Prints da internet por Kenneth Goldsmith (Foto: divulgação)
acervo digital

Arquivo de guerrilha

Felipe Molitor
3 abr 2020, 15h26

As galerias e os museus do mundo todo clamam por seu “like” e “share”. A avalanche de conteúdos sobre arte criados ou promovidos no meio online nos últimos dias tomou proporções inimagináveis, e os entusiastas da arte começam até a sentir certa ansiedade do tipo FOMO – “fear of missing out”, o medo de perder algo, uma síndrome cunhada por psiquiatras (pasmem!) no ano 2000.

O portal UbuWeb pode soar como uma dessas novíssimas iniciativas de digitalização, mas para o tempo da internet, é quase um vovô. A plataforma pioneira e gratuita surgiu em novembro de 1996 e segue operando até hoje nos mesmos moldes: um imenso arquivo colaborativo de arte experimental e de vanguarda, dedicado principalmente à videoarte, arte sonora, e à poesia visual. O site foi fundado pelo poeta e crítico norte-americano Kenneth Goldsmith, que por sua contribuição e forte engajamento com as artes visuais, foi o primeiro poeta a ser homenageado pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, em 2013.

Por ser um depósito vasto de preciosidades, o site é um queridinho dos artistas e pesquisadores da arte. São milhares de vídeos, áudios e textos de centenas de artistas e teóricos do mundo todo. Lá você pode encontrar as vídeo-obras de Laurie Anderson, Hito Steyerl, Maya Deren, Pipilotti Rist, Francis Alÿs, Chris Burden, Richard Serra, John Akomfrah; documentários sobre a arte de Philip Guston e Pablo Picasso; um anúncio para banco feito por Salvador Dalí; seminários e entrevistas de teóricos como Alain Badiou, Jacques Lacan e Theodor Adorno; entre os brasileiros, há muito material sobre poesia concreta em torno dos Irmãos de Campos, Décio Pignatari, Edgard Braga e Pedro Xisto, a Revista da Antropofagia de Oswald de Andrade, as composições de Walter Smetak e o único filme dirigido por Caetano Veloso. Haja aba aberta para pouco navegador!

O UbuWeb também opera na chave do ativismo digital pela democratização do acesso à arte, já que funciona de maneira independente. O site não faz anúncios, tampouco comercializa obras de arte, e disponibiliza trabalhos nem sempre respeitando os direitos autorais (mas que podem ser retirados caso solicitado pelo artista). Ainda assim, a plataforma recebe o apoio de diversas universidades norte-americanas para sua difusão. Até mesmo no aspecto estético, mantendo o mesmo layout desde a fundação, o site preserva o desejo de guerrilha no território digital, cada vez mais colonizado pelas grandes corporações.

Acima: Prints da internet por Kenneth Goldsmith (Foto: divulgação)

Kenneth Goldsmith em sua exposição individual na LABOR, em 2013. O mote da mostra era um só: imprima o máximo de páginas da web que conseguir e envie para a galeria. (Foto: Janet Jarman / The Washington Post / Getty Images)

Kenneth Goldsmith em sua exposição individual na LABOR, em 2013. O mote da mostra era um só: imprima o máximo de páginas da web que conseguir e envie para a galeria. (Foto: Janet Jarman / The Washington Post / Getty Images)

Leia uma espécie de manifesto da plataforma abaixo, guarde essa história para os museus do futuro, e aproveite o link enquanto existe: www.ubu.com

Imagine a utopia: um mundo sem direitos autorais, sem micro-pagamentos, sem royalties, sem benefícios, sem atribuições, sem licenças, sem propriedades. Vamos imaginar um mundo sem dinheiro; de fato, imaginaremos que o dinheiro nem existe, ninguém toca nele; ninguém paga e ninguém é pago. Vamos imaginar um mundo sem subsídios, sem apoio do governo, sem campanhas eleitorais, sem financiamento. Vamos imaginar um mundo sem anúncios, sem listas de discussão ou campanhas promocionais, sem repressão, sem caixas de doações. Imagine um mundo sem burocracia, sem chefes, sem comitês, sem advogados, sem agentes, sem contratos. Imagine um mundo de discos rígidos ilimitados, servidores ilimitados e banda larga ilimitada, sem captchas, sem espera. Imagine um mundo sem números, sem estatísticas, sem contadores de downloads, sem cliques. Imagine um mundo em que não importa se você tem três visitantes diários ou três mil. Vamos imaginar um mundo em que o conteúdo de um site seja muito enigmático, confuso e intelectual demais para qualquer governo entender e, por extensão, censurá-lo. Imagine obras de arte que funcionem fora dos regulamentos capitalistas vigentes, onde seu valor é mais histórico ou estético do que econômico. Agora imagine um mundo em que as decisões não sejam tomadas por comitês ou baseadas na popularidade, sem ter que dar explicações contábeis ou de autoridade; um mundo onde a representação é subjetiva e excêntrica; um palpite, um sentimento; Vamos imaginar um mundo que abraça o risco, incerteza, instabilidade, capricho. Vamos imaginar um mundo privado de argumentos históricos, de fato, vamos imaginar um mundo sem argumentos de qualquer tipo. Agora é o paraíso.

ubu.com/resources/paradise.html


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Felipe Molitor é jornalista e crítico de arte, parte da equipe editorial da SP–Arte.

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