"Como" [detalhe] da série "Dés-Pliegues", 2020 Acrílica sobre papel de diário 82 x 60 cm
Ensaio

O que significa a palavra Brasil?

Guillermo Daghero
24 jun 2020, 11h27

tudo era ser-se
sem ainda estar-se
e poesía nasceu-se
depois de em si nascer-se

Nasci e morei em uma cidade no interior da província de Córdoba, na Argentina. Eu cresci entre a zona rural, o povoado e minha família. Tínhamos o hábito de passar muito tempo na casa da minha avó materna. Ela era uma leitora voraz, e atravessou sua velhice fazendo palavras cruzadas. Entre seus cadernos e papéis guardados como embrulhos, era possível encontrar fragmentos de textos que ela transcreveu, notas significativas tiradas de jornais que chegavam entre cartões postais, correspondência e outros recortes (selos e palavras soltas). Posso dizer que tinha uma política de guardar, dobrar e desdobrar os papéis. Você encontrava papéis de embrulho, papéis lisos de diferentes texturas e tamanhos e até pacotes de chimarrão e etiquetas de tabaco esticadas que davam a impressão de cartazes publicitários. Estar com a vovó Aida significava estar em contato com esses hábitos. Folhear revistas e jornais. Se cercar de livros. Eu sempre tive a sensação que da casa de minha avó era possível ver a vida de forma mais bonita e de maneira diferente.

Aos sábados ela recebia um jornal e no domingo, outro. Esses dois exemplares, com seus suplementos, eram lidos toda semana e ela também era assinante da revista El Correo, uma publicação da UNESCO. Foi aí que me deparei com uma edição aludindo ao Brasil, que levava na capa uma reprodução da obra Operários (1933), de Tarsila do Amaral e dentro da revista um artigo de Severo Sarduy intitulado “Quando a poesia se torna concreta”, com poemas de Pedro Xisto e Décio Pignatari, acompanhados dos textos Manifesto Antropófago e Semana da Arte Moderna de 1922.

Acima: "Como" [detalhe]
da série "Dés-Pliegues", 2020
Acrílica sobre papel de diário
82 x 60 cm

Lenora de Barros, “12 poemas para dançarmos”, novembro de 2000.

"Como sido" da série "Dés-Pliegues", 2020 Acrílica sobre papel de diario 82 x 60 cm
"Como como" da série "Dés-Pliegues", 2020 Acrílica sobre papel de diario 82 x 60 cm

"Como sido"
da série "Dés-Pliegues", 2020
Acrílica sobre papel de diario
82 x 60 cm

"Como como"
da série "Dés-Pliegues", 2020
Acrílica sobre papel de diario
82 x 60 cm

"Comoooo" da série "Dés-Pliegues", 2020 Acrílica sobre papel de diario 82 x 60 cm
"Como se" da série "Dés-Pliegues", 2020 Acrílica sobre papel de diario 82 x 60 cm

"Comoooo"
da série "Dés-Pliegues", 2020
Acrílica sobre papel de diario
82 x 60 cm

"Como se"
da série "Dés-Pliegues", 2020
Acrílica sobre papel de diario
82 x 60 cm

No mesmo povoado havia uma loja de discos frequentada pelos adolescentes. Chegavam novos discos, alguns importados, e costumava aparecer algumas raridades. Naquela época, duas fitas cassete de Caetano Veloso: com Uns (1983), dançamos na casa de amigos, e com Cores, Nomes (1982), a poesia realmente causou loucura na minha vida (em especial a música “Sonhos”).

Em outro momento desse crescimento nos anos 1980, ocorreu de eu acordar meu pai de uma soneca no verão para pedir permissão para ir ao festival Rock in Rio, e eu não recebi a resposta que esperava, mas, depois de alguns dias, vejo na tela da televisão um homem nu e cheio de penas no palco do Rio chamado Ney Matogrosso (o mesmo que eu já tinha ouvido e cantarolado por sua interpretação da música Poema).

Dessa maneira, fui incorporando uma maneira de ver e ouvir um idioma. Meu pai me perguntava se eu entendia tudo que ouvia, eu respondia que em parte, mas não me importava de não entender tudo. A partir daí imaginava, copiava sons, inventava.

"Como uno" da série "Dés-Pliegues", 2020 Acrílica sobre papel de diario 82 x 60 cm

"Como uno"
da série "Dés-Pliegues", 2020
Acrílica sobre papel de diario
82 x 60 cm

"Do outro lado do" da série "Dés-Pliegues", 2020 Acrílica sobre papel 150 x 100 cm
"No outro lado do" da série "Dés-Pliegues", 2020 Acrílica sobre papel 150 x 100 cm

"Do outro lado do"
da série "Dés-Pliegues", 2020
Acrílica sobre papel
150 x 100 cm

"No outro lado do"
da série "Dés-Pliegues", 2020
Acrílica sobre papel
150 x 100 cm

Essas constatações e episódios foram se somando a outras leituras e acontecimentos que ocupam a categoria de deslumbramento e abertura. Sucessos do Brasil que consigo visualizar como momentos epifânicos da minha vida.

A Fábrica do Poema (1994), de Adriana Calcanhotto e Waly Salomão, foi o encerramento dessa história que vinha se desenrolando com o país vizinho. Esse disco e esse poeta marcaram uma nova época, e marcaram algo fundamental, ouso dizer que foi a entrada para uma arte mais ampla, para uma arte geral, talvez para aquilo que se entende por arte contemporânea.

Que lugar, ou melhor, o que fazer com essas influências que formam parte de uma vida? Essa foi a pergunta que tive como companheira e conselheira.


GD-autor-bio

Guillermo Daghero é artista, nascido em Córdoba, na Argentina, em 1967. Nas décadas de 1990 e 2000, ele participou de redes de arte-correio, depois de mail-art, com textos visuais. No início dos anos 2000, juntamente com o diretor francês Florent Fajole e sob o conceito de dispositifs éditoriaux, realizou diversas intervenções editoriais com a obra de Mirtha Dermisache. Realizou e realiza trabalhos curatoriais de obras de arte contemporânea, geralmente relacionadas ao campo da escrita e da espacialidade.

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