Atual e impactante, o legado do artista mineiro Pedro Moraleida é apresentado em exposição no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo

22 jan 2019, 16h03

por Felipe Molitor

 

Duas décadas separam a exposição “Canção do Sangue Fervente” de Pedro Moraleida, a maior individual do artista realizada fora de sua Belo Horizonte natal, e a abrupta interrupção de sua vida aos 22 anos, um ano antes da virada do século. O Brasil que o artista deixou não é o mesmo de hoje, que persegue uma rota angustiante para voltar 50 anos em cinco. Tampouco as artes visuais permanecem nas discussões de outrora. Os circuitos artísticos daqui e no mundo entraram em curto, afetados por fluxos e refluxos da globalização, pela digitalização da vida e a expressiva atuação dos movimentos sociais por representatividade e reparações históricas.

Nestes vinte anos, o conjunto da obra de Moraleida foi guardado, catalogado e mostrado morosamente. Talvez o zelo daqueles que conviveram com o artista, sobretudo os amigos artistas, fosse um índice de toda a pujança contida na sua produção vulcânica – ou justamente a necessidade de se resguardar e proteger essa mesma força disruptiva.

Diante do presente à qual estamos presos, há uma atmosfera enigmática e potente no encontro com a obra de Moraleida, oscilando entre o melhor dos tempos e o pior dos tempos para ser exposta de maneira franca.

A mostra reúne cerca de duzentos trabalhos, entre pinturas, desenhos, rascunhos, sons e textos que contemplam uma vida inteira, dos proto-quadrinhos e roteiros de sua infância aos manifestos elaborados quando já era estudante universitário. Tanto no trato com as séries exibidas quanto nos textos que as acompanham, a curadoria transita entre o vasto legado indomável deixado por Moraleida com sensibilidade. Não é uma retrospectiva formal, no sentido de ligar pontos marcantes da trajetória do artista. Trata-se de posicionar-se sobre as referências, no centro intempestivo de sua prática vigorosa, definida como dissidente de qualquer consenso estético, moral ou comportamental.

Moraleida levava às obras as teorias intuitivas e acadêmicas que lhe importavam, principalmente da filosofia, arte e psicanálise, comprometendo-se ou rebelando-se a estas alusões. Também lhe interessava o jogo entre a sacralidade e a banalidade dos símbolos e da linguagem, que explorava ao sacudir o poder consagratório da arte e da religião sobre a normatividade de juízos. “Condoa-se, então, filho da puta!”, dispara a frase cravada nas telas da derradeira série “Faça você mesmo sua Capela Sistina”.

O modo em que quebra os planos da pintura e insere as palavras na tela revela a influência do HQ no seu estilo de compor. O pop, o expressionismo alemão e a música underground também são apreciações importantes para ele. As pinturas e desenhos contêm traços ferozes, nervosos, descontinuados. São elementos como corpos, animais, órgãos e ícones emendados e remendados em cores estridentes, forjando alegorias sobre violência, morte e impulsos pessoais. O sexo, o conflito, a escatologia são recursos subversivos empregados nestas articulações de escárnio.

No entanto, nada é explicitamente obsceno. Aliás, Moraleida corrompe o que é decerto obsceno – os abusos e opressões retratadas, no caso. A despeito do forte teor crítico imbuído nestas representações, algumas sensibilidades pudicas não escapam do choque pelo choque. Não à toa, em 2017, uma exposição do artista na capital mineira foi hostilizada por fundamentalistas e políticos midiáticos, na esteira de ataques às artes visuais que vêm ocorrendo em museus e faculdades desde o golpe de 2016.

Nem todo gesto é um grito. Alguns deles são gargalhadas, outros são quimeras. Uma fina camada de ironia e sarcasmo se deposita nas personalidades extremadas, no exagero e no tom instável e ensimesmado de tudo. Sendo assim, o artista ardilosamente mistura verdade e ficção nos discursos. As angústias do consciente e pulsões do inconsciente estão à flor da pele das obras, mas de modo ambíguo.

Engendrando a própria mitologia de si, Moraleida revela sua inconformidade com as verdades absolutas do mundo tal como são… só porque assim são. Reclama pela loucura, pelo desvio, pela liberdade – sentimentos estes que podem acabar com uma vida ou revigorar outras tantas em curso.

 

“Canção do sangue fervente”
Até 17 de fevereiro
Instituto Tomie Ohtake, Pinheiros (São Paulo)
Terça a domingo, das 11h às 20h
Entrada gratuita


sobre o autor

Felipe Molitor é pesquisador independente formado em Jornalismo pela PUC-SP em cruzamento com Arte: história, crítica e curadoria na mesma universidade. Já publicou textos na Arte!Brasileiros, Harper’s Bazaar Art e Folha de S. Paulo. Tem atuado na direção e produção de vídeos e textos voltados ao circuito artístico.

 


*Este texto faz parte de uma série de reviews publicadas no site da SP-Arte. As opiniões veiculadas nos artigos de autores convidados não refletem necessariamente a opinião da instituição.

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