Banco Tamanduá do projeto Soma, criação de Rodrigo Silveira, Yuta Mehinaku, Kawakanamu Mehinaku e Ontxa Mehinako para a +55 design. (Crédito: Peu Campos / +55 design)
Artigo

Livia Debbane apresenta as matérias-primas no design contemporâneo a partir da 19a SP–Arte

Livia Debbane
18 abr 2023, 15h18

A incrível diversificação tecnológica e material das últimas décadas é um desafio para o olhar. O primeiro texto colocou foco na madeira, que dominou sem grande concorrência a materialidade do mobiliário até os anos 1920-30, com a introdução do aço tubular. No ótimo Atlas of furniture design, do Vitra Design Museum (Alemanha), um infográfico mostra que as curvas entre materiais se equalizam apenas a partir do anos 1940, em consequência da corrida tecnológica na Segunda Guerra, quando tornam-se viáveis para a produção industrial, especialmente, os polímeros sintéticos, como acrílico, poliuretano, poliéster, espumas, laminados plásticos. Estes desenvolvimentos impulsionaram a criação de móveis com aquela continuidade entre estrutura e superfície da qual falamos. Dentre as novas tecnologias, a injeção de termoplásticos foi a mais transformadora: surgem as cadeiras de plástico conhecidas como monobloco, de baixo custo para o consumidor – pense nas brancas empilháveis usadas em piscinas e bares de praia. No Brasil, Jorge Zalszupin fez o licenciamento da Hille, cadeira de polipropileno de Robin Day lançada em 1963, sucesso absoluto em números de venda no mundo, e, mais tarde, em várias linhas para a indústria Hevea. Na Lafer, Percival Lafer adquiriu maquinário para a fabricação de estofados de espuma de poliuretano injetada, e desenvolveu vários móveis e design urbano com a fibra de vidro, material que forma a concha da poltrona PL 61, reedição que a ETEL lançou na SP–Arte 2023.

Acima: Banco Tamanduá do projeto Soma, criação de Rodrigo Silveira, Yuta Mehinaku, Kawakanamu Mehinaku e Ontxa Mehinako para a +55 design. (Crédito: Peu Campos / +55 design)

A nova coleção Rio, da ,Ovo, usa seixos de rios brasileiros. (Crédito: divulgação / ,Ovo)

A nova coleção Rio, da ,Ovo, usa seixos de rios brasileiros. (Crédito: divulgação / ,Ovo)

Ao mesmo tempo que essas possibilidades emergiram, outro aspecto foi importante nos caminhos múltiplos que o design toma a partir dos anos 1960 e 1970: o engajamento crítico da prática. A consciência da atuação do design na lógica do consumo, o início da crise ecológica, as diversas desigualdades e assimetrias no globo, a corrida espacial, a cultura de massa, entre várias outras questões impulsionam a ênfase no poder comunicativo das escolhas estéticas. Essa valorização do caráter expressivo e não meramente pragmático do design – recursos de humor, ironia, performance, funções simbólicas e utópicas – refletiu movimentos da arte e arquitetura, como o Pop e o pós-modernismo.

Destes alargamentos técnicos e conceituais resulta a liberdade de propostas e abordagens que nos encaminha à produção contemporânea. Um marco no design brasileiro é o trabalho dos irmãos Campana, no qual podemos ressaltar o uso de materiais deslocados de seu contexto original, principalmente na produção dos anos 1990 e 2000: as poltronas com bichos de pelúcia ou corda naval atualizaram propostas ready-made de designs de Achille Castiglioni ou Gae Aulenti na Itália, ao mesmo tempo que contornaram a distância entre indústria e designer no Brasil. A estratégia se faz presente ainda hoje: o mineiro Porfírio Valladares expôs, na SP–Arte, uma poltrona cujo assento e encosto são criados de uma pilha de passadeiras de tear manual, dessas encontradas em mercados e feiras de rua, enquanto Candida Tabet se apropriou de bolas de boliche antigas para criar os pés da mesa de jantar Strike. A ,ovo, cuja trajetória é marcada pela investigação material e pelo pensamento conceitual, apresenta série de mesinhas e banquinhos feitos com grandes seixos de rio, de até meia tonelada. Segundo Gerson de Oliveira, designer criador da marca ao lado de Luciana Martins, a coleção se inspira em experiências ancestrais de design na natureza, de adaptação do homem ao ambiente: “é como chegar em uma cachoeira e buscar o melhor lugar para se sentar, encontrando apoios nas irregularidades da pedra”.

Peças da série Orgus, de Humberto da Mata, com técnica mista baseada no papel machê. (Crédito: divulgação)

Peças da série Orgus, de Humberto da Mata, com técnica mista baseada no papel machê. (Crédito: divulgação)

Práticas manuais de ateliê são outra forma de contornar limitações e de arriscar sem os compromissos que a produção em escala necessariamente impõe. A coleção de Humberto da Mata em papel machê é um bom exemplo. A ideia foi guiada por interesse que o designer explorou primeiramente na cerâmica, a capacidade da massa argilosa registrar as marcas de sua manipulação, “uma transferência da corporalidade para o material”. Para produzir peças maiores, no entanto, ele precisou buscar técnica alternativa, lembrando-se do composto de papel e cola com o qual brincava na infância. A partir daí, desenvolveu a mistura de celulose e resina do cerne das peças multicoloridas que apresenta na feira. Ao papel machê seco ele acrescenta, nas camadas finais, argamassa de caulim, para alisar a superfície das peças, e pintura automotiva, para deixá-las impermeáveis e resistentes. Esta combinação de materiais e aspecto inflado das mesinhas, espelhos e luminárias, aliás, remete ao humor e pesquisa material que caracterizou o design holandês ligado à Design Academy Eindhoven nos anos 1990.

Deslocamentos no uso de matérias-primas existentes também são fonte de novas materialidades no design. O Estúdio Rain mostrou uma série de luminárias de coloração âmbar que instigam o olhar, resultado da pesquisa por materiais maleáveis de origem vegetal que pudessem substituir polímeros derivados do petróleo. Encontraram na resina de óleo de mamona – ou rícino, comumente usada na construção civil como verniz impermeabilizante –, plasticidade e características físico-químicas ideais que os levou a desenvolver os objetos luminosos, nos quais exploram o gradiente da tonalidade natural da matéria pela mudança na espessura das chapas. Novamente, desenvolvimento material e resultado estético estão intrinsecamente conectados. A beleza do resultado combinada à origem da matéria-prima tornam a coleção significativa e atual.

Cadeira Nóize (2012), de Guto Requena, impressa em 3D a partir de desenho da cadeira Girafa (1986), de Lina Bo Bardi, Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki.

Cadeira Nóize (2012), de Guto Requena, impressa em 3D a partir de desenho da cadeira Girafa (1986), de Lina Bo Bardi, Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki.

Poltrona Banquete (2002) de Fernando e Humberto Campana, com bichos de pelúcia. (Crédito: Fernando Laszlo / Firmacasa)

Poltrona Banquete (2002) de Fernando e Humberto Campana, com bichos de pelúcia. (Crédito: Fernando Laszlo / Firmacasa)

A mesa Strike (2020), de Candida Tabet, tem pés de assemblage de bolas de boliche antigas. (Foto: Raphael Briest)

A mesa Strike (2020), de Candida Tabet, tem pés de assemblage de bolas de boliche antigas. (Foto: Raphael Briest)

A relevância de um novo design pode ser medida pela conversa que estabelece com o passado. Um exemplo é a premiada cadeira Nóize, de Guto Requena, recriação da icônica Girafa (1986), de Lina Bo Bardi, Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki. Por meio da linguagem Processing, Requena colapsou o desenho digital da peça com gravações de áudio de região movimentada no centro de São Paulo. O novo e distorcido modelo foi impresso em 3D e a sensação entre familiaridade e estranheza é o que coloca o espectador a pensar. Requena é um dos principais brasileiros a explorar tecnologias de fabricação digital, que possibilitam, na precisa definição do designer francês Patrick Jouin, a “emancipação dos limites do molde”, e o que podemos chamar de “artesanato digital”. O arquiteto e designer paulista quer investir suas peças de qualidades emotivas, e na SP–Arte apresentou duas coleções resultantes dessa vontade: Era uma vez, vasos em cristal soprado em moldes criados com o som da voz da avó, exímia contadora de histórias; e a luminária Heartwall, modelada com ferramentas de design paramétrico e que tem pontos de LED que pulsam no ritmo do batimento cardíaco de uma pessoa. Essa luminária, aliás, leva a pensar em uma criação do alemão Ingo Maurer de 1989, exposta na FAS, chamada One from the Heart. Criada como presente de casamento para amigos, nela um cabo azul e um vermelho se entrelaçam sob um coração que emite luz na direção de um pequeno espelho igualmente em forma de coração. Maurer, um dos maiores de sua profissão, explora em suas criações tecnicamente excepcionais o potencial poético e narrativo dos objetos cotidianos.

Luminária da série Rícino (2022), do estúdio Rain, feita com resina de óleo de mamona. (Foto: Alex Batista)

Luminária da série Rícino (2022), do estúdio Rain, feita com resina de óleo de mamona. (Foto: Alex Batista)

Não é de hoje a dimensão simbólica dos artefatos da vida cotidiana, como mostram os bancos dos Mehinaku, Kamayurá e Waurá, povos do Xingu, e dos Ticuna, da Amazônia, expostos em dois espaços no setor de design da SP–Arte. No primeiro, exemplares tradicionais criados para as funções ritualísticas e habituais das aldeias, enquanto no outro, da marca +55 design, esteve a proposta de adaptação dos desenhos para uso em novos contextos. O projeto resulta do encontro de Yuta Mehinaku, Kawakanamu Mehinaku e Ontxa Mehinako com Rodrigo Silveira, designer e marceneiro que há mais de uma década pesquisa técnicas de marcenaria de povos originários, em comunidades ribeirinhas e aldeias indígenas da Amazônia. Depois de passar temporada no Alto Xingu, no Mato Grosso, Silveira convidou os três artesãos para sua marcenaria em São Paulo, propondo a produção de bancos de dimensões maiores, de até dois metros, e com formas ortogonais no assento e pés – quando, tradicionalmente, são curvos pois acompanham o formato do tronco da árvore. Embora Silveira tenha ficado responsável por esculpir o corpo, enquanto os Mehinaku se ocuparam das cabeças e rabos, o tamanho desafiador dos bancos, feitos de uma única tora, sem juntas ou emendas, exigiu a interferência conjunta nas peças, outra diferença da produção tradicional, sempre trabalho individual do artista. Bons projetos de design, sobretudo na produção contemporânea, têm sentido e discurso, por isso não podemos tomá-los apenas por sua aparência, apesar de que, como vimos, ela também revela.


Edit : Livia Debbane foto Fabio Audi

Livia Debbane é escritora e pesquisadora especializada em design. Busca uma perspectiva crítica do design brasileiro e internacional por meio de colaborações em livros e exposições. Formada em Filosofia, atuou como editora-chefe da revista Bamboo e editou o livro “Boa Forma Gute Form: Design in Brazil 1947-1968”, Editora Act. (São Paulo, 2021).

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