Denilson Baniwa, da série "Rasuras", 2022.
Artigo

Autonomia das imagens

Gabriel Bogossian
28 jul 2022, 10h17

Em um contexto de assassinatos, ataques e invasões aos territórios indígenas, é sempre muito bem-vindo o fortalecimento de uma esfera pública indígena multifacetada e diversa que, integrada por advogados, pensadores e outras figuras de destaque, participa de modo cada vez mais ativo na política nacional e nos debates sobre nosso futuro comum. 

Como parte dessa esfera pública, alguns artistas, cineastas e curadores de diferentes povos indígenas vêm, nos últimos anos, consolidando posições no campo das práticas visuais e contribuindo decisivamente para o amadurecimento dos seus debates em termos institucionais e historiográficos. A autonomia das imagens indígenas, que tem, no nível prático, tantos desdobramentos para a gestão e o monitoramento do território, tem, no plano simbólico, ressonâncias igualmente potentes, onde são articuladas perspectivas não-brancas sobre o mundo e suas fabulações do futuro.

Acima: Denilson Baniwa, da série "Rasuras", 2022.

"Yãkwa, o Banquete dos Espíritos", 1995, dirigido por Virgínia Valadão – Vídeo nas Aldeias.

"Yãkwa, o Banquete dos Espíritos", 1995, dirigido por Virgínia Valadão – Vídeo nas Aldeias.

Apesar de bem vistas pelo público, parcialmente simpático às demandas desses povos, a recepção das produções e dos enunciados indígenas parece bloqueada às vezes por pontos de vista primitivistas e formalistas, habituados a conceber a alteridade indígena como signo das origens da nação, elemento do passado cujo destino seria ser integrado, desaparecendo em uma sociedade mestiça.

Contra esse mestiçamento, artistas, cineastas e curadores de diversos povos reafirmam em suas produções o desejo pela permanência das diferenças e pela consolidação de sua autonomia política. Entre aldeia e cidade, com frequência alternando estrategicamente a ocupação desses espaços, suas obras são ora atravessadas pela crítica institucional ao campo da arte, repletas de paródias e releituras críticas da história da arte europeia, ora constituídas por sofisticadas reflexões metafísicas, articulando aprendizado espiritual e ativismo político.

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Frames de "A Festa da Moça", de Vincent Carelli, 1987, 18 min. O vídeo retrata o encontro do povo Nambiquara com sua própria imagem durante um ritual de iniciação feminina. A “moça nova“ permanece reclusa desde sua primeira menstruação, até as aldeias aliadas virem celebrar o fim da sua reclusão. Ao assistirem as imagens captadas, os Nambiquara se decepcionam e criticam o excesso de roupa. A festa seguinte é realizada e registrada com todo o rigor da tradição. Eufóricos com o resultado, eles resolvem retomar, diante da câmera, a furação de lábio e de nariz dos jovens, costume que haviam abandonado há mais de vinte anos.

Frames de "A Festa da Moça", de Vincent Carelli, 1987, 18 min. O vídeo retrata o encontro do povo Nambiquara com sua própria imagem durante um ritual de iniciação feminina. A “moça nova“ permanece reclusa desde sua primeira menstruação, até as aldeias aliadas virem celebrar o fim da sua reclusão. Ao assistirem as imagens captadas, os Nambiquara se decepcionam e criticam o excesso de roupa. A festa seguinte é realizada e registrada com todo o rigor da tradição. Eufóricos com o resultado, eles resolvem retomar, diante da câmera, a furação de lábio e de nariz dos jovens, costume que haviam abandonado há mais de vinte anos.

Um dos pontos-chave para o início da produção indígena é o Vídeo nas Aldeias (VnA). Criado em São Paulo em 1986 por Vincent Carelli no interior do que se nomeava então indigenismo independente, o VnA começou com um “experimento audiovisual” entre os Nambiquara. O dispositivo central do trabalho consistia em realizar a captação de imagens e sua imediata exibição, de maneira a demonstrar que a “fabricação da imagem era uma coisa possível e imediata”. Nos primeiros filmes, os usos indígenas do vídeo remetia aos horizontes utópicos das primeiras gerações de videomakers, nos anos 1960, e tomava a mídia como meio de elaboração de reflexões originais sobre as relações entre os povos, seu passado e futuro, e sobre as próprias condições de produção das imagens. A partir do fim dos anos 1990, quando começa a organizar oficinas de fotografia e edição de vídeo nas aldeias para a formação de cineastas indígenas, o VnA assume sua vocação pedagógica, fazendo dos ciclos de oficinas um processo de desenvolvimento técnico mas também estético, ao longo do qual amadureciam reflexões comunitárias sobre o que e como filmar. 

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Frames de "Antropofagia Visual", 1995, 17 min. Dirigido pelos Enawenê-Nawê. Na época um grupo relativamente isolado no norte do Mato Grosso, os indígenas reagem à presença da câmera com um espírito performático surpreendente: muita palhaçada e uma encenação de ataques dos seus vizinhos, os Cinta-Larga. À medida em que se acostumam a assistir filmes de ficção, os Enawenê resolvem produzir seu próprio filme.

Frames de "Antropofagia Visual", 1995, 17 min. Dirigido pelos Enawenê-Nawê. Na época um grupo relativamente isolado no norte do Mato Grosso, os indígenas reagem à presença da câmera com um espírito performático surpreendente: muita palhaçada e uma encenação de ataques dos seus vizinhos, os Cinta-Larga. À medida em que se acostumam a assistir filmes de ficção, os Enawenê resolvem produzir seu próprio filme.

Frame de "Desterro Guarani", 2011, 38 min. Dirigido por Patrícia Ferreira Para e Ariel Kuaray Ortega. Ortega faz uma reflexão sobre o processo histórico do contato dos Mbyá Guarani com os colonizadores e tenta entender como seu povo foi destituído de suas terras.

Frame de "Desterro Guarani", 2011, 38 min. Dirigido por Patrícia Ferreira Para e Ariel Kuaray Ortega. Ortega faz uma reflexão sobre o processo histórico do contato dos Mbyá Guarani com os colonizadores e tenta entender como seu povo foi destituído de suas terras.

Uma dessas parcerias foi a desenvolvida com Ariel Kuaray Ortega e Patrícia Para Yxapy, realizadores mbyá guarani moradores de Koenju, no município de São Miguel das Missões. Entre 2008 e 2013, a dupla realizou um ciclo de filmes focado nas questões territoriais dos Mbyá do Rio Grande do Sul, suas reflexões metafísicas e nas relações históricas com o entorno da terra indígena onde se encontra a aldeia. A partir desse primeiro ciclo, a consagração em eventos e festivais audiovisuais abriu portas para colaborações e a expansão da produção de Ortega e Yxapy para outros campos, como o das artes visuais.

Frame de "Mokoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas aldeias, uma caminhada", 2008, 63 min. Dirigido por Ariel Kuaray Ortega, Jorge Ramos Morinico e Germano Beñites. Sem matas para caçar e sem terras para plantar, os Mbyá Guarani dependem da venda do seu artesanato para sobreviver. Três jovens Guarani acompanham o dia-a-dia de duas comunidades, onde se repete a mesma história, do primeiro contato com os europeus até o intenso convívio com os brancos de hoje.

Frame de "Mokoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas aldeias, uma caminhada", 2008, 63 min. Dirigido por Ariel Kuaray Ortega, Jorge Ramos Morinico e Germano Beñites. Sem matas para caçar e sem terras para plantar, os Mbyá Guarani dependem da venda do seu artesanato para sobreviver. Três jovens Guarani acompanham o dia-a-dia de duas comunidades, onde se repete a mesma história, do primeiro contato com os europeus até o intenso convívio com os brancos de hoje.

Vistas da exposição “Dja Guata Porã | Rio de Janeiro indígena”, no Museu de Arte do Rio de Janeiro. Curadoria de Clarissa Diniz, José Ribamar Bessa, Pablo Lafuente e Sandra Benites.
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Vistas da exposição “Dja Guata Porã | Rio de Janeiro indígena”, no Museu de Arte do Rio de Janeiro. Curadoria de Clarissa Diniz, José Ribamar Bessa, Pablo Lafuente e Sandra Benites.

Outra figura central para a conformação da atual esfera pública indígena é o artista Denilson Baniwa. Vindo do universo cultural do Rio Negro, no Amazonas, Baniwa foi um dos fundadores da Radio Yandê (2013), criada como espaço experimental para valorizar as práticas culturais indígenas e fomentar a comunicação entre os diferentes povos. Longeva, a rádio tornou-se uma plataforma online de notícias que cobre o mundo indígena e é acessada do mundo todo. Além dela, duas das intervenções de Baniwa dão a tônica de uma prática baseada na crítica institucional e em revisões irônicas, geralmente de caráter pop, do cânone da história da arte europeia. 

A primeira, no Rio de Janeiro, é a participação em Dja Guata Porã, exposição realizada no Museu de Arte do Rio. Ali, como complemento dialético aos documentos e registros brancos fixados na parede, que narravam a história indígena da perspectiva não-indígena, Baniwa propunha uma história em forma de cobra, que organizava o tempo histórico a partir de cisões e continuidades próprios. 

No mesmo sentido foi a performance realizada como intervenção independente na 33ª Bienal de São Paulo, curada por Gabriel Pérez-Barreiro com a colaboração de cinco artistas contemporâneos. Na ação, o Pajé-Onça, entidade criada por Baniwa, caminhou em silêncio pela área reservada à contribuição de Sofia Borges; em frente ao local onde Borges fizera instalar grandes painéis com fotografias de indígenas Selk’nam, da Terra do Fogo, realizadas em contexto etnográfico, o artista rio-negrino desfolhou um “breve guia” para a história da arte europeia, discursando de modo irônico, enquanto arrancava as páginas da publicação, sobre brevidade de tal história, limitada a uma perspectiva excludente que não considera a arte indígena como seu elemento legítimo.

Perfomance "Pajé-Onça Hackeando a 33ª Bienal de Artes de São Paulo", de Denilson Baniwa, 2018
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Perfomance "Pajé-Onça Hackeando a 33ª Bienal de Artes de São Paulo", de Denilson Baniwa, 2018

Frame de "YOONAHLE, A palavra dos Fulni-ô", 2013, 45 min. Face à proximidade com a cidade e ao assédio do homem branco , os Fulni-ô apresentam a sua forma de viver em dois mundos, resistindo na manutenção da língua, da cultura e de seus segredos ancestrais.

Frame de "YOONAHLE, A palavra dos Fulni-ô", 2013, 45 min. Face à proximidade com a cidade e ao assédio do homem branco , os Fulni-ô apresentam a sua forma de viver em dois mundos, resistindo na manutenção da língua, da cultura e de seus segredos ancestrais.

Vale mencionar, ao lado desses dois casos, as experiências cinematográficas realizadas pelos Fulni-ô, em Pernambuco. Um dos poucos povos do Nordeste a preservar sua língua, os Fulni-ô iniciaram seu coletivo de cinema movidos pelo desejo de produzir material de apoio didático, para o qual contaram com suporte do Vídeo nas Aldeias. Diante da presença da cidade de Águas Belas no centro de seu território e de relações conflituosas em torno da terra, demarcada ainda no século 19, a permanência da língua garante um código simbólico próprio com o qual fazer frente ao entorno não-indígena. O cinema, aí, funciona como ferramenta de salvaguarda e espaço de articulação de encontros, construindo pontes tanto entre fulni-ôs de diferentes gerações quanto entre eles e outros povos e coletivos indígenas espalhados pelo país.

As relações políticas do mundo indígena com o mundo não-indígena são antigas: desde o início da colonização é preciso negociar e disputar para fazer valer direitos garantidos pelos diferentes governos. Igualmente antigas são as imagens e as coleções indigenistas, que buscam representar o mundo indígena e enquadrá-lo em seus regimes de verdade estrangeiros. Contra tais capturas, as imagens produzidas por artistas, cineastas e intelectuais indígenas falam de um mundo sob ataque, onde, no entanto, florescem novas estratégias de ação política e novas formas poéticas; conforme avançamos no antropoceno, pode ser bom contemplá-las.

Campanha realizada em Porto Velho após o assassinato de Ari Uru-Eu-Wau-Wau

Campanha realizada em Porto Velho após o assassinato de Ari Uru-Eu-Wau-Wau


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Gabriel Bogossian é curador independente e escritor. Colabora com artistas e grupos de diferentes nacionalidades no desenvolvimento de obras e outros projetos. Foi curador convidado da 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil | Comunidades Imaginadas, da Screen City Biennial 2019 – Ecologies: Lost, Found and Continued e do Festival VideoEx, além de curador adjunto do Galpão VB (2016-2020). Traduziu Americanismo e Fordismo, de Antonio Gramsci, e o romance Caos Calmo, de Sandro Veronesi.

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