
Bianca Leite é educadora e artista visual licenciada em artes visuais pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP/SP). Desenvolve projetos na área da educação não formal que pensam a relação entre arte e política na contemporaneidade. Investiga metodologias de trabalho através das práticas artísticas fazendo cruzamentos com a arte educação, e que perpassam em conceitos pedagógicos que visam à autonomia e emancipação do educando. Na 15a edição da SP-Arte, ministra as visitas “Artistas Afro-Contemporâneos I” e “Artistas Afro-Contemporâneos II”.
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