"Sacudimento da Maison des Esclaves em Gorée" (2015), Ayrson Heráclito (detalhe). Foto: Cortesia do artista.
Projeto Solo

Ayrson Heráclito: O lugar do sagrado

Alexia Tala
3 dez 2018, 11h44

Se a arte nos mostrou algo desde a modernidade, é sua funcionalidade histórica em desnaturalizar as premissas que assumimos como verdade. É sua função crítica que nos permite, por meio de sua experiência, olhar aquilo que dávamos por conhecido sob uma nova perspectiva.

Nesse sentido, em nossa época, parece ter-se invertido a direção de uma constante ligada com o religioso-místico. Com sua longa tradição secular, os contextos protagonistas do mundo ocidental instalaram a ideia de que o místico se relaciona diretamente com o primitivo, e este com algum tipo de atraso, daqueles que estão longe das glórias que a modernização trouxe para a vida do homem emancipado. Da perspectiva desse homem emancipado, o universo é mensurável e a natureza dominada. Os fracassos desse homem são, como bem sabe a América Latina, incontáveis. Suas consequências perduram e se replicam na mesma velocidade com que o mundo avança em direção às distopias que a ficção científica imaginou.

Acima: "Sacudimento da Maison des Esclaves em Gorée" (2015), Ayrson Heráclito (detalhe). Foto: Cortesia do artista.

"Transmutação da carne" (2015), Ayrson Heráclito, performance no Sesc Pompeia, São Paulo. Foto: Christian Cravo / Cortesia do artista.

"Transmutação da carne" (2015), Ayrson Heráclito, performance no Sesc Pompeia, São Paulo. Foto: Christian Cravo / Cortesia do artista.

"Transmutação da carne" (2015), Ayrson Heráclito, performance no Sesc Pompeia, São Paulo (Foto: Christian Cravo / Cortesia do artista)

"Transmutação da carne" (2015), Ayrson Heráclito, performance no Sesc Pompeia, São Paulo (Foto: Christian Cravo / Cortesia do artista)

Talvez seja por isto que a arte contemporânea tem optado não só por recuperar a memória do místico, mas também por inseri-lo em nossos tempos. A obra de Ayrson Heráclito se enquadra nessa problemática. Ela se centra na cultura afro-baiana, trazendo uma experiência de recuperação da religiosidade. Da perspectiva do artista, a arte não representa um terreno exclusivo, superior ou separado da trama social, podendo assim ser um espaço para remeter-se a essa força religiosa firmada no passado e presente dessas culturas.

Por meio da imagem fotográfica ou da imagem em movimento, o artista nos expõe a uma série de situações em que se apresenta — em modo de performance — o imaginário religioso baiano. Sua obra traz uma espécie de reivindicação por meio da encarnação que ele e outros participantes realizam nas performances documentadas. O que se encarna nestas cenas de caráter ritualístico, geralmente associados com a limpa e a cura, são saberes passados, e nelas são utilizados elementos orgânicos (milho, azeite de dendê, carnes, etc.) que acompanham a repetição de diversas ações.

Assim, é necessário dizer que a relação central que existe na obra de Ayrson Heráclito é entre o corpo e a história, e desse modo, com as distintas formas de violência ligadas à escravidão que continuam sendo exercidas, produto de longos processos colonizadores ainda presentes. No entanto, essa violência não adquire uma forma de denúncia direta, sendo em vez disso protagonizada pelos corpos. Uma ação repetida evoca a memória dela mesma, transforma o corpo num lugar de memória, lembrando por meio do ritualismo aquilo que foi perdido.

"Oxossi" (2008), da série "Bori", Ayrson Heráclito (Foto: Cortesia do artista)

"Oxossi" (2008), da série "Bori", Ayrson Heráclito (Foto: Cortesia do artista)

"Nanã" (2011), da série "Bori", Ayrson Heráclito (Foto: Cortesia do artista)

"Nanã" (2011), da série "Bori", Ayrson Heráclito (Foto: Cortesia do artista)

"Ogum" (2008), da série "Bori", Ayrson Heráclito (Foto: Cortesia do artista)

"Ogum" (2008), da série "Bori", Ayrson Heráclito (Foto: Cortesia do artista)

E ainda quando não somos espectadores diretos dessas cenas, algumas operações fílmicas permitem transmitir essa característica de desaceleração progressiva. Os ângulos fixos prolongados operam neste sentido, e o mesmo ocorre com a influência da composição fotográfica sobre objetos e pessoas. Esses dois fatores nos aproximam de um aspecto profundamente interessante do trabalho de Ayrson Heráclito em termos de experimentação formal: o artista desenvolveu a linguagem da imagem, incorporando ou focalizando certos elementos audiovisuais e visuais, sempre em paralelo com seu fazer performativo. Por sua vez, existe um interesse pela utilização dos recursos sonoros e pela música (aumento, redução, montagem), os quais também têm se complexificado e transformado ao longo de sua trajetória, passando de percussão para som ambiente.

A obra traz perguntas sobre o lugar do sagrado na atualidade, onde procurá-lo e como olhar. Para tanto, ela nos transporta a um ritmo diferente da experiência e do corporal, afastando-se da velocidade que tende a dominar as dimensões da vida contemporânea.

"Sacudimento da Casa da Torre" (2015), Ayrson Heráclito (Foto: Cortesia do artista)

"Sacudimento da Casa da Torre" (2015), Ayrson Heráclito (Foto: Cortesia do artista)

"História do futuro – Baobá: o capítulo da agromancia" (2015), Ayrson Heráclito (Foto: Cortesia do artista)

"História do futuro – Baobá: o capítulo da agromancia" (2015), Ayrson Heráclito (Foto: Cortesia do artista)

Setor Solo

Criado em 2014, o Solo é dedicado à exibição de projetos curatoriais focados em um único artista. Mais de cinquenta galerias nacionais e internacionais passaram pelo setor nos últimos cinco anos, como Blank (África do Sul), Casas Riegner (Colômbia), Elba Benítez (Espanha), Fragment (Russia), Nara Roesler (Brasil), Richard Saltoun (Inglaterra) e Ruth Benzacar (Argentina).

Representado pela Portas Vilaseca Galeria, Ayrson Heráclito foi selecionado para compor o eixo “Homens do paraíso e do inferno” do setor Solo na próxima SP-Arte. A 15º edição acontece de 3 a 7 de abril de 2019, no Pavilhão da Bienal (Parque Ibirapuera).

#sparte2019
#respirearte


alexia

Alexia Tala é curadora independente e diretora artística da Plataforma Atacama, Alexia Tala é especializada na pesquisa da arte latino-americana. Mais recentemente, se dedicou à curadoria geral da Bienal de Arte Paiz de 2020, na Guatemala, e à publicação de uma monografia sobre a chilena Lotty Rosenfeld. Foi co-curadora da 8ª Bienal do Mercosul – Ensaios de geopoética e da 4ª Trienal Poligráfica de San Juan de Puerto Rico, na 20ª Bienal de Arte Paiz da Guatemala. Escreve também para publicações de arte na América Latina e no Reino Unido, além de ser autora de “Installations and Experimental Printmaking” (UK, 2009). É responsável pela curadoria do setor Solo, na próxima SP-Arte.

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