Entre doações e residências, colecionadores provam que a paixão pela arte vai muito além do investimento financeiro: é uma imersão profunda nesse universo

12 jun 2018, 11h58

Por Luciana Pareja Norbiato
Jornalista e crítica de arte

 

Um colecionador é, por natureza, alguém com paixão pelo acúmulo. O interessado em arte, no entanto, entra num domínio delicado, em que não basta apenas agrupar o maior número de peças, nem cuidar para que a compra de um novo exemplar seja rentável do ponto de vista financeiro. Quem cria um acervo acaba se envolvendo de tal forma com seu objeto de desejo que, quase inevitavelmente, deixa de ser mero espectador e assume uma postura ativa dentro desse universo, tornando-se um elo fundamental para a produção artística de seu tempo. De quebra, ainda se torna o guardião de um pedaço da história e da sensibilidade humanas. Desde os Médici, mecenas que fizeram de Florença a capital do Renascimento, passando pela família Guggenheim, que eternizou sua coleção nos famosos museus homônimos, donos de acervos privados articulam parcerias, fomentam exposições e ajudam instituições e artistas ao redor do mundo.

“Os colecionadores de arte definitivamente têm que ter responsabilidade social, mesmo que seja incentivando as instituições culturais, assim como iniciativas que apoiem a educação, a formação cultural dos artistas, seminários etc.”, defende Frances Reynolds (empresária e colecionadora), ela mesma um exemplo desse pensamento. Com uma carreira bem-sucedida nos negócios, a empresária argentina começou a colecionar arte em Nova York em meados da década de 1980. A exemplo da colecionadora brasileira Cleusa Garfinkel, iniciou pela arte primitiva. “No final dos anos 1980, passei a pesquisar arte contemporânea latino-americana, pois meus amigos interessados em arte falavam muito do Brasil. Um dos primeiros nomes brasileiros que me chamou a atenção foi Tunga.” Um gosto que ela também compartilha com Garfinkel, dona de uma pequena, mas significativa amostragem da obra do artista.

Seguindo os conselhos do curador Paulo Herkenhoff e do galerista Marcantônio Vilaça, seus “mentores nesse início”, Reynolds fundou em 1994, em Madri, a Fundación Arte Viva, e, em 1998, o Instituto Inclusartiz, no Rio de Janeiro. Por meio do último, a colecionadora passou a realizar, no Brasil, residências de nomes estrangeiros como o ubercurador suíço Hans Ulrich Obrist e o artista britânico Christopher Page. Christopher teve uma de suas instalações exibidas entre dezembro de 2017 e fevereiro último no MAM Rio graças à sua estadia por lá. Entre a produção de megamostras (como “De Picasso a Barceló”, que trouxe à Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2001, mais de cem obras do Museo Reina Sofía, na Espanha) e a atuação como membro do conselho consultivo de instituições tão diferentes entre si quanto o MoMA (NY) e o espaço de residências Capacete (RJ), entre outras, Reynolds descarta a possibilidade de criar um espaço público para seu acervo – cujo número de obras não revela. Ela prefere prestar auxílio a instituições já existentes, como a Delfina Foundation, com quem colabora para levar artistas brasileiros para residências. “A Delfina é uma entidade que integra, sempre convidando as pessoas para conhecer o trabalho dos artistas, curadores e colecionadores convidados.”

Collecting as Practice

Um desses convidados é Pedro Barbosa (colecionador), que deixou o mercado financeiro em 1999 para se dedicar ao colecionismo. Ele foi um dos convidados para a estreia do novo programa da Delfina, voltado para a atividade colecionista, o Collecting as Practice, em 2017. “O CAP promove a interação com o espaço de residência, pois os colecionadores geralmente não conhecem esse ambiente. Você participa, vê como é a gestão da residência, como é a seleção, convive com quem está lá também, tenta entender esse processo”, ele diz. Mesmo tendo também uma parceria no envio de artistas brasileiros para residências na Delfina e outra nos mesmos moldes com os artistas Maria Thereza Alves e Jimmie Durham na Europa, além de um apartamento na Rua Gabriel Monteiro da Silva, no qual recebe artistas e curadores estrangeiros, Barbosa nunca havia estado num espaço de residência, ainda mais na companhia de artistas que trabalham sobre coleções, além dos curadores da instituição.

“A residência para colecionistas é apenas uma parte de uma investigação mais ampla sobre a prática dentro desse programa temático. Ele procura trazer questões urgentes tanto para artistas quanto para colecionadores sobre a filosofia, a psicologia e a política de colecionismo”, explica Aaron Cezar, coordenador do projeto. Além da residência mista, o CAP promove palestras, workshops, exposições e performances ao longo de todo o ano. A ideia é mostrar que o papel do colecionador na atualidade vai muito além de “botar combustível no mercado de arte”. “Espero que isso inspire outros a considerar o valor social das artes e não apenas o valor financeiro dos objetos. Todos os nossos colecionistas residentes apoiam, comissionam e se unem a ideias intelectuais – precisamos de mais colecionadores que entendam seu papel crítico nesse contexto”, completa.

Mesmo se autodeclarando um “capitalista sem função social”, que credita à alçada das instituições públicas, Pedro Barbosa é um articulador da arte. Tanto pelas residências em que promove contato entre diferentes agentes artísticos quanto ao rumo que deu à sua coleção há quatro anos, quando passou a buscar materiais de arquivo em vez das obras em si. “Hoje tenho muito mais interesse em ephemera (materiais impressos ou escritos não produzidos para serem colecionados a longo prazo) do que em obra de arte. O papel histórico da arte tem me desafiado muito mais”, declara. Amealhando um arquivo considerável de convites, revistas de artista raras, catálogos, fotos, listas de preço, gravações em áudio e vídeo etc., ele espera reconstituir a história de certos períodos artísticos, em especial da arte conceitual, dança norte-americana e música dos anos 1960-70. “Quero atingir o meio acadêmico e que os pesquisadores de arte venham consultar esse material”, afirma.

Ajudar é o que move a empresária Cleusa Garfinkel, que acredita também em um posicionamento mais discreto no meio sem assumir um protagonismo. “O papel do colecionador não é só colecionar, mas se engajar em diversas ações”, defende. A paulista, que começou a adquirir suas primeiras obras na década de 1970, é hoje uma das maiores colecionadoras do país e um dos nomes mais reconhecidos pelo enorme suporte concedido a instituições culturais através de doações. MAM-SP, Pinacoteca, MoMA e MAR são alguns dos museus que receberam doações da empresária. Mais recentemente a dedicação de Cleusa também colaborou para recuperar a gestão do MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia).

Sua atividade de suporte a feiras e instituições não se restringe ao Brasil. “Estou bem engajada na Fondation Beyeler, na Suíça; sou membro da Ifema, que é a organização da Arco Madri, e da Art Basel Miami. Estou inserida no contexto das feiras e vou a praticamente todas. Procuro sempre atender aos compromissos e sempre atenta a ajudar.” Com uma coleção de cerca de 700 obras, Cleusa já começa a fazer planos para o futuro. “Avalio a possibilidade de abrir uma fundação com meu acervo e assim proporcionar ao público acesso a essas obras”, planeja.

 

Texto publicado na primeira edição da Revista SP-Arte, em abril de 2018.

 

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