Editorial
Cultura
Mário de Andrade: “Me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura”
Yasmin Abdalla
13 abr 2021, 13h06
Acabo de finalizar a leitura da biografia de Mário de Andrade, escrita pelo jornalista Jason Tércio (Estação Brasil, 2019). Mais do que conhecer os bastidores da produção literária de Mário ou do seu envolvimento com os primórdios do Modernismo brasileiro, o que mais me encantou na trajetória do escritor foi sua atuação como gestor cultural em São Paulo. Em 1935, Mário assumiu a chefia do Departamento de Cultura e Recreação da capital paulista — uma iniciativa pioneira na época, que tinha como objetivo “melhorar a qualidade e a quantidade de oferta cultural para a população, conjugando criações populares e eruditas”.
Algumas das ações implementadas por ele já não estão em consonância com as políticas culturais mais complexas que temos hoje em dia, mas, sem dúvida, foi uma experiência seminal no desenvolvimento do país, germinando, em especial, essa verve cultural que a cidade tem até hoje. Sobretudo em um momento de desmonte das políticas culturais a nível federal, a cultura da cidade de São Paulo, sob o comando do secretário Ale Youssef, mantém essa vocação ao oferecer possibilidades de sobrevivência ao setor, com o lançamento de editais de fomento e da expansão do Pro-Mac, Programa Municipal de Apoio a Projetos Culturais. Relembrar a história de Mário de Andrade na esfera pública é redescobrir possibilidades, traçando novos caminhos para a cultura na cidade e no país como um todo.
Acima: Mário de Andrade em meio às crianças em um dos parques infantis da prefeitura (Foto: Acervo Fotográfico do Museu da Cidade).
“Em busca da alma brasileira — Mário de Andrade”, por Jason Tércio (Ed. Estação Brasil, 2019, p. 368).
Um modernista no governo
Mas, afinal, como Mário de Andrade foi parar no governo paulistano? Desde o início do Modernismo brasileiro, entre as décadas de 1910 e 1920, os intelectuais e artistas que fundaram o movimento não apenas discutiam revoluções estéticas e práticas artísticas vanguardistas, mas também um projeto cultural para o Brasil — que, neste e em outros aspectos, ainda dependia de pensamentos e correntes em voga na Europa. Mário, em especial, advogava pela inclusão das mais diversas culturas brasileiras nessa construção identitária. Suas expedições por Minas Gerais, pela Amazônia e pelo Nordeste foram decisivas não apenas na produção de sua literatura, mas também para sua formação como intelectual e, mais adiante, como homem público.
Em 1933, o engenheiro civil Armando Salles de Oliveira assume o governo do Estado de São Paulo, nomeando Fábio Prado como prefeito da cidade. Prado traz para chefiar seu gabinete Paulo Duarte, antigo chefe de redação do Diário Nacional, que, dois anos depois, em 1935, convida Mário — por sua enorme reputação na área da cultura — para participar de uma proposta ousada: criar um órgão público para o setor cultural na cidade de São Paulo. “Aquele era o momento certo, porque a cultura e a produção de conhecimento, praticamente ignoradas pelo poder público, estavam entrando na agenda institucional. A confirmação mais eloquente disso havia sido a fundação da Universidade de São Paulo (USP) pelo governo estadual, no início de 1934”.
Mário não apenas ajudou na formulação da minuta da proposta, ao lado de Paulo Duarte, como participou de um comitê com outros intelectuais, dentre eles Antonio Almeida Prado (diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP) e Júlio de Mesquita Filho (diretor do Estado de S. Paulo), que redigiram o texto final do projeto. É ele também quem, em 1935, assume a direção do recém-criado Departamento de Cultura e Recreação da Cidade de São Paulo, a convite de Duarte. E como tudo que fazia na vida, o escritor se entrega de corpo e alma ao trabalho público, deixando de lado diversos projetos pessoais — inclusive no campo da literatura. A dedicação é tamanha que Mário chega ao ponto de escrever: “me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura”, em carta para seu amigo, o intelectual potiguar Luiz da Câmara Cascudo, em 1936. A frase deu título a uma das principais publicações sobre o assunto, co-organizada por Carlos Augusto Calil e Flávio Rodrigo Penteado (Imprensa Oficial, 2015).
“Em busca da alma brasileira — Mário de Andrade”, por Jason Tércio (Ed. Estação Brasil, 2019, p. 362).
O Departamento
Iniciativa pioneira na gestão da cultura, o Departamento recebia cerca de 10% do que era arrecadado pela prefeitura e dividia-se inicialmente em quatro seções: Expansão Cultural, Bibliotecas, Educação e Recreio e Documentação Histórica e Social (posteriormente foi criada uma quinta seção: Turismo e Divertimentos Públicos). Além de assumir a direção-geral, Mário era também chefe da seção de Expansão Cultural no começo do projeto. Entre os objetivos do Departamento, estavam estimular o desenvolvimento da arte, da educação e da cultura, promover espetáculos, organizar cursos populares de formação literária e científica, criar bibliotecas e parques infantis e cuidar do patrimônio histórico e artístico da cidade.
Apesar de algumas ações tomadas lá atrás poderem ser entendidas nos dias de hoje como certo dirigismo estatal na produção cultural, há de se pensar no pioneirismo da proposta de colocar a cultura como central na vida do cidadão, em um país que, à época, tinha uma taxa de analfabetismo em torno dos 65% (segundo dados do Censo de 1920). Além disso, já naquele período, Mário entendia a cultura como a entendemos hoje, ou seja, em sentido duplo, possuindo uma dimensão sociológica, centrada no desenvolvimento das linguagens artísticas, e antropológica, no qual a cultura engloba a forma de vida de uma sociedade, seus hábitos e práticas.
Vale lembrar que o Ministério dos Assuntos Culturais da França, considerado mundialmente como a primeira iniciativa nacional em prol das políticas culturais, só será criado em 1959, sob o comando do escritor e intelectual francês André Malraux.
Levantamento disponível em: https://bit.ly/3mF0RpX
Por isso, iniciativas como a expansão dos parques infantis públicos ofereciam não apenas atividades culturais às crianças, mas também a possibilidade de complementar o tempo escolar, com exercícios físicos, atendimentos médicos e alimentação. Durante a gestão de Mário, foram aparelhados com tais características três parques existentes, no Parque Dom Pedro II, região central, na Lapa e no Ipiranga, todos destinados aos filhos de trabalhadores e imigrantes mais pobres. “Tudo isso tinha um objetivo: construir uma consciência cultural e nacional desde a infância”. Os parques infantis de Mário de Andrade são considerados por muitos especialistas a origem da rede de educação infantil paulistana, visto que muitos desses parques tornaram-se Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEI).
As ações do Departamento também levavam em consideração a dimensão sociológica da cultura, por exemplo, organizando concursos de monografias, músicas e textos teatrais e oferecendo à população bibliotecas circulantes e apresentações gratuitas no Theatro Municipal, sobretudo de música erudita. Na área da literatura, a ampliação do acervo da Biblioteca Municipal — que hoje leva seu nome — foi uma das principais missões de Mário de Andrade, que incentivou a compra e a doação de livros, selos, moedas e pinturas. Foi nesse período também que o terreno da atual Biblioteca Mário de Andrade foi adquirido, justamente com o objetivo de abrigar um prédio que daria conta desse acervo expandido.
“Em busca da alma brasileira — Mário de Andrade”, por Jason Tércio (Ed. Estação Brasil, 2019, p. 369).
Sobre o assunto, ver reportagem “Mário de Andrade: Parques Infantis e o sonho antigo de uma infância livre”, por Pedro Ribeiro Nogueira (Portal Aprendiz, 2015, Disponível: https://bit.ly/2RxqPAb)
A importância do patrimônio
Não bastasse todas essas ações que impactaram diretamente a vida cultural de muitos cidadãos de São Paulo, o Departamento de Cultura e Recreação, sob comando de Mário de Andrade, foi também uma iniciativa essencial para a preservação do patrimônio histórico e artístico não só da cidade, mas do país como um todo. Destaco aqui duas dessas ações. A primeira delas foi a criação de um Discoteca Pública Municipal, sob responsabilidade de Oneyda Alvarenga, jornalista e folclorista brasileira, que organizaria discos e partituras de músicas brasileiras eruditas e folclóricas, comprados e doados por diversas entidades. “Mário idealizava a Discoteca não como uma simples sala de discos para audição do público, mas como uma fonte dinâmica de pesquisa e recuperação da memória musical do país”. Lá havia também uma seção de gravação e registro audiovisual; o Departamento promovia, inclusive, lançamentos de discos com seleções de músicos brasileiros. A Discoteca Oneyda Alvarenga, sediada hoje em dia no Centro Cultural São Paulo, foi criada a partir desse acervo catalogado e preservado desde os anos 1930.
“Em busca da alma brasileira — Mário de Andrade”, por Jason Tércio (Ed. Estação Brasil, 2019, p. 373).
Ao final de sua gestão, Mário não deixou de surpreender. Em fevereiro de 1938, partiu de São Paulo a Missão de Pesquisas Folclóricas, formada pelo arquiteto Luiz Saia, pelo musicólogo Martin Braunwieser, pelo técnico de som Benedito Pacheco e pelo assistente Antônio Ladeira. Além de propor o roteiro de pesquisa, com base em suas próprias experiências expedicionárias, Mário conseguiu uma verba do Departamento para a realização da Missão, que tinha como objetivo pesquisar manifestações culturais de estados do Norte e Nordeste, gravando, fotografando e documentando músicas e danças populares, bem como reunindo um acervo de artefatos dessas regiões. Boa parte desse material audiovisual — muito se perdeu, infelizmente — foi catalogado por Alvarenga, na Discoteca Pública. É incrível pensar como essas mesmas culturas, que à época pareciam tão distantes, foram seminais na construção da cidade de São Paulo anos depois, quando ocorreu um grande fluxo migratório do Nordeste para a capital paulista.
Em maio de 1938, Fábio Prado é substituído por Prestes Maia na prefeitura de São Paulo, e Mário é o primeiro diretor de departamento a ser exonerado pelo novo prefeito, permanecendo, no entanto, como diretor da seção de Expansão Cultural. Mas com carga horária e salário reduzidos — estratégias até hoje utilizadas para o desmonte do setor —, desanimou-se. , Decidiu, por fim, sair do Departamento e partir para o Rio de Janeiro. Não sem antes, é claro, ter revolucionado como a cultura é pensada nas políticas públicas dessas terras tupiniquins.
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