Editorial
Crítica de arte
Que corpas se façam presentes: a arte de Rafael BQueer
Luciara Ribeiro
8 dez 2020, 13h32
Conheci a produção de Rafael Bqueer durante a sua participação no 7º Prêmio EDP nas artes, organizado pelo Instituto Tomie Ohtake, em 2018. Naquela ocasião, Bqueer apresentou dois trabalhos, Super Zentai e LeNoir. Ambos partem do campo da performance, da escrita e da fotografia, relacionandos a dilemas contemporâneos. Em Super Zentai, vemos a criação de personagens, heróis e fantasias que têm como inspiração referências visuais do imaginário pop japonês, que foram divulgados no Brasil através de seriados como Power Ranger, Jaspion, entre outros. Zentai refere-se ao modelo de vestimenta utilizado por estes personagens, uma roupa de elástica que cobre todo o corpo. Um Japão que influenciou a construção identitária da juventude dos anos 90. Há nesse jogo performático o questionamento sobre jogos de poder, relações entre palavra e imagem, dinâmicas da globalização e as fluídeses do imaginário. Com esse trabalho, Rafael Bqueer liberta os nossos Zentais e aproxima territórios, ativa corpos e fantasias, dinamiza os desejos fantasias.
Acima: Rafael BQueer, "Lenoir" (2017). Performance. Leblon/Rio de Janeiro. Foto: José Zepka.
Em LeNoir, Rafael Bquer usa de gestos simples para refletir sobre as estruturas racistas presentes na sociedade brasileira. LeNoir consiste em um grupo de pessoas negras parado em uma pequena calçada do bairro do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro. Aquele ato, aparentemente simples, foi o suficiente para provocar medo e estranhamento nas pessoas que vivem e circulam pelo bairro. O porquê? Esse é um dos questionamentos que o Bqueer suscita em nós, espectadores. Pensamos que a resposta indica que um dos metros quadrados mais caros do país não foi pensado para corpos negros.
Essas duas ações performáticas, quando transformadas em fotografia, concluíram-se em imagens para além do documental. Segundo o artista, em sua obra a performance e a fotografia se integram. E é da fotografia esse poder de tornar o mundo em imagens, de deixar elas retomarem aquilo que existiu. Se revelam. Não é por acaso que a palavra “revelar” sempre acompanhou a fotografia. Revelar é também desmascarar.
A proposição do trabalho com imagem também surge em Uóhol, série fotográfica de Bqueer que exibe quatro pessoas afro-lgbtbrasileiras: Jorge Lafound, Marcia Pantera, Madame Satã e Leona Vingativa. As quatro tiveram seus retratos coloridos a partir da técnica de serigrafia, método que memorizou um dos importantes ícones das artes e da cultura pop ocidentais, Andy Warhol. Ele, que foi um questionador, articulador e gestor da cultura, também teve sua trajetória marcada por ser uma pessoa lgbtqia+. Nessa série, Rafael Bqueer se conecta com Warhol e o abrasileiriza, o lgbteiriza e o pretuguêsiza. “Uóhol” recebe a escrita do modo como se escreve e fala no Brasil. Redefinir a escrita é também redefinir a imagem. Não podemos esquecer que a escrita também é imagem. Além disso, “Uó” é uma expressão utilizada para comentar que algo não está muito adequado, uma expressão comum no contexto urbano, lgbtqia+ e periférico.
A pensadora brasileira Lélia Gonzalez já comentava em seus textos durante os anos 70 que, no Brasil, falamos pretoguês, um idioma negro, periférico e que é constantemente redefinidos pelas nuances resistentes das línguas africanas e suas junções com o português. Rafael Bqueer demonstra estar atento a isso e desafia a escrita padronizada, branqueada e heteronormatizada, e faz isso com muito brilho, purpurina e conhecimento.
“É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse ‘r’ no lugar do ‘l’, nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o ‘l’ inexiste. Afinal, quem é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que estão falando pretuguês.”
É urgente que vejamos a fotografia contemporânea como um espaço comprometido com as questões e debates atuais, como um lugar em que a sociedade brasileira como um todo se sinta representada e participante. Que corpos, corpas e saberes se façam presentes.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
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