Editorial
Entrevista
Desviar das normas, com Carlos Motta
Felipe Molitor
24 out 2019, 18h12
É notório como as discussões sobre gênero e sexualidade tomaram espaço no debate político e cultural do país. No caso das artes visuais, principalmente em sua face comercial e colecionista, ainda são poucas as galerias de arte, ao menos no circuito tradicional de São Paulo, que buscam tomar posições categóricas ao lado dos artistas.
O colombiano Carlos Motta, representado agora no Brasil pela galeria Vermelho, é um artista com importante inserção internacional para trazer à tona essas discussões em espaços pouco afeitos à diversidade. Radicado desde os anos 1990 em Nova York, onde também atua como professor, Motta participou da 32ª Bienal de São Paulo (2016) e fez individuais em instituições como Stedelijk Museum, na Holanda (2017), e o Pérez Art Museum, em Miami, nos Estados Unidos (2016).
A mostra “NÓS, X INIMIGX” é sua primeira exposição solo por aqui. As esculturas, fotografias e vídeos apresentados formam um potente conjunto que desafia discursos artísticos e políticos dominantes sobre identidade de gênero e sexualidade, demonstrando como os lugares comuns do preconceito, na vida e na arte, derivam em grande medida de nossa herança colonial cristã. Confira abaixo entrevista com o artista.
Acima: Fachada da galeria Vermelho com o trabalho "Formas da liberdade: Triângulo", Carlos Motta (Foto: Edouard Fraipont / Galeria Vermelho)
Você já veio outras vezes ao Brasil, mas o que tem achado de São Paulo nesta visita? Como você percebe a atmosfera da cidade e que tipo de pesquisas pôde realizar desta vez?
Carlos Motta: Creio que esta seja minha quinta vez em São Paulo, já a conheço um pouco. Infelizmente, foi uma viagem curta e fiquei a maior parte do tempo trabalhando [na exposição], não tive tempo para estar em contato com coletivos ou pessoas específicas, mas tive experiências com amigos pela cidade e visitei algumas mostras: estive no Panorama da Arte Brasileira, no MAM, e hoje [dia 8] fiz uma visita guiada pela Bienal Videobrasil. Visitei o espaço Pivô, o Museu Afro-Brasil, o Masp. Desta vez conheci o Esponja, onde houve uma competição de vogue e tive a oportunidade de ver um pouco do que os voguers brasileiros estão fazendo. Sinto que há, sim, uma tensão social e política bastante forte, são muitas conversas acerca da política atual. Amigos e pessoas próximas, sobretudo LGBTQ+’s, temem as políticas de estado em relação às suas comunidades, com seus corpos, o acesso a serviços sociais e à medicina, com muita incerteza ao que pode vir no futuro.
Você poderia comentar o título da mostra: quem somos nós, e quem é o inimigo? Que provocação é essa e quais as disputas em jogo?
O título parte de duas obras, mas originalmente de uma delas, que se chama “WE, THE ENEMY” [NÓS, O INIMIGO], a partir de um manifesto que escrevi em colaboração com um coletivo do qual eu faço parte, o SPIT! (Sodomite, Inverts, Perverts Together!) [Sodomitas, Pervertidos, Invertidos Unidos!], formado em 2017 por mim, pelo escritor John Arthur Peetz e pelo dançarino Carlos Maria Romero. Apresentei esse trabalho na Frieze, em Londres. Aqui nesta exposição na forma de uma vídeoperformance, levada a cabo pela artista grega Despina Zacharopoulos, o manifesto compila diversas palavras historicamente utilizadas de maneira pejorativa para diferenciar certas comunidades, mas que são reapropriadas por essas mesmas comunidades para dar um significado positivo. O manifesto tem todos os tipos de expressão e termina dizendo: “todas essas pessoas são e sempre serão o inimigo”, posicionando-se contra o poder dominante, contra àqueles que sempre utilizaram essas palavras com uma ênfase moral, religiosa, pelo respeito aos valores familiares. Sobretudo, há uma ideia de que nós [a comunidade LGBT+] temos a agência de nos chamar como nós queremos e vamos sempre responder antagonicamente às formas discriminatórias utilizadas historicamente. Somos um coletivo plural, no sentido de que podemos abarcar todas as pessoas que se sintam identificadas com alguma dessas palavras.
A outra obra é similar, e está instalada logo abaixo do vídeo. São figuras vazadas, baseadas em esculturas e culturas históricas, que representam a imagem do diabo, sobretudo o diabo da igreja católica. Me interessava como o diabo quase sempre foi representado como um desviante, feminizado, com alguma parte [da figura] sexualizada, o que ecoa, de alguma forma, as palavras que eu utilizo no manifesto, e por isso que [as obras] possuem o mesmo título. São cerca de quarenta rostos desviantes, marcados por algum tipo de entendimento discriminatório de personalidade ou fisionomia.
Sofremos não apenas com a instabilidade dos atuais governos conservadores, mas também com a histórica violência de gênero e identidade sexual. Esta situação específica te atravessou para realizar essa mostra? De que forma sua exposição responde ou atua em relação contexto particular brasileiro?
Essas temáticas que manejo no meu trabalho, sobre sexualidade e gênero, são temáticas que lido há muitos anos e já trabalhei em distintos contextos geográficos, em diferentes países. Nunca fiz um trabalho específico para o Brasil, há somente uma peça, “Formas da liberdade” [fachada da galeria e pôster], que remonta alguns momentos históricos que concernem às minorias de sexo e gênero no Brasil. Mas eu creio que, tanto para a galeria quanto para mim, entender o contexto de censura e discriminação que há sobre essas minorias foi a motivação para apresentar esta exposição com temas bastante específicos. Aqui [a galeria] é um espaço privado, não seria objeto de censura, mas pensamos em apresentar diferentes perspectivas, como as histórias sobre o HIV/SIDA, por exemplo, ou as histórias de perseguição histórica de “sodomitas”. Assim respondemos ao clima conservador do momento.
Costuma-se associar a ideia de normalidade, de normatividade, com algo mais próximo do neutro, daquilo que não age e nem reage. De que forma a normalidade e a normatividade são opressoras?
Esta é uma questão complexa, mas a respeito dessa exposição, todas as obras estão respondendo a uma ideia do que é normal, ao que foi naturalizado como respeitável: o corpo são e saudável, que não se desvia das normas da família por exemplo, utilizado apenas para a reprodução heterossexual; as obras reagem a essa ideia de um corpo que é utilizado apenas para a reprodução se não é também utilizando para o prazer, ou um corpo que foi marcado por uma enfermidade e por isso se configura de uma forma diferente, os corpos que são marcados pelas opressões históricas em relação à raça, por exemplo, ou às crenças religiosas… Então são sempre reações ao que, historicamente, se entende como a norma, a exposição busca se desviar do que está canonizado como o correto.
Suas obras nascem para o campo da visibilidade, da denúncia, das contranarrativas, tomando as histórias do passado e do presente. Sua pesquisa também lida com a imaginação, com a invenção e a especulação, com o futuro?
Para mim, há três dimensões que me fazem me envolver em um projeto. Uma delas é o campo visual de documentação. Nesse sentido, me interessa trabalhar com pessoas e coletivos que estão lutando por direitos no presente, sejam coletivos de homens gays, mulheres trans ou sem gênero. Gosto de criar estratégias de colaboração com as pessoas que estão sendo documentadas para que seja um projeto de autorepresentação e de representação de suas lutas por empoderamento social e político.
Em uma segunda dimensão, às vezes utilizo meu próprio corpo, através da performance, para trabalhar as questões da luta por direitos de sexo e gênero. É o caso do vídeo “Legacy” [Legado], que registra a minha tentativa de repetir, com uma mordaça de dentista, uma linha do tempo sobre o HIV ditada a mim. Busco transformar o conteúdo do texto através do meu corpo.
A última chave que uso nessa exposição é o que se chama de ficção-documental, que envolve todas as obras da série “Corpo fechado”. Baseio-me na transcrição de um relato de José Francisco Pereira, um africano do século 18, escravizado e trazido ao Brasil, que foi condenado ao exílio pela inquisição portuguesa não só por fabricar amuletos para seus companheiros, o que era considerado feitiçaria, mas por ter confessado ter feito pactos e copulado com “demônios masculinos”. O que faço é uma projeção, uma ficção a partir deste relato, e não é a primeira vez que uso essa estratégia. Para misturar, era importante usar um ator que encontrasse uma conexão real com essa história, que não fosse apenas um ato de representação cênica. Por isso trabalhei com Paulo Pascoal, cuja história tem muito a ver com a história do personagem, e por isso que meu vídeo entrevistando o Paulo abre a exposição. Ele tinha uma carreira reconhecida como ator em Angola, mas após assumir sua homossexualidade na televisão, foi vítima de ataques e hoje está em Portugal sem poder retornar a seu país de origem.
Pensando em problemas correntes na arte, como apropriações, generalizações, e até ufanismos: por que uma atuação ético-política é importante para as práticas (e na plástica) do artista contemporâneo?
Uma atuação ético-política deve ser entendida para qualquer cidadão, não apenas para o artista. O que creio é que a arte cria uma plataforma onde se podem tomar discursos mais contundentes sobre essas temáticas [de gênero]. Agora, a mim, não interessa permanecer apenas dentro das instituições de arte ou do mercado de arte, sempre há uma conexão do trabalho com o mundo real, fora da arte. Não pretendo que o trabalho atue restrito ao campo social, mas que seja veículo de visibilização e possa criar espaços. São estratégias de representação, autorrepresentação, presentificação, para que os projetos sejam interessantes, tanto para o público quanto para quem participou [do projeto]. Fiz muitos projetos que operam tanto dentro da instituição como fora dela, e que poderiam ser utilizados livremente pelos sujeitos que fizeram parte.
Mas e o mercado de arte, como é possível trabalhar com este campo?
Sou pragmático, e assim como o trabalho circula nas instituições de arte e fora dela, ele pode circular também no mercado de arte. Têm obras que apresento em contextos específicos, entendendo a quem eu falo, em que tipo de conversas, que plataformas. “Legacy” eu nunca apresentaria numa feira de arte. Aqui [Vermelho] é uma galeria comercial, mas é pública, tem pessoas que podem vir aqui pra encontrar algo. Sendo um artista que está circulando nesses campos, preciso entender as particularidades de cada conteúdo para que eles não sejam descontextualizados.
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