Momento em que a participante do BBB20, Manu Gavassi, aperta o botão de desistência da dinâmica do Quarto Branco em menos de 24 horas (Foto: Rede Globo / Divulgação)
Big Brother Brasil

O que o sucesso de BBB tem a dizer sobre o confinamento no Brasil

Giovana Christ
30 abr 2021, 16h20

O Big Brother Brasil, assunto mais comentado do país no momento, é um reality show que há aproximadamente três meses vem fornecendo uma alienação — necessária — para os brasileiros que não aguentam mais as notícias pessimistas de todos os dias.

Criado em 1999 na Holanda pela produtora Endemol e inspirado no livro “1984” (1949), de George Orwell, o formato fez um sucesso imediato no país. No Brasil, a transmissão do programa foi oferecido ao SBT, em 2000, que desistiu de última hora do investimento, e foi incorporado à programação da Rede Globo em 2002. Para tentar entrar na onda do sucesso do programa, outras emissoras brasileiras investiram em reality shows com uma estrutura similar, como Casa dos Artistas (SBT), A Fazenda e Power Couple (Record), The Circle Brasil (Netflix) e No Limite, da própria Rede Globo, repetindo a lógica do confinamento que o BBB provou trazer audiência.

Acima: Momento em que a participante do BBB20, Manu Gavassi, aperta o botão de desistência da dinâmica do Quarto Branco em menos de 24 horas (Foto: Rede Globo / Divulgação)

Gráfico que compara a busca por palavras "BBB", "coronavirus", "mascara" e "Bolsonaro" na internet do dia em que começou a edição 2021 do reality de 15 de janeiro a 24 de abril (Fonte: Google Trends)

Gráfico que compara a busca por palavras "BBB", "coronavirus", "mascara" e "Bolsonaro" na internet do dia em que começou a edição 2021 do reality de 15 de janeiro a 24 de abril (Fonte: Google Trends)

Participantes da primeira edição do Big Brother Brasil, em 2002 (Foto: Rede Globo / Divulgação)

Participantes da primeira edição do Big Brother Brasil, em 2002 (Foto: Rede Globo / Divulgação)

As últimas edições, BBBs 20 e 21, proporcionaram ao programa um público enorme, em grande parte por sua produção coincidir com o início da pandemia COVID-19.

O BBB 21 registrou recordes históricos de audiência do canal. No dia 28 de março o reality bateu 26 pontos de audiência e 49% do total de público da televisão brasileira durante a formação do paredão, conforme dados do Painel Nacional de Televisão (PNT).

Parte desse sucesso de público pode ser atribuído ao fato de que os telespectadores dessas edições se enxergam nas situações enfrentadas pelos participantes, confinados em casa e enfrentando grandes momentos de tédio e conflito. Além disso, o reality dá ao público a sensação indireta de controle, podendo decidir o destino de cada participante do programa — controle esse completamente ausente da vida do brasileiro comum, em um momento no qual parte da população está confinada em casa e outra parte é forçada a se expor ao COVID-19 para garantir sustento — tudo isso em meio a instabilidade política sem precedentes —, e ninguém tem previsão de quando a situação irá se resolver. 

Os 20 participantes que ingressaram na edição de 2021 do BBB. Existe um ato simbólico do sofá ir esvaziando até restarem os três finalistas (Foto: Rede Globo / Divulgação)

Os 20 participantes que ingressaram na edição de 2021 do BBB. Existe um ato simbólico do sofá ir esvaziando até restarem os três finalistas (Foto: Rede Globo / Divulgação)

As brigas entre os companheiros de moradia durante o isolamento social, sejam eles amigos, parceiros românticos ou família, são comuns tanto pela situação estressante causada pelo estado de calamidade do Brasil quanto pela exagerada convivência — que era rara quando a vida era majoritariamente fora de casa. É exatamente isso que observamos reproduzido no BBB: em uma casa com inicialmente vinte pessoas de personalidades e ocupações sociais completamente diferentes, os participantes são colocados em situações desconfortáveis — como a falta de cama, quando a casa está lotada, e a pouca disponibilidade de alimentos na xepa (grupo que não foi favorecido pelo líder da semana) — e submetidas ao tédio, pelo fato das únicas atividades serem as propostas e autorizadas pela produção do programa.

O confinamento e a restrição social têm raízes profundas e traumáticas para os brasileiros. Caio Fernando de Abreu — um dos expoentes da literatura contemporânea nacional produzida durante a ditadura militar no país — narra, em seu conto¹ “O mar mais longe que eu vejo” (1970), episódios de uma personagem que foi impedida de conviver em sociedade devido ao seu comportamento inconformado e desobediente em face das políticas ditatoriais, a obrigando a se confinar em uma ilha devido a suas convicções políticas. A narrativa também comenta as sequelas que o indivíduo carrega pelo seu período isolado.

Ainda do mesmo autor, “Holocausto” (1977) retrata o perturbador e degradante convívio de Abreu e mais doze sujeitos feridos numa casa sem condições de moradia. Lá, suas rotinas são subordinadas às condições do espaço em que vivem e, justamente por isso, há uma clara perda de senso cronológico, criando um paralelo com os procedimentos de tortura e os exílios praticados durante o período da ditadura militar, e como essas lembranças de terror e dor são incutidas nos brasileiros.

“A voz dos confinados: um estudo comparado entre os contos ‘O mar mais longe que eu vejo’ e ‘Holocausto’, de Caio Fernando Abreu”, de Guilherme Fernandes. <https://www.revistas.usp.br
/anagrama/article/view/35516/38235>

Participantes do BBB20 no castigo do quarto branco (Foto: Rede Globo / Divulgação)

Participantes do BBB20 no castigo do quarto branco (Foto: Rede Globo / Divulgação)

A Rede Globo foi acusada, diversas vezes, de submeter os participantes do Big Brother Brasil a algo próximo a tortura ao impor certas dinâmicas em quartos isolados.

No quarto branco, por exemplo, todos os móveis, paredes, teto, chão e banheiro são cobertos por materiais brancos — fazendo clara referência ao retrato popular de hospitais psiquiátricos em filmes — e a luz no espaço é ininterrupta, confundindo o ciclo circadiano dos confinados. No ano passado, Manu Gavassi, Felipe Prior e Gizelly Bicalho foram indicados para esse castigo e a primeira participante encerrou a dinâmica em menos de 24h, dando indícios de que a vida no quarto é insustentável. Assim é reproduzido no quarto dourado e no quarto do terror, no qual participantes são confinados em um espaço totalmente sem luz e precisam achar uma chave, dentre mil, para se salvar da penalização. No BBB 21 nenhuma dinâmica parecida foi utilizada até agora — talvez porque de confinamento e isolamento o Brasil já esteja farto.

Quarto do terror, no BBB11, onde as participantes tinham que encontrar a chave correta dentre mil chaves disponíveis, totalmente no escuro, para fugirem do castigo (Foto: Rede Globo / Divulgação)

Quarto do terror, no BBB11, onde as participantes tinham que encontrar a chave correta dentre mil chaves disponíveis, totalmente no escuro, para fugirem do castigo (Foto: Rede Globo / Divulgação)

Vista da exposição "Tehching Hsieh: One Year Performance 1980-1981", na UCCA Center for Contemporary Art (Foto: Google Arts and Culture / Divulgação)

Vista da exposição "Tehching Hsieh: One Year Performance 1980-1981", na UCCA Center for Contemporary Art (Foto: Google Arts and Culture / Divulgação)

As performances de confinamento

A dinâmica apresentada nos reality shows não é nova, até pelo fato do BBB já contar com 21 anos de existência. Mas podemos remeter suas origens a diversas performances que utilizam o confinamento como forma de estudo da expressão humana em situações de extrema resistência por longos períodos de tempo. 

O artista taiwanês Tehching Hsieh se propôs, entre 1978 e 1986, a cinco performances batizadas de “One Year Performances”. Nelas, Hsieh se isolava em um ambiente como seu estúdio ou sua casa durante um ano, sem permissão para ler, escrever, falar, assistir televisão ou ouvir rádio. Durante esse período, o artista batia ponto, como nas fábricas, e retratava seu rosto numa foto que lembra a expressão e o enquadramento de imagens produzidas nos presídios. Um das performances se desdobrou em exposição na UCCA Center for Contemporary Art, em Pequim, na qual os retratos produzidos por Tehching Hsieh durante seu período de reclusão ocupou três paredes inteiras  questionando as mecânicas de presença e vigilância, produção e controle, disciplina e submissão características do capitalismo tardio.

Fotos registradas em uma das edições de “One Year Performance”, Tehching Hsieh (Foto: Divulgação)

Fotos registradas em uma das edições de “One Year Performance”, Tehching Hsieh (Foto: Divulgação)

"One Year Performance 1980–1981: Time Clock Piece", Tehching Hsieh (Foto: Divulgação)

Na 15ª edição da mostra Verbo, em 2019, o artista Felipe Bittencourt apresentou “Bicho” (2016), performance em que se confinou dentro de um ambiente doméstico depois de voltar de períodos de isolamento em lugares rurais ou desérticos. A performance não cria produtos físicos e impõe sua marca pelo desgaste físico do performer. A pesquisa de movimentos para a obra se baseou no comportamento de insetos noturnos, também tidos como lunares por buscarem a luz.

Mais recente, o artista francês Abraham Poincheval se propôs a uma experiência de curta duração temporal com fortes impactos traumáticos. Durante uma semana, o performer ficou fechado dentro de uma rocha de doze toneladas dentro do museu Palais de Tokyo, na França, comendo frutas cozidas e purês, num pequeno espaço ventilado e equipado com alguns objetos pessoais. O artista conta que durante este período viveu momentos vertiginosos, estados sonhadores e alucinatórios — tudo isto como parte do seu desejo de explorar diferentes conceitos de tempo e experimentar o passar geológico na pele. Para explorar o tema, o artista também já se propôs a viver em um buraco de sessenta centímetros de largura e 1,7 metros de altura durante sete dias, e passar treze dias dentro de uma escultura de um urso.

"Pierre" (2017), Abraham Poincheval (Foto: Divulgação)

"Pierre" (2017), Abraham Poincheval (Foto: Divulgação)

"Ours" (2014), Abraham Poincheval (Foto: Divulgação)

"Ours" (2014), Abraham Poincheval (Foto: Divulgação)

O BBB faz sucesso agora em quem a pandemia chega ao seu ápice no país e os brasileiros se encontram em situações parecidas com os dos confinados das casas. Não por acaso, a Rede Globo emendará o sucesso com uma nova edição de “No Limite”, reality que não era produzido desde 2009, mas provavelmente será sucesso de audiência por também confinar seus participantes.


Giovana Christ é estudante de jornalismo (ECA–USP), entusiasta do carnaval brasileiro e apaixonada por todos os tipos de manifestações culturais. Faz parte da equipe editorial da SP-Arte.

Perfil SP–Arte

Faça parte da comunidade SP–Arte! Somos a maior feira de arte e design da América do Sul e queremos você com a gente. Crie ou atualize o seu perfil para receber nossas newsletters e ter uma experiência personalizada em nosso site e em nossas feiras.