Editorial
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Outros mundos da arte
Felipe Molitor
9 abr 2020, 15h14
Em entrevista recente, Ailton Krenak, importante pensador indígena do Brasil, mencionou Carlos Drummond de Andrade para falar da pandemia global. O poema “Cota zero”:
Stop.
A vida parou
Ou foi o automóvel?
A incoerência inerente entre o desenvolvimento tecnológico do capitalismo e a preservação do planeta atingiu o limite do sustentável, e essa denúncia é feita há décadas, séculos, pelos povos nativos. Mais do que qualquer nação, os indígenas sabem o que é a ameaça da extinção e resistem. Ainda existem. A freada global da quarentena explodiu o senso de normalidade, tornando candentes e incontornáveis as reflexões sobre outros modos de viver e conviver daqui para frente, em oposição àqueles que dizem que “a economia tem que girar”. E pelo visto, para citar o título da mais recente obra de Krenak, estamos atrasados em ideias para adiar o fim do mundo. Segundo o líder indígena, os mais velhos de seu povo dizem: “Você não pode se esquecer de onde você é e nem de onde você veio, porque assim você sabe quem você é e para onde você vai”. Mantenhamos esse ditado em mente.
Através da arte, podemos embaralhar e reordenar narrativas pessoais e coletivas. Distintos saberes são absorvidos em exercícios de imaginação de um mundo porvir ou de futuros que já passaram. Há práticas artísticas que descortinam e presentificam a permanência de determinados planos, que coexistem com nosso mundo sem que possamos (ou queiramos) perceber. Essas esferas podem ser da ordem social ou histórica e, em deslocamentos ainda mais radicais, atingir escalas microscópicas e cósmicas.
Distantes dos velhos ismos da arte, vamos tratar de realizações artísticas mais próximas do “Manifesto Ciborgue” (1985) de Donna Haraway do que do “Manifesto Futurista” (1909) de Filippo Marinetti. Aqui, uma seleção assumidamente eclética de artistas que nos transportam para existências e temporalidades alternativas. Cada um à sua maneira, Daniel Lie, Thiago Martins de Melo, Denise Alves-Rodrigues, Luiz Roque e Claudia Andujar dilatam o tempo e incorporam outros conhecimentos em suas intrincadas poéticas. São artistas que alargam o ordinário das linguagens que trabalham, e nos introduzem para outras visões de mundo, sejam elas do passado, do presente ou do futuro.
Acima: "Maloca próxima à missão católica do rio Catrimani, RR" (1976), Claudia Andujar (Foto: Claudia Andujar / divulgação)
Através de uma linguagem artística híbrida, Daniel Lie manipula materiais orgânicos em processos de decomposição e nascimento. São criadas situações ritualísticas de longa duração para a performance viva das obras, que parecem movimentar energias invisíveis do espaço e do tempo.
Artista transgênere, Lie busca romper também os binarismos entre ciência e religião, vida e morte. Sua ancestralidade, de raízes que vão do nordeste brasileiro à Indonésia, e os saberes tradicionais dos locais por onde passa, são os elementos fundantes de sua prática.
É como se as mutações pelas quais suas obras passam refletissem ciclos espirituais mais amplos e antigos do que nós, como uma espécie de lembrete da efemeridade dos corpos e um desejo de (re)integração com outras dimensões.
Death Center for the Living - Daniel Lie
Um grito de revolta ecoa das imagens engendradas pelo maranhense Thiago Martins de Melo. Suas obras impetuosas sobrepõem camadas de mitologias e acontecimentos históricos para manifestar o embate perpétuo de figuras lendárias e anônimas que guerreiam no Brasil de ontem e hoje.
Ainda que essencialmente figurativas, calcadas em um vasto repertório de símbolos e situações, tais obras conjugam vorazmente elementos e temas como a colonização, sexualidade, cosmologias e insurgências sociais. O plano pictórico de seus desenhos e pinturas têm vontade de ganhar carne.
Nessas alegorias, verdades cristalizadas do imaginário coletivo se chocam com narrativas contra-hegemônicas. São forças e visões do inconsciente, do artista ou do espectador, que podem operar a transformação.
Se o acaso e o intangível são aspectos desprezados pela pesquisa científica, nos estudos de Denise Alves-Rodrigues, são verdadeiros motores de curiosidade. Em sua prática, metodologias e evidências de conhecimentos díspares podem caber e formular novos sentidos. Qual a diferença entre astrologia e astronomia?
Suas investigações muitas vezes se formalizam em aparatos ao mesmo tempo rústicos e tecnológicos. Nessas obras-engenhocas, os circuitos eletrônicos estabelecem parâmetros que verificam teorias mágicas, bruxarias e animismos.
Grande parte da potência poética de Denise Alves-Rodrigues reside no âmbito da experiência, que dá-se a ver através das inúmeras anotações, ilustrações, ensaios e rascunhos de projetos – um convite singelo para a imaginação.
As utopias do modernismo se convergem em distopias vertiginosas nos filmes de Luiz Roque. Hipnóticas e sedutoras, suas obras acentuam disputas sociais e políticas num tipo de ficção científica da videoarte, muitas vezes exibidas em dispositivos que mais parecem esculturas televisivas.
"HEAVEN" (2016)
Luiz Roque
A formatação do cinema clássico é abandonada em prol de ensaios visuais instigantes, repletos de referências ao campo da arte e da arquitetura sob a forma de pistas enigmáticas. Os personagens, que podem ser pessoas, animais ou esculturas, atuam de forma irônica em histórias de curta duração.
Os futuros imaginados nas obras de Luiz Roque não soam tão impossíveis assim, ainda mais pelos ares proféticos que adquiriram frente aos desafios específicos do nosso agora. Nesse sentido, meras hipóteses artísticas tornam-se flagrantes alertas.
Nos anos 70, época da ditadura civil-militar brasileira, a então fotojornalista Claudia Andujar conheceu os Yanomami, etnia indígena que vive ao norte de Roraima, na fronteira com a Venezuela. No largo dos anos, o fazer fotográfico a tornou artista, e a convivência com aquele povo, ativista. Ela entendeu que aquela cultura tinha muito a contribuir ao mundo dos brancos.
Em uma fase altamente experimental, Andujar utilizou luzes, filmes e químicos específicos para evidenciar outra face dos Yanomami, não aquela da dita realidade que a fotografia empreende, mas uma visão subjetiva, espiritual e atemporal.
Como legado, Claudia Andujar ensina que a fotografia pode e deve ser muito mais do que uma prática extrativista, que desconsidera e romantiza aquele que está do outro lado da lente. A potência singular de suas imagens resulta de uma convivência de profunda integração e respeito à diferença.
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