Artista paulistano realiza uma exposição experimental em galeria do centro da cidade, confira o review!

18 jun 2019, 13h05

por Felipe Molitor

O casarão em que hoje funciona a Sé Galeria, no centro velho de São Paulo, é repartido em dois usos um tanto excêntricos entre si. Os andares superiores do prédio histórico abrigam a jovem galeria de arte, enquanto no térreo funciona um estacionamento agitado. Em seu interior escuro, cheirando a óleo de motor e fumaça, um segundo piso mambembe de madeira foi construído para ser a garagem de motos. É a partir desta vizinhança incomum que João Loureiro trabalha “Peixe-elétrico-moto-clube”, sua primeira individual como artista representado pela Sé.

O percurso mais interessante para a exposição começa ali mesmo, com uma obra instalada em uma das vagas. O artista substituiu o farol de uma moto verdadeira, adquirida em leilão de ferro velho, por um projetor de vídeo conectado à bateria da máquina. Enquanto ligada, a moto projeta animações do tipo storyboard, que João vem desenhando, já há alguns anos, com baforadas de cigarro ou alimentos processados rolando, girando… Segundo ele, a moto está pronta para rodar a cidade e lançar essas projeções sobre outras paisagens.

Um trabalho gêmeo deste está no andar de cima, este sim ocupando o espaço expositivo, executado com algumas diferenças. A moto de lanterna-projetora agora é colocada de ponta-cabeça e uma de suas rodas gira sem parar, simulando um projetor antigo de cinema. 

Outras obras pensadas para a mostra são adesivos, grandes demais para um carro e com pegadinhas na maneira que são fixados na parede. Um deles é um boneco Michelin mais magro do que o normal, esvaziado, afrouxado por suas linhas curvas mal coladas. Outro adesivo que joga com a própria superficialidade é o de um tigre que parece saltar de uma parede para a outra. As nervuras e bolhas de ar da colagem tosca realçam as listras do tigre. 

Em conjunto, o que os trabalhos da exposição acabam instituindo é uma espécie de oficina automobilística estranha, ela própria meio capotada, forjada a partir da rua mais antiga do centro de São Paulo. É claro que não passou despercebido para o artista os fluxos inquietos dos motoboys, frota de trabalhadores cujo ganho compensatório do trabalho está atrelado a agilidade com que fazem entregas de lá para cá. Além disso, de algum modo, todas as obras podem habitar paredes de galeria de arte ou de estacionamentos, atendendo às estéticas curiosas, até espirituosas, por vezes esperadas para estes lugares.


As obras se formulam a partir de exercícios conceituais que o artista já vêm trabalhando, estruturados a partir das impregnações do contexto. Pode-se falar que desde o início dos anos 2000, os trabalhos de João se assemelham a decalques de sistemas da sociedade de consumo tal como se apresentam para o mundo ordinário. Interessa ao artista reparar nos desenhos de objetos cotidianos, como as formas são condicionadas a partir dos usos, o feitio de seus acabamentos, sendo tais objetos consumíveis ou passíveis de troca, operando engrenagens ou não. A prática do João parte de perguntas-problema, de regras para a manipulação de materiais e objetos correspondentes a algum conjunto em investigação, que possam mantê-los em raciocínios visuais simples, quase perfeccionistas, ainda que nem sempre fáceis de encaixar em categorias comuns da arte como pintura, escultura ou até instalação. É significativo relembrar que em sua última exposição feita em galeria comercial (o projeto “1:1”, do curador Bruno de Almeida, na galeria Jaqueline Martins) João foi convidado a pensar o entorno da Vila Buarque e realizou um sem-fim de operações para os trabalhos serem construídos e ativados, montados fora do âmbito da galeria, envolvendo um tipo de risco e compromisso coletivo para sua existência.

O crítico de arte Cadu Riccioppo, pesquisador estreito do trabalho de João Loureiro desde o começo da trajetória de ambos, desfaz nos parágrafos iniciais do texto que assinou para a mostra um caminho simplificador para os procedimentos artísticos e interesses temáticos do João, “como se coubesse ao trabalho a tarefa ética de, em sua condição privilegiada de comentador da cultura, olhá-la de fora, para, então elucidá-la e permitir que ela possa ser debatida. (…) Aqui, perde-se de vista, por exemplo, o enorme esforço dessa obra em supor que coisas às quais relegamos os piores julgamentos de gosto possam ser vistas de outra maneira – divertidas, engraçadas, nonsense, mas, também, dotadas de inteligência própria, arredondadas em linguagens específicas, tornadas vocabulário (…)”

O caráter experimental da prática artística atual de Loureiro se revela também no jeito que embaralha o local destinado a mostrar arte, ocupando espaços físicos e discursivos inesperados para expressar imagens e modos de fazer que nem são tão dessemelhantes assim. A tal vizinhança “incomum”, seja espacial ou temática, é esmiuçada para o diálogo através dos procedimentos do artista. Não que o João se enquadre em alguma categoria de artista radical, artista político ou tradicional. Os seus gestos são radicais somente na medida em que realizam deslocamentos efetivos entre campos. É por isso que a obra-moto pode ainda sair do estacionamento e ganhar a cidade.

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