"Cenas de um casamento" (1967), Maria Do Carmo Secco (Foto: Divulgação)
Memória

Artistas brasileiras e a arte pop

Felipe Molitor
6 mar 2020, 18h25

É mais gostoso de ser lido em voz alta: 

Garotas são POP
São feitas de matéria POP
Toda garota é POP
Garotas são sempre POP
A palavra garota é POP
O som da palavra garota é POP
Ser garota é ser POP
Toda mulher já foi POP
Porque já foi garota e POP
Minha mãe já foi POP
Sua mãe já foi POP
A mãe de Madonna foi POP
Todas as mães já foram POP, um dia
A garota de Ipanema é POP
Norma Jeane Baker era POP
Mais pop que Marilyn, que virou POP
Garotas são Barbie
A Barbie é POP
Twiggy também era POP
Twiggy e Barbie serão sempre POP
Lolita era POP
A mais pop, das garotas POP.

“Garotas pop” é um poema visual publicado em 1993 por Lenora de Barros (1953) na coluna que mantinha no Jornal da Tarde. Além de refletir o interesse da artista pelo jogo de palavras, sua visualidade e sonoridade, o texto transparece certa ironia em relação ao lugar simbólico destinado às mulheres no cenário da arte pop — a grosso modo, movimento artístico que surgiu na Inglaterra ao final da década de 1950, atingiu o ápice nos EUA dos anos 60, e reverberou com alguma intensidade durante os anos 70. Afinal, a historiografia tradicional da arte do século 20 praticamente ignorou diversas mulheres artistas afinadas com a linguagem pop, consagrando apenas artistas masculinos como os grandes expoentes daquele período agitado para a cultura em geral, no mundo todo. A própria obra de Lenora de Barros, que muito herdou e subverteu da pop mesmo pertencendo a geração posterior, indica possíveis caminhos de uma arte pop produzida no Brasil e por mulheres.  

Acima: "Cenas de um casamento" (1967), Maria Do Carmo Secco (Foto: Divulgação)

Série "Procuro-me" (2002), Lenora de Barros (Foto: Divulgação)

Série "Procuro-me" (2002), Lenora de Barros (Foto: Divulgação)

Se algumas características formais aproximam a produção pop norte-americana e europeia daquela criada por aqui — a assimilação de imagens e mensagens da comunicação e indústria de massa, o uso de técnicas simplificadas e materiais pré-produzidos, o emprego de poucas e saturadas cores —, as conjunturas sociopolíticas nos separam e refazem uma ideia de filiação passiva ao movimento, algo que reforçaria a noção de hegemonia cultural em contexto de Guerra Fria. As questões brasileiras foram outras: embora tenham sido anos de desbunde e experimentação via contracultura, a repressão às artes, a liberdade de expressão e do corpo levada à cabo pela ditadura civil-militar no Brasil (1964–1985) empurrou diversos agentes e práticas artísticas, seja por ativismo aberto ou efeitos subjetivos, para o engajamento político.

Àquela altura, a arte brasileira assistia ao retorno da figuração em oposição à abstração, junto com o renovado interesse por instrumentos e conteúdos cotidianos, sem que isso necessariamente replicasse o mesmo tipo de insatisfação com o avanço do capitalismo de massa expressada pela produção pop gringa de representações em série. É plausível que, por aqui, espelhamos as urgências de um modernismo específico, tardio e esburacado, imbuindo os códigos visuais da arte pop da nossa desconfiança velada ao progresso em eterno estado de porvir. Nesse sentido, tantas outras indagações e desejos puderam emergir e nos singularizar, principalmente através das particularidades do trabalho de artistas mulheres que foram esquecidas (ou silenciadas), cujas atitudes estéticas e políticas podem encontrar resistência às narrativas fixas. Tanto é que costumamos situar nossos “artistas pop” no seio da Nova Objetividade Brasileira, até mesmo ao lado das vanguardas construtivas das décadas anteriores, tal como no esquema geral publicado por Hélio Oiticica em 1967, que vinculava as tendências artísticas do momento à uma postura crítica autenticamente brasileira. A despeito das consonâncias, nunca fomos apenas pop.

Silk-screen da série "Tropicália" (1968), Regina Vater (Foto: Divulgação / Luiz Ferreira)
Série "Envolvimento"(1968), Wanda Pimentel (Foto: Marco Terranova)

Silk-screen da série "Tropicália" (1968), Regina Vater (Foto: Divulgação / Luiz Ferreira)

Série "Envolvimento"(1968), Wanda Pimentel (Foto: Marco Terranova)

Detalhe de "O presente" (1967-2018), Cybèle Varela (Foto: Ricardo Miyada)

Detalhe de "O presente" (1967-2018), Cybèle Varela (Foto: Ricardo Miyada)

Em 1968, a 9ª Bienal de São Paulo, conhecida como “Bienal do Pop”, trouxe para o país obras de Jasper Johns, Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Robert Rauschenberg e uma retrospectiva de Edward Hopper, um dos principais influenciadores do grupo — todos eles, até hoje, os artistas mais representativos da vertente pop. Em meio à empolgação do público em torno da delegação norte-americana, uma artista brasileira enfrentava um transtorno particular: a pintura da artista carioca Cybèle Varela (1943), “O Presente”, feita sobre uma espécie de caixa de madeira aberta, foi censurada. O trabalho reprovava a ideia de um patriotismo cego, e por isso foi considerado antinacionalista e retirado pela polícia federal dias antes da abertura da mostra. Outros vários brasileiros cujas pesquisas eram tão ácidas quanto a de Varela participaram da mostra: Marcello Nitsche, Wesley Duke Lee, Nelson Leirner, Geraldo de Barros (que foi júri na mesma edição), Claudio Tozzi, Sérgio Sister, Rubens Gerchman, Antonio Manuel e muitos outros. É difícil avaliar o quanto esse tipo de acontecimento pode impactar a carreira de uma artista. Dias depois da abertura, a sala da representação norte-americana foi pichada. E a 10ª Bienal, essa sim ocorrida após o AI-5, ficou na memória como a “Bienal do boicote”, quando grande maioria dos artistas de distintos países se recusaram a participar deste evento, com tamanho peso diplomático e nacionalista. Nos anos seguintes, Cybèle Varela mudou-se para Paris e Genebra, expandiu sua prática e abarcou a fotografia e o vídeo, substituindo os temas urbanos típicos de suas pinturas iniciais por visões realistas ou oníricas da natureza.

"De tudo aquilo que podia ter sido e que não foi" (1967), Cybèle Varela (Foto: Enciclopédia Itaú Cultural)

"De tudo aquilo que podia ter sido e que não foi" (1967), Cybèle Varela (Foto: Enciclopédia Itaú Cultural)

"Inseminação artificial" (1968), Teresinha Soares (Foto: Divulgação)
"Caixa de fazer amor" (1968), Teresinha Soares (Foto: Divulgação)

"Inseminação artificial" (1968), Teresinha Soares (Foto: Divulgação)

"Caixa de fazer amor" (1968), Teresinha Soares (Foto: Divulgação)

Enquanto isso, outra artista que participou da mesma Bienal, a mineira Teresinha Soares (1937) cumpria carreira meteórica entre 1965 e 1976, que só recentemente pôde ser apresentada para novas gerações através de uma mostra individual no MASP, em 2017. Sua obra atravessa os distintos papéis sociais da mulher e o clamor pela liberação sexual plena. Há pontos de contato de sua prática com pares do mesmo momento, mas por não estar vinculada a nenhum grupo específico, Soares desenvolveu um repertório único: figurativo ao mesmo tempo que próximo da abstração, trazendo o corpo da mulher de maneira fragmentada e em cores vivas, de traços bem marcados, por vezes em ações que alfinetam situações sociais naturalizadas. Certa vez, chocou a opinião pública ao surgir em um evento das artes vestindo smoking — um tipo de pré-performance, linguagem que também experimentou nos meados dos anos 70. Sua radicalidade também aparecia na gravura, na fotografia, e com as artes cênicas. Ora reclamando a autonomia do corpo e o erotismo, ora manifestando a violência física e sexual sofrida pelas mulheres, sua obra tem uma chave política que implica os costumes morais de nossa sociedade conservadora ao projeto de país que vigorava no alto escalão do poder. Ainda que não se intitule dessa maneira, Teresinha Soares praticava o que hoje podemos afirmar mais abertamente de ativismo feminista. 

"Sem título" (1967), Maria do Carmo Secco (Foto: Divulgação)

"Sem título" (1967), Maria do Carmo Secco (Foto: Divulgação)

Outras artistas mulheres consideradas pop trabalhavam com visualidades, temas e dispositivos compatíveis entre si. Maria do Carmo Secco (1933–2013), por exemplo, representava em suas pinturas e fotografias o cotidiano da mulher na sociedade machista. Nesse caso, o interior das casas era o cenário principal de uma pictorialidade regida pelo olhar cinematográfico. Ela também criava trabalhos com quinas e dobradiças, quebrando a frontalidade e o plano único da pintura. Wanda Pimentel (1943–2019) também enquadrava a solidão da mulher e a vida doméstica com a mesma solidez dos contornos pop, num jogo de corpos e objetos industriais sob perspectivas inusitadas e esquemáticas. A série que marca o início de sua carreira, “Envolvimentos”, foi apresentada pelo MASP em 2017. 

Série "Envolvimento"(1968), Wanda Pimentel (Foto: Marco Terranova)

Série "Envolvimento"(1968), Wanda Pimentel (Foto: Marco Terranova)

Uma última artista a ser citada é Regina Vater (1943), cuja prática experimental, bastante complexa, ecoou a pop em seus anos iniciais numa tradução absolutamente autoral — o que problematiza ainda mais a noção simplista de uma influência exterior em via de mão única. Recentemente a artista pode refazer um dos trabalhos mais instigantes para a história da arte brasileira, “Mulher mutante” (1969–2018). A obra convida o espectador a recriar a pose clássica de uma mulher deitada manipulando partes de um corpo de madeira. Se o objeto em si alude à linguagem pop pelas cores vibrantes ou pelo aspecto sedutor das formas bem delineadas, nesta obra, o elemento de participação — princípio caro à produção brasileira da época – é justamente o que realiza a crítica sobre comportamentos de dominação do corpo da mulher. 

Essas e outras histórias de artistas e obras, à luz dos estudos de gênero da contemporaneidade, revelam genealogias e pontos de conexão pouco lembrados pela crítica de arte do presente. Seja lá qual for o entendimento que cada artista busca para as relações entre arte e política de sua prática, o feminismo na arte brasileira parece ter recebido atenção midiática apenas recentemente. E fica um questionamento: como agiam as artistas que viveram na pele a aceleração do capitalismo sob contexto autoritário e o que isso pode ter a ver conosco agora?

"Mulher mutante" (1969-2018), Regina Vater (Foto: Cortesia Galeria Jaqueline Martins)

"Mulher mutante" (1969-2018), Regina Vater (Foto: Cortesia Galeria Jaqueline Martins)

"Tina América" (1976), Regina Vater (Foto: Divulgação)

"Tina América" (1976), Regina Vater (Foto: Divulgação)


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Felipe Molitor é jornalista e crítico de arte, parte da equipe editorial da SP–Arte.

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