Editorial
Em uma segunda fase da exposição “Helio Oiticica: A dança na minha experiência”, em cartaz no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) desde 12 de dezembro, o carnavalesco Leandro Vieira ingressou ao time de curadores como artista convidado da mostra e trouxe um importante adendo ao museu: a obra “Bandeira brasileira”, parte integrante do desfile de carnaval da Mangueira em 2019. A inserção de um objeto originalmente da avenida em uma instituição tradicional como o MAM Rio acende discussões complexas sobre a integração da arte produzida no carnaval em meios convencionais dos trabalhos contemporâneos.
A pouca — ou nula — presença de arte carnavalesca em grandes instituições e museus não é nova e também não mostrou grandes modificações com o passar do tempo. Leonardo Antan, historiador da arte, curador e escritor mestre em História da Arte pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que pesquisa a linguagem artística dos desfiles das escolas de samba, considera que “Muitas vezes a produção do carnaval é vista com muitas restrições, mesmo sendo um evento que reúne tantas linguagens como música, dança, teatro e visualidade. A produção carnavalesca é encarada como algo menor ou menos interessante, quando ela tem qualidades muito importantes como sua coletividade, seu alcance popular e sua potência de discurso.”
Dificilmente os carros alegóricos, fantasias e objetos que entram nas avenidas do Brasil anualmente são tidos como peças de arte relevantes e posteriormente inseridas no meio institucional. Esse obstáculo se deve muito à origem da festa, que é um produto cultural majoritariamente negro, fruto da resistência desses povos nas cidades onde são excluídos e que historicamente lutam para se inserir na história oficial contada pelas elites da sociedade, assim como fala “História pra ninar gente grande”, enredo da Mangueira em 2019.
Antan defende a inserção de obras carnavalescas nos meios institucionais como forma de contar a história de um Brasil diferente do que os livros contam. “Não se deve isolar carnaval como uma manifestação excêntrica ou deslocada do tempo, ela é retrato de um povo e do tempo em que está inserida, assim como a produção artística de qualquer outra linguagem. Ela é tão importante para a nossa identidade nacional como obras contemporâneas produzidas em áreas vistas como tradicionais.”
Confira documento produzido pela Revista Select detalhando as referências históricas do samba-enredo da Mangueira: https://mam.rio/wp-content/uploads/2021/01/38_a_41_Mundo-Codificado.pdf.
Neste aspecto, não faltam exemplos da contemporaneidade nos assuntos tratados nas avenidas. Em 2020, a escola paulistana Rosas de Ouro desfilou com o tema “a quarta revolução industrial” e em 2019, a Águia de Ouro escolheu a corrupção como assunto central de seu desfile. As obras de artes produzidas no contexto de carnaval não precisam necessariamente ter exposições dedicadas em curadorias exclusivas, podendo se juntar às mostras contemporâneas como outra forma usada para contar a história do povo brasileiro em seus diversos momentos.
Mesmo dentro do mesmo país são encontradas diferenças na inserção do carnaval na arte. Historicamente pode ser observada uma diferença de tratamento entre os carnavais do Rio de Janeiro e o de São Paulo. A primeira cidade tem uma relação mais próxima com os desfiles por conta da Revolução Salgueirense, na década de 1960, que trouxe artistas do Teatro Municipal e da Escola de Belas Artes para produzirem desfiles das escolas de samba, além do icônico desfile em homenagem a Xica da Silva, que conferiu ao carnavalesco Arlindo Rodrigues o “Prêmio de melhor figurinista brasileiro” na 7ª Bienal de São Paulo, em 1963, na categoria Teatro. “Acho que em São Paulo, esse movimento não aconteceu de maneira tão forte, talvez por um cenário de instituições mais elitizadas e menos abertas ao diálogo”, conclui o pesquisador. O mesmo acontece com outras cidades que tem carnavais mundialmente conhecidos, como Olinda, Recife, Salvador e Ouro Preto.
Período entre os anos 1960 e 1970 em que o Salgueiro liderou uma transformação para que o carnaval carioca deixasse de ser uma simples manifestação cultural popular e se transformasse num espetáculo grandioso conhecido em todo o mundo. O ponto alto deste período foi o desfile em que a escola do Rio de Janeiro homenageou, em 1963, Xica da Silva. Saiba mais em: https://sal60.com.br/sal60/
Podemos torcer para que a exposição no MAM Rio, que incluiu a bandeira do desfile de 2019, seja um pontapé para maiores inserções do carnaval nos meios institucionais. Juntamente a ela, na exposição de Hélio Oiticica, passista e mangueirense de carteirinha que leva o carnaval como inspiração em obras, estão os famosos “Parangolés”, obra de arte criada no contexto carnavalesco. Nelas, capas, faixas e bandeiras construídas com tecidos coloridos são usados, transportados ou dançados pelos espectadores-participantes que fazem parte da obra, que só faz sentido em movimento. Embora criados em contexto de carnaval, os Parangolés desfrutam de um status cristalizado como obra de arte do modernismo, frequentemente sendo expostos fora de seu contexto carnavalesco de concepção. A união de Oiticica com uma peça atual do carnaval reforça para os olhos dos visitantes e da crítica a importância da contextualização dos desfiles na montagem da história brasileira, principalmente da arte contemporânea produzida no país.
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