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na internet

Caminhos alternativos online para a arte

Felipe Molitor
24 abr 2020, 15h12

De um jeito ou de outro, todo o circuito de artes visuais está um pouco mais digitalizado na quarentena. Como “o circuito” não é uma entidade única e homogênea, diferentes agentes desse sistema – galerias, museus, institutos, escolas, editoras – movimentam-se no terreno virtual durante o período de isolamento social com velocidades, propósitos e intensidades distintas entre si. De um lado, galerias de arte e escritórios de art advisory turbinam as redes sociais, valendo-se das lives, takeovers e picks dos artistas e especialistas em arte para se aproximar de maneira inédita de seus públicos. A premissa dessas novas interações, claro, é ampliar as possibilidades comerciais e a “força da marca” na vitrine online. Algumas galerias precipitadas, entretanto, recaem até em um tratamento acessório dos artistas e suas obras. 

Numa linha lateral, os artistas e pesquisadores da arte, todos em casa, também estão se adaptando ao espaço digital. Mesmo que embalados por algum clima de ansiedade, é razoável que a partir dessas figuras possam surgir algumas respostas menos automatizadas e mais questionadoras para o imperativo subliminar de produtividade em tempos de pandemia. A grosso modo, o processo de digitalização que se intensifica não substituirá atividades artísticas comuns de pintar, desenhar, esculpir ou investigar, no corpo a corpo, o mundo físico.

Há muito tempo já existem obras de arte feitas online e espaços virtuais de exibição ou de acervo. A grande novidade é a quarentena global, que nos coloca de frente para a tela dos computadores e celulares como se fosse a única saída de conexão com o exterior, implicando em outras demandas e na invenção de caminhos diferentes para as artes visuais “online” daqueles traçados até aqui. Nascem iniciativas que realizam uma reflexão em tempo real sobre os limites e as possibilidades da renovada pressão de migração da arte para o virtual, sem a ambição de perdurar ou substituir o imprescindível.

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https://www.covideo19.art/

A plataforma covideo19.art nasceu do encontro e do diálogo prévio entre três curadoras independentes – Bianca Bernardo, do Rio de Janeiro, Cherine Karam, baseada em Beirute, e Amanda Abi Khalil, também do Líbano, que vive há um ano na capital carioca. O anseio de todas é de manter alguma prática curatorial, de pesquisa e produção de conhecimento, diante da suspensão inesperada de projetos, compromissos e do convívio social. Uma semana depois do início da quarentena, em dois dias, o site já estava no ar. A premissa é simples: semanalmente, as curadoras se reúnem, apresentam e discutem obras de videoarte, e definem um cronograma de postagem diária desses trabalhos. Alguns trabalhos já estavam disponíveis nas páginas dos artistas, outros foram solicitados pelas curadoras – o que o covideo19 busca é rever ou reapresentar essas obras para novas audiências, quase como um convite para pausar o dia e fruir de uma linguagem artística que, ainda que longe das condições ideais, pode ser acessada pelo computador. 

A periodicidade de postagem e veiculação, o breve parágrafo de apresentação e o viés curatorial emolduram esses trabalhos, com a intenção de adicionar novas camadas de leitura sob o incontornável contexto pandêmico. O site é todo em inglês, tem layout simplificado e arrojado, e guarda por quinze dias os links dos trabalhos postados. Os artistas e suas galerias e/ou instituição apoiadora para a realização da obra são marcados no Instagram, e os portfólios pessoais dos artistas estão no link da sua minibiografia, compartilhada junto com o vídeo no site. É importante notar que a plataforma destaca a produção artística do sul global, nesse eixo inusitado Brasil-Líbano, trazendo visibilidade às conexões que essas produções artísticas eventualmente possam ter entre si. Também é visível certa preocupação em equilibrar artistas estabelecidos e outros nomes menos conhecidos. Ao fim e a cabo, o projeto tem uma pegada afetiva e efêmera, que se pretende como um respiro, e que deve acabar junto com a quarentena.

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https://www.aindamtnada.com/

Participantes: Alexandre Nitzsche, Alvaro Seixas, Ana Matheus Abbade, André Dahmer, Andrés Brück, ÃO, Bruno Baietto, Carlos Issa, Estela May, Felipe Barsuglia, Flora Rebollo, Gabriel Junqueira, Gabriel Secchin, Germano Dushá, Hanya Beliá, Ingrid Kita, Institute of queer ecology, Julliana Araújo, JUNO, LCUAS PRIES, Marina Benzaquem, Marina Borges, Natalie Braido, Nuno Q. Ramalho, Paola Ribeiros, Rafael Meliga, um haitiano, Vitória Cribb, X-TUDO e Yan Copelli

Menos pretensioso e mais experimental é o “ainda mt nada”. A navegação aqui é intuitiva, randômica, desbaratada e sem firulas. Diversos ícones e gifs malucos flutuam pela página, e quando clicados, abrem novas janelas, imagens, sons e vídeos. A ideia surgiu dos artistas Felipe Barsuglia e Yan Copelli, com vontade de experimentar alguns recursos digitais enquanto estão distantes do ateliê – ambos costumam trabalhar com pintura, escultura, fazendo objetos diversos e, vira e mexe, junto com outros artistas e curadores, realizam exposições de maneira independente. Na verdade, “ainda mt nada” é só um caminho possível para seguir desdobrando investigações artísticas junto a artistas afins. Todos, independentemente da linguagem que costumam trabalhar, de alguma forma já incorporam no trabalho plástico a influência da vida e da imagem digitalizada: observam e sentem exigência corrente de que o artista precisa ser um tipo de influencer empreendedor de si. 

Cada artista cria dentro da plataforma o que será exibido, com liberdade para adicionar e editar. As participações incluem cartunistas, designers de moda e também curadores, gerando diálogos importantes entre diferentes linguagens que se comunicam. Neste sentido, mais do que exibir processos ou trabalhos já realizados, a maioria prefere brincar com ferramentas digitais e inventar uma espécie de obra online, que chega à fronteira dos memes, com prints que contam histórias, fotografias e diários de quarentena, desenhos e vídeos com diversas formas de visualização. O site está agora na sua versão 3.0, e deve receber mais uma atualização nos próximos dias, mantendo as associações entre as participações de maneira livre e subjetiva para quem navegar. De certa forma, aindamtnada é um refúgio dos likes e dos rankings de popularidade. Além disso, é sintomático que esses artistas, a grande maioria sem galeria e sem respaldo de comercialização, prefira inventar novas maneiras de se expressar nesse momento do que tentar vender obras de arte prontas.

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Na medida em que a pressão cresce e a digitalização se imiscui cada vez mais com nossas vidas, subjetividades e corpos, é preciso criar opções que escapem do imediatismo e subvertam lógicas mercadológicas fáceis. De tempos em tempos, certas caixinhas de expectativa sobre o papel do artista colocam demandas estéticas e comportamentais, mas faz parte do processo artístico problematizar formatos e conceitos cristalizados, além de ser notório como a arte pode tensionar limites e abrir possibilidades para a transformação dos lugares comuns. Essas estratégias estão na história da arte como um todo, em infinitos artistas celebrados justamente por sua irreverência poética e pensamento crítico – podemos citar rápida e exageradamente, por exemplo, o legado emblemático de um Nelson Leirner, Hans Haacke ou Joseph Beuys, que alargaram o fazer artístico em diferentes instâncias sem pedir muita permissão. Seria ingênuo pensar que novas formas de controle social vão amansar os artistas. Naturalmente, o que vêm à tona agora são quase as mesmas problemáticas, novas ferramentas de exibição, sob outra roupagem.

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Felipe Molitor é jornalista e crítico de arte, parte da equipe editorial da SP–Arte.

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