A curadora Pollyana Quintella escreve sobre Ridyas, artista que dialogou com a cena da poesia experimental dos anos 1970 e que ressurge agora para nova apreciação

6 fev 2019, 18h26

por Pollyana Quintella

 

Ridyas tinha dezenove anos quando leu a “Teoria da poesia concreta” do grupo Noigandres, 28 anos quando expôs na XIV Bienal de São Paulo e trinta quando faleceu. Sua obra curta, todavia, se insere em um momento profícuo da poesia experimental no Brasil dos anos 1970, quando interessa a experiência fora e além do livro, percorrendo voz, corpo, presença, visualidade.

José Ricardo Dias, o Ridyas, inaugura sua participação em exposições com a “Expoesia”, em 1973. Organizada pelo poeta e professor Affonso Romano de Sant’anna junto ao departamento de letras da PUC-Rio, a exposição reuniu mais de seiscentos poetas e três mil poemas visuais, sonoros e escritos, buscando incentivar a experimentação e apresentar um recorte generoso da geração. É nesse contexto que diferentes vertentes estiveram juntas, como o Poema Concreto e Neoconcreto, o Poema/Processo, a Práxis, a Tendência, o Violão de Rua, o Tropicalismo, a Geração 45, entre outras coisas. Mesas dispostas no pilotis da Universidade expunham textos datilografados e manuscritos, pregados e grampeados para serem lidos e folheados. Tratava-se de um modelo inusual para a recepção da poesia, acostumada com lançamentos de livros, saraus e leituras públicas. A “Expoesia”, que teria ainda outras edições, apontava uma produção poética mais permeada pela cultura, contaminada pelos desafios do seu tempo.

A via, no entanto, era dupla. Augusto de Campos, na introdução à primeira edição da “Teoria da poesia concreta” (1965), já reconhecia o comparecimento das contribuições da poesia concreta para a propaganda, o jornal, a diagramação dos livros, os slogans de televisão e mesmo para a bossa nova. Em Ridyas, há também a presença de um olho já acostumado com a comunicação acelerada, entre anúncios, manchetes e movimentos. A crise do verso incorpora a velocidade. O poema é, antes de tudo, estrutura dinâmica, ritmo. O espaço é elemento de composição, fazendo interessar a construção de um ambiente de imersão para a palavra como situação gráfico-espacial.

O maior exemplo disso será sua participação na Bienal de São Paulo de 1977. Naquela altura, a instituição passava por mudanças estruturais. Com a morte do idealizador do evento, Ciccillo Matarazzo, organiza-se um Conselho de Arte e Cultura que tem liberdade para conceber o programa de exposições, definindo eixos conceituais. Entre eles, um núcleo de “Proposições contemporâneas” previa sete temas atuais, incluindo “Poesia espacial”, onde Ridyas se insere com os outros poetas como Álvaro de Sá, Wlademir Dias Pino e Reynaldo Jardim. Na descrição, o conselho entendia o espaço poético como um conceito a ser discutido e desafiado, “seja uma folha de papel, seja um prédio ou o próprio universo”. Se o cânone do papel era um fardo para a experimentação (a crítica literária até hoje tem alguma dificuldade em assimilar o que está fora do livro), a situação parecia oportuna para promover um encontro entre palavra e corpo.


É quando o artista apresenta o “Poema espacial – Rodovia”. Uma estrada central, em curva no espaço, faz a palavra em perspectiva se mover com velocidade. O espaço de contemplação se confunde com o espaço de passagem, deslocamento. Nas laterais, poemas menores pontuam a composição: “ASA”, “FETO”, “FOME”, “FRAGMENTOS”, “MORTE”. A modernidade da cidade é contrastada com palavras que atravessam os ciclos da vida do homem, chocando temporalidades.

Além disso, o interesse dos poetas concretos pelas soluções oferecidas pelo ideograma oriental, em busca de concisão verbal, também está presente na obra do artista. Enquanto a palavra ocidental é pura arbitrariedade na relação entre forma e significado, o ideograma busca lembrar aquilo que representa, dando ênfase na visualidade. Nesse caminho, Ridyas persegue aquilo que possa corroborar o sentido da palavra na forma arbitrária das letras (como no caso de “FETO”, “MORTE”, “ASA”). Em outros poemas, um gesto sobre a palavra consolida o seu significado: em “FRAGMENTOS”, o estraçalhar das letras; em “FOME”, o desaparecimento do nome em razão de mordidas progressivas. A importância do suporte também deve ser notada: em “FETO”, a estrutura do poema sugere a forma de um ovo; em “MORTE”, a de uma lápide. Em todos os casos, no entanto, o que há é a busca de uma síntese visual.

Se para Décio Pignatari todo poema “é uma aventura planificada”, para Ridyas o poema é aventura espacial, percorrível, imersiva. O texto já não é só código, mas matéria e presença. Poderíamos também aproximá-lo do caso do poeta Ferreira Gullar com o “Poema enterrado”, o “primeiro poema com endereço da literatura mundial”. O “Poema espacial – Rodovia” também exige logradouro. Como diria Haroldo de Campos, “uma arte não que apresente, mas que presentifique”.

Com a morte prematura em 1979, a obra do artista ficou consideravelmente intocada até pouco tempo. Em 2017, o curador Ángel Calvo Uloa exibiu obras, anotações, projetos e documentos do artista no Ateliê Fidalga, em São Paulo. No mesmo ano, a Central Galeria remonta a instalação apresentada na Bienal de 1977. É nessa ocasião que o Museu de Arte Moderna de São Paulo adquire o trabalho de Ridyas, fazendo o artista integrar a primeira coleção pública do país, quase quarenta anos depois de sua morte. Carecem ainda leituras críticas sobre sua obra, assim como sua inserção mais ampla nos capítulos da arte e da poesia dos anos 1970. Esperamos que o momento seja agora.

 


Pollyana Quintella
Curadora-assistente do Museu de Arte do Rio (MAR) e pesquisadora independente. Formou-se em História da Arte pela UFRJ e é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, com pesquisa sobre Mário Pedrosa. Atuou na equipe de curadoria da Casa França-Brasil (2016),  foi coeditora da revista USINA e colunista do jornal Agulha. Curou exposições em instituições e espaços independentes no Rio de Janeiro e em São Paulo, com especial interesse para a interseção entre poesia e artes visuais.

 

Setor Masters
Antigo setor Repertório, o Masters foi criado em 2017 e foca em trabalhos produzidos até a década de 1980, estabelecendo diálogos entre artistas brasileiros e estrangeiros com trabalhos expressivos com pouco destaque no mercado nacional. A edição de 2019 contará com curadoria de Tiago Mesquita. Representado pela Central Galeria, Ridyas é um dos artistas selecionado para integrar o setor. A 15ª edição acontece de 3 a 7 de abril de 2019, no Pavilhão da Bienal (Parque Ibirapuera).

 


*Este texto faz parte de uma série de colunas publicadas no site da SP-Arte. As opiniões veiculadas nos artigos de autores convidados não refletem necessariamente a opinião da instituição.

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