Editorial
Review
Desobediências poéticas e a urgência da descolonização do pensamento
Carollina Lauriano
24 jul 2019, 15h55
Nos últimos anos, os espaços institucionais têm se voltado ao esforço de revisionar seus acervos – e assim, a própria história da arte – em um entendimento de que é necessária a inclusão de outras narrativas não contempladas pelo pensamento hegemônico eurocêntrico. Sob esse aspecto, a fim de incitar novas discussões sobre sua coleção de arte pautada nos séculos 19 e 20, a Pinacoteca de São Paulo apresenta ao público a exposição “Desobediências poéticas”, da artista interdisciplinar Grada Kilomba.
Colocando-se como um (bom) desafio para o espectador, a exposição apresenta uma escultura, “Table of Goods”, e três videoinstalações – “Illusions Vol. I, Narcissus and Echo” (2017), “Illusions Vol. II, Oedipus” (2018) e “The Dictionary” (2019), que juntas totalizam quase uma hora e meia de exibição. Embora este número de horas possa assustar (vivemos em tempos fracionados!), o que é esse curto espaço para novas histórias se criarem, comparado há séculos das mesmas narrativas sendo passadas adiante? É aí que mora a grande inteligência do trabalho de Kilomba: usar dessa tradição oral de perpetuar histórias ao longo do tempo para criar as mensagens que ela própria quer contar daqui em diante.
Acima: "Illusions Vol II, Oedipus" (2018), Grada Kilomba. Foto: Cortesia da artista e da Pinacoteca de São Paulo.
Em sua série “Illusions”, Kilomba revela a história reprimida do colonialismo e seu legado traumático. Em cada volume, desenvolvido em videoinstalações de dois canais, a artista reconta mitos gregos que gradualmente são desconstruídos, transformando-se em uma análise profunda das opressivas relações sociais que recaem sobre corpos das minorias majoritárias. Valendo-se da tradição oral de contação de histórias africana e usando elementos que aliam coreografia, performance, teatro, cinema e composição musical, a artista traz à tona questões de como as histórias são contadas, por que são contadas e quem pode contá-las.
Apresentada pela primeira vez na 32ª Bienal de São Paulo, “lllusions Vol. I, Narcissus and Echo” se dedica a falar sobre políticas de invisibilidade. Ao recriar a história de Narciso, Kilomba apresenta uma sociedade que não resolveu sua questão colonial e olha para si como único objeto de amor. Se para Narciso existe apenas o encantamento exclusivo por sua imagem refletida no lago, e para Echo há o fado de repetir eternamente as palavras de Narciso, com isso a artista nos faz questionar o que é necessário para que possamos romper com essa reprodução dos moldes coloniais e patriarcais.
Comissionada pela 10ª Bienal de Berlim, “llusions Vol. II, Oedipus” dedica-se à política do racismo e da violência institucionalizada contra corpos negros. Ao se referir ao mito de Édipo, que cresce predestinado a matar seu pai e casar com sua mãe, Kilomba explora o papel que o destino desempenha em corpos que estão inseridos em um sistema de opressão cíclica, ainda pautado pela branquitude que não consegue conceber seus medos coloniais da perda do trono. Como Kilomba coloca em seu vídeo: “Foi o pai que viu a criança como rival e que, em primeiro lugar, planejou matá-la”.
“The Dictonary” é uma videoinstalação multicanal, criada especialmente para a Pinacoteca, que analisa o significado de cinco palavras: negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação. Ao explicar cada palavra, a artista pretende criar um caminho de conscientização das palavras que dizemos, propondo um caminho de cura e autoestima para um povo que não escolheu por sua própria inferiorização. Por fim, “Table of Goods” invoca o período de escravidão e os traumas causados pelo colonialismo. A escultura relembra as mortes de negros escravizados que foram forçados a trabalhar até a morte em fazendas de café, cana-de-açúcar e cacau, nos indicando também como esse trauma ainda não foi tratado pela nossa sociedade.
Concentrando-se em temáticas como memória, trauma, raça e gênero em condições pós-coloniais, o trabalho de Grada Kilomba possui a poderosa beleza de tocar a ferida colonial. É fácil observar que, a medida que o trabalho de Kilomba vai se desenvolvendo, vai tornando-se indigesto a certos corpos que ocupam as salas de exibição dos vídeos. A exposição é desafiadora, devolvendo a “incômoda sensação” de refletir que o racismo é uma problemática branca.
Em tempos nos quais observamos um retrocesso de pensamento, onde Narciso apegado ao próprio reflexo recusa-se a prestar atenção em algo que não seja sua própria imagem, faz-se extremamente necessário exposições como a de Grada Kilomba, e outros artistas que tomaram para si a revisão histórica como forma de recriar novas possibilidades de existência. Enquanto uns ainda estão apegados aos medos das diferenças, Kilomba nos mostra que olhar para frente é a única possibilidade de novos futuros.
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Este texto faz parte de uma série de reviews publicadas no site da SP-Arte.
As opiniões veiculadas nos artigos de autores convidados não refletem necessariamente a opinião da instituição.
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