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Ensaio

Fotografia: entre o clássico e o moderno

Marcia Mello
28 nov 2020, 6h58

“Mergulhar as coisas na luz é mergulhá-las
no infinito”
Leonardo da Vinci

A pintura e a fotografia nutriram-se mutuamente de uma relação dinâmica, com desafios maiores e menores ao longo do tempo. Os novos critérios visuais gerados pela fotografia influenciaram pintores; fotógrafos adotaram olhares pictóricos. Entre o clássico e o moderno, uma relação que se define por oposições e identidades:

Eu mesmo não tenho dúvida que a própria existência de certas escolas de pintores modernos se deve à influência da fotografia; pode ser possível que não haja câmera com eles, mas sua visada é, não obstante, uma visada fotográfica e a influência de que eu falo é diretamente traçável, pois, não fosse pela fotografia, o olho nunca teria visto a natureza como estes pintores a vêem.

“Duplo Olhar” procura pensar as relações entre pintura e fotografia cobrindo um período que vai da década de 1920 aos anos 1980. A exposição reúne pinturas da coleção Roberto Marinho – com obras dos mais importantes artistas modernos brasileiros – e fotografias provenientes de acervos públicos e privados do Rio de Janeiro e São Paulo.

Parte significativa do conjunto de fotografias foi produzida  no seio dos foto clubes, associações de fotógrafos amadores que se reuniam para discutir temas e técnicas, realizar exposições e concursos, numa rede de intercâmbio que abrangia um amplo cenário, tanto em âmbito nacional como internacional, uniformizando, de certa forma, a prática fotográfica. Privilegiam-se na exposição, dois momentos da fotografia brasileira: a tendência pictorialista e o rompimento com essa estética nos anos 1940-50.

Alfred Hartley, 1893.

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As publicações eram uma das formas de disseminação e intercâmbio entre os fotoclubistas. Tóquio, Havana, Lisboa, Paris, São Carlos, Jaboticabal, Porto Alegre, Sergipe; as fotografias impressas circulavam uniformizando práticas e olhares. 

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No período inicial, as técnicas artesanais eram de grande interesse nas acaloradas discussões travadas entre os fotógrafos associados aos foto clubes. Nos boletins, revistas e catálogos organizados e publicados por seus membros, como a “Revista Photogramma” do Foto Club Brasileiro, “Foto-cine” do Foto Cine Clube Bandeirante, “SFF” da Sociedade Fluminense de Fotografia, entre tantas outras,  encontramos textos sobre estética; estudos sobre ótica, geometria e perspectiva; fórmulas químicas; notícias sobre salões de arte fotográfica; conselhos práticos e procedimentos técnicos diversos. Entre os fotógrafos acadêmicos, as técnicas favoritas eram o bromóleo, que acentuava a granulação da imagem, o colorido da goma-bicromatada, o carbon print, resultando em verdadeiros simulacros da pintura que precede o impressionismo.

Eliminar o excesso de nitidez, suprimir minúcias, burlar a dureza da cena retratada através de artifícios como a interposição de camadas transparentes e ampliações com redução progressiva de foco são alguns dos procedimentos adotados pelos pictorialistas. Desta forma, os meios tons e a gradação dos planos poetizam a paisagem, o flou suaviza os retratos.  Fotografias encenadas, natureza morta, arranjos acadêmicos convencionais evidenciam a influência da pintura neste período.

A fotografia produzida no Brasil no início do século XX não espelhou as transformações ocorridas na literatura e nas artes visuais que eclodiram na Semana de Arte Moderna, em 1922. A fotografia não renovou imediatamente os cânones tradicionais, não produziu as mesmas experiências dos poetas e pintores atuantes naquele momento. Uma exceção no conjunto da produção fotográfica da época é representada pelos exemplares fotográficos de Mario de Andrade realizados em suas viagens expedicionárias ao norte e nordeste do país. Seu legado imagético – sobretudo seu pensamento sobre a fotografia –   impulsionou novas concepções. Como fotógrafo aprendiz, ele via essa prática como “o dom de apanhar a poesia do real”.

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Selos e carimbos ilustram o aceite de participação nos salões promovidos pelos fotoclubes brasileiros e estrangeiros e comprovam o alcance da rede dos fotógrafos associados. Colados no verso das fotografias, forneciam informações técnicas e valorizam a imagem e seu autor.

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A inquietação intelectual de alguns fotógrafos independentes ou ligados aos foto clubes acabou por promover o rompimento com o pictorialismo. Em suas práticas, subjetivaram a fotografia, atualizaram temas, gestuais e princípios com técnicas mais experimentais de produção de imagem. O senso de composição muda com os ângulos inusitados (o plongé e o contra-plongé), demonstrando um amadurecimento no enquadramento e dando vazão a um olhar criador através da câmera fotográfica. Contrariando os cânones do pictorialismo, os fotógrafos modernistas se confrontam com as regras tradicionais e dialogam mais abertamente com a produção das artes visuais de sua época.

Não se discute mais se a Fotografia é Arte ou não é Arte, pois sabe-se muito bem que a câmara fotográfica em si, não passa de um instrumento como outro qualquer – pincel, carvão, cinzel, etc…

A fotografia moderna caracteriza-se pela  redefinição do olhar através da câmera; a busca pela abstração ocasional é obtida no ato fotográfico. O interesse pela composição cria uma nova percepção do espaço com a subversão de planos e o registro radical de luzes e sombras. Atitudes mais drásticas resultaram em grafismos, efeitos obtidos através do desfoque voluntário ou do movimento da câmera, distorções óticas com uso de texturas sobrepostas no momento da ampliação, entre outras técnicas mais ousadas.

 

Jacob Polacow, 1949.

Rolleiflex

Rolleiflex, a câmera preferida dos fotógrafos da época, permite dupla ou mais exposições num mesmo fotograma. Os efeitos obtidos no ato fotográfico dão dinamismo e permitem composições de viés surrealista.

Dentre os procedimentos valorizados no período estão o alto-contraste, a solarização, a fotomontagem, a sobreposição de imagens, o fotograma. O papel brilhante ganha interesse, em detrimento do papel fosco usado até então. Entre as práticas experimentais mais radicais estão as “Fotoformas” (1949-50) de Geraldo de Barros e as “Recriações” e “Derivações” (1956-62) de José Oiticica Filho. Abdicando de câmeras fotográficas, algumas das imagens são obtidas no laboratório fotográfico, sem “clic” e sem negativo. Formas são criadas e produzidas em transparências (placas de vidro, acetato) ou diretamente nos papéis fotográficos.

A abstração, como subversão do tempo e espaço, consolida uma prática que se estende aos dias de hoje. Fratura de planos, exploração de linhas, geometrização da luz e contrastes radicais representam o legado desse produtivo momento da arte brasileira.

A fotografia praticada na primeira metade do século XX utiliza formatos menores e explora as possibilidades do preto e branco, segundo as condições oferecidas pela indústria fotográfica daquele período. As experiências com a cor, através de técnicas artesanais como a goma bicromatada, o bromóleo transportado, eram muito valorizadas nas discussões fotoclubistas. A fotografia colorida populariza-se e torna-se acessível a um público mais amplo nos anos 1970, revelando o desejo de uma produção sintonizada com as questões do momento.

O ambiente dos fotoclubes era predominantemente masculino. O Salão Feminino de Arte Fotográfica, realizado em São Carlos, em junho de 1951, foi uma iniciativa isolada e contou com a participação de 29 fotógrafas, entre elas Menha Polacow e Hermínia de Mello Nogueira Borges.

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O legado do Foto Club Brasileiro (criado em 1923 no Rio de Janeiro), do Foto Cine Clube Bandeirante (criado em 1939 em São Paulo) e da Sociedade Fluminense de Fotografia (criada em 1944 em Niterói) serviram de base para que “Duplo Olhar” refletisse sobre pontos de convergência entre pintores consagrados e fotógrafos. As obras foram agrupadas por afinidades formais ou temáticas nas salas de exposição. Os gêneros praticados na pintura – retrato, autorretrato, paisagem, natureza morta, marinhas e abstração – foram adotados também na fotografia e serviram de roteiro na concepção dos espaços da presente mostra. A dinâmica da exposição salienta esses encontros, colocando, lado a lado, pintura e fotografia. Identidades poéticas ou estéticas associam-se, ora mais perceptíveis e literais, ora de maneira mais livre e sutil.

“Duplo Olhar — a pintura e a fotografia modernas brasileiras” —,  promove um diálogo lúdico e enriquecedor entre essas práticas artísticas. Colocadas frente a frente, sem hierarquia, é possível perceber afinidades nos traços, nos gestos e nas composições. Com pigmento e tela ou luz e prata, pintores e fotógrafos encontram-se, inovam e multiplicam possibilidades de ver e interpretar o mundo.

O texto acima foi previamente publicado no catálogo da exposição “Duplo Olhar: pintura e fotografia modernas brasileiras”, que teve curadoria de Marcia Mello e Paulo Venancio Filho e foi apresentada na Casa Roberto Marinho (RJ). Confira abaixo o texto introdutório da publicação:

Duplo olhar: pintura e fotografia modernas brasileiras

José Pancetti e Gaspar Gasparian; Di Cavalcanti e Geraldo de Barros; Tomie Ohtake e José Oiticica Filho. Pintura e fotografia modernas brasileiras foram colocadas lado a lado na exposição coletiva “Duplo Olhar”, exibida na Casa Roberto Marinho entre os dias 5 de dezembro de 2019 e 26 de abril de 2020. Com curadoria de Marcia Mello e Paulo Venancio Filho, a mostra explorou as possibilidades visuais desses encontros. Uma seleção de sessenta pinturas da Coleção Roberto Marinho em diálogo com  160 fotografias de diversas coleções particulares e institucionais fizeram parte desse painel da nossa arte produzida na primeira metade do século XX.

Dividida em sete recortes curatoriais – Eu e minha imagem, Eu e o outro, Natureza-morta, Cenas brasileiras, A presença do mar, A linguagem da natureza e Abstrações – a exposição apresentou pinturas de dezenove expoentes da arte brasileira: Alberto da Veiga Guignard, Antonio Bandeira, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Djanira, Frans Krajcberg, Iberê Camargo, Ingeborg Ten Haeff, Ismael Nery, Jose Pancetti, Lasar Segall, Maria Helena Vieira da Silva, Maria Polo, Milton Dacosta, Roberto Burle Marx, Tikashi Fukushima, Tarsila do Amaral, Tomie Ohtake e Yolanda Mohalyi.

Entre os trinta e nove fotógrafos que integraram a mostra, a curadoria reuniu nomes relevantes como Carlos Moskovics, Chico Albuquerque, Eduardo Salvatore, Fernando Lemos, German Lorca, Gertrudes Altschul, H. Fellet, Haruo Ohara, Hermínia Nogueira Borges, Jacob Polacow, Jayme Moreira de Luna,  José Reis, Marcel Gautherot, Marcel Giró, Menha Polacow, Paulo Pires, Pierre Verger, Rubens Teixeira Scavone, Thomaz Farkas, entre outros.

Reproduzido acima, um dos textos do catálogo da exposição, intitulado “Fotografia: entre o clássico e o moderno” de autoria de Marcia Mello, aprofunda alguns tópicos sobre a proposta da exposição e a fotografia praticada nesse importante período da arte brasileira. O catálogo conta também com o texto “A necessidade do olhar” de Paulo Venancio Filho e com a reprodução integral das obras expostas.


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Marcia Mello é bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e atua como pesquisadora, curadora e conservadora de fotografia. Curou recentemente as exposições “Duplo Olhar – pintura e fotografia modernas brasileiras” na Casa Roberto Marinho e “Ortiz Rubio Alexim, registros afetivos dos anos 50” no Gabinete de Leitura Guilherme Araújo, ambas no Rio de Janeiro.

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