A curadora do setor Solo comenta sobre o que fundamentou a escolha dos artistas que compõem o setor, e quais os eixos que norteiam a exposição

21 jan 2019, 12h22

por Alexia Tala

 

A história da América se desenvolve junto das imagens produzidas sobre ela, e por isso podemos considerar que a arte tem um papel fundamental na sua constituição. Reconhecemos um gênero expressivo a esse respeito, por exemplo, na pintura de paisagem. Considerado um dos primeiros a interpretar a paisagem Americana, o pintor holandês Franz Post desembarcou em 1637 em Pernambuco com o objetivo de capturar o Brasil tropical. O artista fazia desenhos in situ e depois incorporava temas e elementos do Novo Mundo. Suas imagens seguiam a convenção da paisagem pictórica holandesa da época, caracterizada pela quietude e estoicismo, acrescentando elementos da flora e fauna tropical. Eram paisagens construídas, que apesar de serem feitas a partir de anotações no local, eram concluídas e finalizadas fora deste. Isso expressa uma qualidade intrínseca das imagens de um lugar, imagens como portadoras daquela elaboração imaginária, que sempre carregam uma densidade de ficção, segundo Luis Pérez-Oramas(1). A paisagem é sempre uma meta-paisagem, efeito da montagem e da imaginação de quem está diante dela.

Em um sentido mais amplo da paisagem, podemos estender o conceito para os homens que nela habitam, suas práticas, ambiente material, configuração social, costumes e sonhos. Foram realizadas diversas imagens de cada um deles no território latino-americano ao longo da história. Própria da reflexão da visualidade contemporânea é a ênfase nos aspectos antropológicos, históricos e sociais dessa condição construtiva das imagens, que ecoaram profundamente na compreensão do que entendemos por América Latina. O olhar analítico da fotografia etnográfica dos séculos XIX e XX foi decisivo para ressaltar a violência do eurocentrismo, materializado em formatos que reproduzem práticas colonizadoras que vêm desde o início da América moderna conquistada. Revisar as imagens dessa história tem sido uma das principais vocações da arte contemporânea latino-americana. Vemos a “América inventada” (Edmundo O’Gorman), e aquela “América imaginária” (Miguel Rojas-Mix) operando ainda nos dias de hoje.

Sempre que existe modernidade, existe colonialidade, conforme os autores citados. Uma figura que essa atitude necessariamente tem como antecedente é a da inversão. O gesto político de desnaturalizar a representação estrangeira e reverter a ação subjugadora do outro cruzou a arte e a cultura da América Latina, desde o mapa de Joaquín Torres-García até a atitude antropofágica e suas subsequentes leituras e interpretações. Esse gesto já é inalienável na história. As constantes históricas, na contemporaneidade, nos obrigam a atualizar as leituras do território e as imagens deste de maneira crítica e reflexiva.

É sob essa premissa que o setor Solo da 15ª SP-Arte apresenta um agrupamento de artistas cujos trabalhos têm o potencial de revisão e recriação das práticas colonizadoras nas representações do continente americano. As questões iniciais enfatizam a validade da ideologia colonial que traçou o destino da região, assimilando o caráter histórico do olhar exotista e seu papel na configuração da hierarquia global que se perpetua hoje.

Os artistas convidados foram organizados em quatro eixos, quatro pontos de entrada para abordar essas questões. O primeiro eixo “América, terra de oportunidades” procura falar sobre esses problemas a partir da exploração material do território, por exemplo, dos recursos. Assim, a partir do material, Alejandra Prieto (Die Ecke Arte Contemporaneo, Chile) fala metonimicamente do sistema de produção de objetos e seus usos.

Em “Expedições imaginárias, medições do invisível”, que reúne Manata e Laudares (Sé Galeria, Brasil) e María Edwards (Galeria Patricia Ready, Chile), o foco é nas observações e percepções do próprio território, sua valorização e reconfiguração a partir dos espaços-universos, que são inspirados tanto no poético-sensorial quanto no científico. Inspiradas na paisagem, ambas propostas criam microuniversos que abandonam o campo apenas objetivo para potencializar a experiência.

Dedicado às representações dos habitantes do continente, “Homens do Paraíso e do Inferno”, terceiro eixo, articula as obras de quatro artistas: Nicole Franchy (IK Projects, Peru), Ayrson Heráclito (Portas Vilaseca, Brasil), Sandra Vásquez de la Horra (Bendana Pinel [França], Chile) e Luis González Palma (Galería de Babel [Brasil], Guatemala). Do olhar etnográfico enciclopédico dos indígenas, até os rituais ancestrais baianos, este eixo reúne artistas que trabalham com imaginários do passado, através da presença de corpos particulares. Seja com performances, rostos ou silhuetas anônimas, esse grupo reativa o problema do olhar antropológico.

Rafael Pagatini (OA, Brasil), Randolpho Lamonier (Periscopio, Brasil) e Fernando Bryce (Espaivisor [Espanha], Peru) compõem o último eixo, “Cronistas contemporâneos”. Aqui procuramos juntar artistas que ativam politicamente a perspectiva documental, seja trazendo a história política ou o caráter marginal da sociedade, e que também compartilham um interesse pelos meios que associamos às técnicas manuais ou artesanais.

Nestes eixos podemos reconhecer, então, a inversão como estratégia do espírito crítico dos artistas da região. Se apresentando como chaves de entrada para a história da América e suas representações, história que fala de longos processos colonizadores que continuam a ser revistos e questionados por estes e outros artistas.

(1)Pérez-Oramas, L. (2015) A paisagem original. Em K. Manthorne (ed.), Artistas Viajantes: Paisagens da América Latina da Coleção Patricia Phelps De Cisneros. Nova York: Coleção Patricia Phelps de Cisneros.

 


Alexia Tala

Curadora independente e diretora artística da Plataforma Atacama, Alexia Tala é especializada na pesquisa da arte latino-americana. Mais recentemente, se dedicou à curadoria geral da Bienal de Arte Paiz de 2020, na Guatemala, e à publicação de uma monografia sobre a chilena Lotty Rosenfeld. Foi co-curadora da 8ª Bienal do Mercosul – Ensaios de geopoética e da 4ª Trienal Poligráfica de San Juan de Puerto Rico, na 20ª Bienal de Arte Paiz da Guatemala. Escreve também para publicações de arte na América Latina e no Reino Unido, além de ser autora de “Installations and Experimental Printmaking” (UK, 2009). É responsável pela curadoria do setor Solo, na próxima SP-Arte.

Perfil SP–Arte

Faça parte da comunidade SP–Arte! Somos a maior feira de arte e design da América do Sul e queremos você com a gente. Crie ou atualize o seu perfil para receber nossas newsletters e ter uma experiência personalizada em nosso site e em nossas feiras.