"Maloca próxima à missão católica do rio Catrimani, RR" (1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)
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Outros mundos da arte

Felipe Molitor
9 abr 2020, 15h14

Em entrevista recente, Ailton Krenak, importante pensador indígena do Brasil, mencionou Carlos Drummond de Andrade para falar da pandemia global. O poema “Cota zero”: 

Stop.
A vida parou
Ou foi o automóvel?

A incoerência inerente entre o desenvolvimento tecnológico do capitalismo e a preservação do planeta atingiu o limite do sustentável, e essa denúncia é feita há décadas, séculos, pelos povos nativos. Mais do que qualquer nação, os indígenas sabem o que é a ameaça da extinção e resistem. Ainda existem. A freada global da quarentena explodiu o senso de normalidade, tornando candentes e incontornáveis as reflexões sobre outros modos de viver e conviver daqui para frente, em oposição àqueles que dizem que “a economia tem que girar”. E pelo visto, para citar o título da mais recente obra de Krenak, estamos atrasados em ideias para adiar o fim do mundo. Segundo o líder indígena, os mais velhos de seu povo dizem: “Você não pode se esquecer de onde você é e nem de onde você veio, porque assim você sabe quem você é e para onde você vai”. Mantenhamos esse ditado em mente.

Através da arte, podemos embaralhar e reordenar narrativas pessoais e coletivas. Distintos saberes são absorvidos em exercícios de imaginação de um mundo porvir ou de futuros que já passaram. Há práticas artísticas que descortinam e presentificam a permanência de determinados planos, que coexistem com nosso mundo sem que possamos (ou queiramos) perceber. Essas esferas podem ser da ordem social ou histórica e, em deslocamentos ainda mais radicais, atingir escalas microscópicas e cósmicas.

Distantes dos velhos ismos da arte, vamos tratar de realizações artísticas mais próximas do “Manifesto Ciborgue” (1985) de Donna Haraway do que do “Manifesto Futurista” (1909) de Filippo Marinetti. Aqui, uma seleção assumidamente eclética de artistas que nos transportam para existências e temporalidades alternativas. Cada um à sua maneira, Daniel Lie, Thiago Martins de Melo, Denise Alves-Rodrigues, Luiz Roque e Claudia Andujar dilatam o tempo e incorporam outros conhecimentos em suas intrincadas poéticas. São artistas que alargam o ordinário das linguagens que trabalham, e nos introduzem para outras visões de mundo, sejam elas do passado, do presente ou do futuro. 

Acima: "Maloca próxima à missão católica do rio Catrimani, RR" (1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)

Através de uma linguagem artística híbrida, Daniel Lie manipula materiais orgânicos em processos de decomposição e nascimento. São criadas situações ritualísticas de longa duração para a performance viva das obras, que parecem movimentar energias invisíveis do espaço e do tempo. 

“Os Anos Negativos: Quing” (2019), Daniel Lie, no Jupiter Artland, Escócia (Foto: portfólio dx artista)

“Os Anos Negativos: Quing” (2019), Daniel Lie, no Jupiter Artland, Escócia (Foto: portfólio dx artista)

“Os Anos Negativos: A Privacidade Alheia” (2019), Daniel Lie, no Jupiter Artland, Escócia (Foto: portfólio dx artista)

“Os Anos Negativos: A Privacidade Alheia” (2019), Daniel Lie, no Jupiter Artland, Escócia (Foto: portfólio dx artista)

Artista transgênere, Lie busca romper também os binarismos entre ciência e religião, vida e morte. Sua ancestralidade, de raízes que vão do nordeste brasileiro à Indonésia, e os saberes tradicionais dos locais por onde passa, são os elementos fundantes de sua prática. 

“Fome de Decadência” (2018), Daniel Lie, em Bucamaranga, Colômbia (Foto: portfólio dx artista)
“Meus Sentimentos” (2015), Daniel Lie, na Oficina Cultural Oswald de Andrade (Foto: portfólio dx artista)

“Fome de Decadência” (2018), Daniel Lie, em Bucamaranga, Colômbia (Foto: portfólio dx artista)

“Meus Sentimentos” (2015), Daniel Lie, na Oficina Cultural Oswald de Andrade (Foto: portfólio dx artista)

Exposição “Filhxs do fim”, Daniel Lie, na Casa Triângulo, São Paulo (Foto: portfólio dx artista)

Exposição “Filhxs do fim”, Daniel Lie, na Casa Triângulo, São Paulo (Foto: portfólio dx artista)

É como se as mutações pelas quais suas obras passam refletissem ciclos espirituais mais amplos e antigos do que nós, como uma espécie de lembrete da efemeridade dos corpos e um desejo de (re)integração com outras dimensões. 

“PASSALOGO” (2017), Daniel Lie, no Sesc Sorocaba (Foto: portfólio dx artista)

“PASSALOGO” (2017), Daniel Lie, no Sesc Sorocaba (Foto: portfólio dx artista)

Death Center for the Living - Daniel Lie

Death Center for the Living

Um grito de revolta ecoa das imagens engendradas pelo maranhense Thiago Martins de Melo. Suas obras impetuosas sobrepõem camadas de mitologias e acontecimentos históricos para manifestar o embate perpétuo de figuras lendárias e anônimas que guerreiam no Brasil de ontem e hoje. 

"A reencarnação do bandeirante no ventre vermelho" (2016), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)

"A reencarnação do bandeirante no ventre vermelho" (2016), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)

Instalação “Martírio” (2014), Thiago Martins de Melo, na 31a Bienal de São Paulo (Foto: Galeria Millan)

Instalação “Martírio” (2014), Thiago Martins de Melo, na 31a Bienal de São Paulo (Foto: Galeria Millan)

Ainda que essencialmente figurativas, calcadas em um vasto repertório de símbolos e situações, tais obras conjugam vorazmente elementos e temas como a colonização, sexualidade, cosmologias e insurgências sociais. O plano pictórico de seus desenhos e pinturas têm vontade de ganhar carne.

“Ogum Xoroquê expulsa os demônios de Caspar Plautius - para Tuíra Kayapó, Sebastião Salgado e Marighella” (2019), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)

“Ogum Xoroquê expulsa os demônios de Caspar Plautius - para Tuíra Kayapó, Sebastião Salgado e Marighella” (2019), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)

Nessas alegorias, verdades cristalizadas do imaginário coletivo se chocam com narrativas contra-hegemônicas. São forças e visões do inconsciente, do artista ou do espectador, que podem operar a transformação. 

"Lua nova da utopia americana" (2019), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)
“A cruz que penetra Pindorama (série Teatro nagô cartesiano” (2015), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)

"Lua nova da utopia americana" (2019), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)

“A cruz que penetra Pindorama (série Teatro nagô cartesiano” (2015), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)

"Moiras do Rio Preguiças" (2019), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)
"Américas - para Haiti, Túpac Amaru, Carlota Lukumí, EZLN e Munduruku" (2019), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)

"Moiras do Rio Preguiças" (2019), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)

"Américas - para Haiti, Túpac Amaru, Carlota Lukumí, EZLN e Munduruku" (2019), Thiago Martins de Melo (Foto: Galeria Millan)

Se o acaso e o intangível são aspectos desprezados pela pesquisa científica, nos estudos de Denise Alves-Rodrigues, são verdadeiros motores de curiosidade. Em sua prática, metodologias e evidências de conhecimentos díspares podem caber e formular novos sentidos. Qual a diferença entre astrologia e astronomia?

“Essa semana sigo para Rural Scapes e lá inicio a fase de catalogação de ruídos cósmicos. Essa parte de D.K.A. estou chamando de Especulações Áudio Estelares, tenho pensado em como indicar ruídos para as estrelas e também mais alguma coisa que eu não sei direito o que é” - Anotações de Denise Rodrigues-Alves entre uma residência e outra, em 2015 (Foto: site da artista)

“Essa semana sigo para Rural Scapes e lá inicio a fase de catalogação de ruídos cósmicos. Essa parte de D.K.A. estou chamando de Especulações Áudio Estelares, tenho pensado em como indicar ruídos para as estrelas e também mais alguma coisa que eu não sei direito o que é” - Anotações de Denise Rodrigues-Alves entre uma residência e outra, em 2015 (Foto: site da artista)

Suas investigações muitas vezes se formalizam em aparatos ao mesmo tempo rústicos e tecnológicos. Nessas obras-engenhocas, os circuitos eletrônicos estabelecem parâmetros que verificam teorias mágicas, bruxarias e animismos. 

Vista do projeto “Breviário Celeste” (2018), Denise Alves-Rodrigues, Sesc Bom Retiro, São Paulo (Foto: site da artista)
“Mediador de assuntos delicados” (2019), Denise Alves-Rodrigues (Foto: Sé Galeria)

Vista do projeto “Breviário Celeste” (2018), Denise Alves-Rodrigues, Sesc Bom Retiro, São Paulo (Foto: site da artista)

“Mediador de assuntos delicados” (2019), Denise Alves-Rodrigues (Foto: Sé Galeria)

“Maldição de Cunhambebe ou o 1o tratado de paz da américa” (2018), Denise Alves-Rodrigues (Foto: Sé Galeria)

“Maldição de Cunhambebe ou o 1o tratado de paz da américa” (2018), Denise Alves-Rodrigues (Foto: Sé Galeria)

Grande parte da potência poética de Denise Alves-Rodrigues reside no âmbito da experiência, que dá-se a ver através das inúmeras anotações, ilustrações, ensaios e rascunhos de projetos – um convite singelo para a imaginação. 

Estudos de “Antro Lunar/D.K.A” (2015-17), Denise Alves-Rodrigues, do caderno da artista (Foto: site da artista)

Estudos de “Antro Lunar/D.K.A” (2015-17), Denise Alves-Rodrigues, do caderno da artista (Foto: site da artista)

“Índice Austral - Sigilos” (2016), Denise Alves-Rodrigues (Foto: site da artista)
“Piii” (2009), Denise Alves-Rodrigues, obra inédita (Foto: site da artista)

“Índice Austral - Sigilos” (2016), Denise Alves-Rodrigues (Foto: site da artista)

“Piii” (2009), Denise Alves-Rodrigues, obra inédita (Foto: site da artista)

As utopias do modernismo se convergem em distopias vertiginosas nos filmes de Luiz Roque. Hipnóticas e sedutoras, suas obras acentuam disputas sociais e políticas num tipo de ficção científica da videoarte, muitas vezes exibidas em dispositivos que mais parecem esculturas televisivas.  

"HEAVEN" (2016)
Luiz Roque

HEAVEN

A formatação do cinema clássico é abandonada em prol de ensaios visuais instigantes, repletos de referências ao campo da arte e da arquitetura sob a forma de pistas enigmáticas. Os personagens, que podem ser pessoas, animais ou esculturas, atuam de forma irônica em histórias de curta duração. 

Still de “The Triumph” (2011), Luiz Roque (Foto: Galeria Mendes Wood DM)

Still de “The Triumph” (2011), Luiz Roque (Foto: Galeria Mendes Wood DM)

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Stills de “Ano Branco” (2013), Luiz Roque

Stills de “Ano Branco” (2013), Luiz Roque

Os futuros imaginados nas obras de Luiz Roque não soam tão impossíveis assim, ainda mais pelos ares proféticos que adquiriram frente aos desafios específicos do nosso agora. Nesse sentido, meras hipóteses artísticas tornam-se flagrantes alertas. 

Stills de “HEAVEN” (2016), Luiz Roque
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Stills de “HEAVEN” (2016), Luiz Roque

Still de “Ano Branco” (2013), Luiz Roque

Still de “Ano Branco” (2013), Luiz Roque

Nos anos 70, época da ditadura civil-militar brasileira, a então fotojornalista Claudia Andujar conheceu os Yanomami, etnia indígena que vive ao norte de Roraima, na fronteira com a Venezuela. No largo dos anos, o fazer fotográfico a tornou artista, e a convivência com aquele povo, ativista. Ela entendeu que aquela cultura tinha muito a contribuir ao mundo dos brancos. 

"Desabamento do céu – o fim do mundo", da série “Sonhos Yanomami” (1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)

"Desabamento do céu – o fim do mundo", da série “Sonhos Yanomami” (1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)

"Guerreiro de Toototobi", da série “Sonhos Yanomami” (1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)
Sem título, da série "Sonhos Yanomami" (1974), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)

"Guerreiro de Toototobi", da série “Sonhos Yanomami” (1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)

Sem título, da série "Sonhos Yanomami" (1974), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)

Em uma fase altamente experimental, Andujar utilizou luzes, filmes e químicos específicos para evidenciar outra face dos Yanomami, não aquela da dita realidade que a fotografia empreende, mas uma visão subjetiva, espiritual e atemporal. 

"Êxtase", da série “Sonhos Yanomami” (1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)

"Êxtase", da série “Sonhos Yanomami” (1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)

"Yanomami", da série “A casa” (1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)

"Yanomami", da série “A casa” (1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)

Como legado, Claudia Andujar ensina que a fotografia pode e deve ser muito mais do que uma prática extrativista, que desconsidera e romantiza aquele que está do outro lado da lente. A potência singular de suas imagens resulta de uma convivência de profunda integração e respeito à diferença.

"Antônio Korihana thëri sob o efeito do alucinógeno yãkoana, Catrimani, RR" (1972-1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)

"Antônio Korihana thëri sob o efeito do alucinógeno yãkoana, Catrimani, RR" (1972-1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)


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Felipe Molitor é jornalista e crítico de arte, parte da equipe editorial da SP–Arte.

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