Problematizar Sertão ou Nordeste é voltar a cara para o Brasil

27 ago 2019, 16h20

Por Diego Matos

 

Ao se ter em perspectiva as exposições coletivas “À Nordeste”, que ficou em cartaz no Sesc 24 de Maio do dia 24 de maio ao dia 25 de agosto, e “Sertão”, o 36o Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP, é importante falar menos de um tema respaldado por uma suposta tendência e mais de uma urgência inerente à própria arte contemporânea no contexto histórico em que ela está inserida. A produção de hoje é propositiva e deflagradora, problematiza e subverte consensos, promove resistência, procura construir novas visibilidades etc. De uma forma ou de outra é isso que as duas exposições realizam, cada qual a seu modo.

No atual cenário brasileiro, acredito eu que não seja por acaso que certos movimentos e formas de pensar a arte aconteceram e amadureceram por agora. Ao meu ver, existem dois fatores essenciais e indissociáveis nesse processo: um é de ordem política, fator que atravessou o debate público recente nos levando ao atual contexto de crise; o outro é uma mudança de comportamento e de protagonismo sociocultural que tem relação direta com a efetivação de uma plataforma socioeconômica mais democrática, algo que se sedimentou com maior força entre 2003 e 2014.

Os levantes políticos desde 2013 e a crise política que foi instaurada institucionalmente com as eleições de 2014 conferem uma urgência à fala de quem ficou novamente à margem. Se as políticas de inclusão social e o crescimento econômico permitiram uma ascensão dos menos favorecidos, nos últimos anos uma onda reacionária e sectária tenta forçosamente colocar o Nordeste no imaginário coletivo como um lugar de atraso e estagnação, e o sertão como território da míngua e da seca. Afinal, a cisão vista no país nessas últimas eleições e o desenrolar de um governo de extrema direita são fatos importantes para entendermos o que está em jogo, fatos já levantados pela própria curadoria de “À Nordeste”. E, nessa ruptura, o território da cultura também foi posto em disputa.

Vale também falar de um contexto histórico para chegarmos no objeto dessas exposições. É importante pontuar aqui passagens relevantes da história da cultura brasileira recente para entendermos a pertinência dessas ações de hoje. Por exemplo, volto duas décadas para relembrar o projeto “Nordestes”, organizado por Moacir dos Anjos, no Sesc Pompéia em 1999. Nele, sinais de uma cultura fortemente urbana e já desassombrada dos preconceitos anteriores tomava forma e força, atentando para os aspectos da globalização e do prelúdio de um debate pós-colonial. Volto a lembrança também para a explosão de um cinema documental e ficcional em capitais como Fortaleza e Recife desde os anos 2000 que ajudaram a constituir uma imagem desse outro lugar-sertão, desse outro e ainda mais complexo nordeste. Falo aqui de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, como exemplos de partida. Reforço ainda a importância do trabalho intelectual de Durval Muniz de Albuquerque em seu “Reinvenção do Nordeste e outras artes”, bem como de tantos outros pesquisadores, acadêmicos e jornalistas. Incluo também aqui a escrita jornalística e as pesquisas da pernambucana Fabiana Moraes.

Nas artes visuais, uma descentralização das práticas artísticas ganhou potência ao longo dos anos com a organização de aparatos educativos e de iniciativas em coletivos e espaços independentes, bem como o acesso aos deslocamentos internos e externos, além de relações bilaterais e mais horizontais na inserção no circuito das artes. O contato com o exterior já há muito não se dá mais pela medição do Sudeste. A conexão é imediata na tela do celular, nas viagens de residência artística etc. Esse lastro intelectual de pensamento e produção criativa que foi ganhando corpo ao longo das duas últimas décadas refuta a ideia pueril e superficial de uma suposta tendência na arte atual, na medida em que constrói um lastro histórico e cria outras demandas. Aliás, três dos quatro curadores desses projetos foram figuras ativas nesse processo recente de reconfiguração do campo cultural.

Ao contrário do que a crítica tradicional insiste em dizer e reproduzir, em momento algum as plataformas discursivas dessas exposições falam de uma unicidade possível de uma identidade nordestina na arte. Essa discussão enquanto força motriz já passou e me soa datada, algo inclusive já devidamente pontuado ao final dos anos 1990 no projeto de Moacir dos Anjos ou mesmo nas cartografias da arte brasileira realizada pelo projeto Rumos do Itaú Cultural, para ficarmos em exemplos mais reconhecidos.

Sob curadoria de Bitu Cassundé, Clarissa Diniz e Marcelo Campos, a proposta de “À Nordeste” parte de uma provocação do artista Yuri Firmeza que questiona “a nordeste de que?”, desviando, portanto, o debate de um determinismo geográfico. Nesse sentido, os curadores questionam essa identificação restrita ao lugar e procuram apresentar uma pluralidade de práticas artísticas surgidas desde o Nordeste, pondo-as de encontro às imagens já advindas de uma tradição consolidada. Essa pergunta alia-se à compreensão de um momento de emergência no debate público brasileiro: nossa elite local e o imaginário popular acerca da região Nordeste com os seus desconhecimentos e preconceitos históricos ainda não reconhece uma ideia complexa de lugar permeada por modos de ser e viver diversos. Interessa aqui o que é estar “à nordeste”. Por isso, a exposição intenta criar um “diálogo trans-histórico entre autores e interesses diversos”, estruturado em oito possíveis núcleos: futuro, (de)colonialidade, trabalho, cidade, insurgências, linguagem, natureza e desejo. Todos eles acontecem coordenados pela expografia que determina e constitui em sua sinuosidade e desorientação o que foi chamado de uma experiência insular. Numa profusão propositada, a curadoria reuniu por volta 160 artistas, coletivos, duplas ou parcerias, que se distribuem nos contornos de uma arquitetura cenográfica no Sesc 24 de Maio. É solução espacial e formal adequada? Talvez sim, talvez não. Mas é com certeza análoga a desmedida de um território físico e simbólico que é vasto e plural, diverso e desigual, e que desagua por todo Brasil. Ao meu ver, é a materialização do contraste e do dissenso.


A exposição “Sertão”, por sua vez, procura decifrar pela arte a potência de sentido em “sertão”, encontrando uma vontade de ruptura epistêmica da palavra e de suas reverberações ao longo da história. Ao refutar a ideia pacificada de “sertão”, aquele mitificado pela literatura e pelas incursões racionalizantes das ciências sociais, a curadoria de Júlia Rebouças encontra na arte brasileira emergencial um modo de pensar e de agir que é sertão. São novas insurgências, manifestações de ordem político-estéticas, produções plásticas de amplitude técnica, prognósticos futuros, formas de resistência, reativações da memória coletiva, micro-histórias etc. Como descreve a curadora, “esta arte-sertão que aqui se apresenta está no deslizar das linguagens. Mais do que um lugar, essa condição sertão é travessia”. Para tanto, Rebouças optou por apresentar 29 artistas e coletivos, cada qual com suas estratégias e experiências fincadas em suas histórias e repertórios. No meu entender, diferentemente da outra exposição, a expografia atua de forma simbiótica na tradução do projeto de curadoria e na resposta às experiências artísticas. Há um equilíbrio de forças entre os gestos autorais envolvidos, mediado pela linguagem gráfica que identifica e orienta o visitante.

Por isso, e não menos importante, é que essa produção artística recente permeada nessas duas iniciativas vem também como resultado do acesso adquirido à educação formal, aos dispositivos digitais e em rede, às múltiplas plataformas de produção de imagem e às urgências de um debate em torno das variadas identidades de gênero e raciais, das epistemologias do Sul e da decolonialidade. Há, portanto, uma tomada de consciência e uma reinvindicação aos espaços públicos dos corpos antes excluídos.

Ademais, outra observação importante é a constituição de um novo e potente universo visual que reconfigura as imagens que temos das paisagens evocadas nessas exposições. Em paralelo, o atual cinema brasileiro também é pródigo dessas novas paisagens. Falo aqui, por exemplo, da importância do cinema de Gabriel Mascaro, de “Boi Neon” (2015) com o nosso interior urbano e pós-industrial e, agora, de “Divino Amor” (2019) com sua sociedade distópica. É um novo repertório visual que rebate as visões caducas ainda perpetuadas pelo “novo” governo federal.

Se existe um fio condutor de convergência nessas exposições, esse está de forma muito clara no desejo de deixar evidente uma força cultural que não mais voltará à invisibilidade mesmo que o poder público insista em inviabilizá-la ou anulá-la diante da esfera pública. Há luta, muito luta, e ela se dará também no campo simbólico e intelectual. Por essa razão, a arte contemporânea segue sua vitalidade na ordem do imponderável, num eterno tensionamento para com a sociedade, as instituições públicas e privadas e o mercado.

Sertão e Nordeste estão muito além de uma geografia ou de uma questão epistêmica, residem na força subversiva e criadora da arte hoje; essa que se apresenta tanto em uma exposição como em outra e que é posta para fora, dada a ver, e confrontada com o público. Está na hora de virar a cara para esse Brasil. Como escreveu Fernando Catatau do grupo Cidadão Instigado, em sua música de meados dos anos 2000, “lá fora tem um lugar que me faz bem e eu vou lá”.


Diego Matos é pesquisador, curador e professor (Foto: Everton Ballardin)

Diego Matos é pesquisador, curador e professor; mestre (2009) e doutor (2014) pela FAU-USP. Organizou com Guilherme Wisnik o livro Cildo: estudos, espaços, tempo (Ubu Editora, 2017). Em parceria com Júlia Rebouças, curou da individual de Cildo Meireles (Entrevendo, Sesc Pompeia, setembro de 2019). Com Priscila Arantes, foi curador da exposição Estado(s) de emergência (Paço das Artes na Oficina Cultural Oswald de Andrade, 2018). Participou, como um dos curadores do 20º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (Sesc Pompéia, 2017). Atuou como coordenador de Acervo e Pesquisa da Associação Cultural Videobrasil, colaborando também como curador institucional (2014-16).

(Foto: Everton Ballardin)

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