Pollyana Quintella reflete sobre como os trabalhos das artistas carregam uma forte relação apesar de terem se desenvolvido com anos de diferença

27 mar 2019, 19h54

POR POLLYANA QUINTELLA

 

O corpo agachado executa pequenos gestos, demarcando um repertório que continuamente se repete. A ação, de cerca de três horas, parece exigir silêncio. A intérprete está de costas para o público, concentrada. Notações em vinil estão aplicadas na parede, como ecos ou reverberações do movimento, um modo de escrever e codificar, expandir o corpo. O tempo da ação, combinado com a repetição incessante de movimentos, reforça a ideia de um presente espesso, cíclico, meditativo.

“Ponto e vírgula” (2018), de Maria Noujaim, apresenta a construção de um léxico minucioso, um vocabulário que integra corpo e arquitetura, buscando espacializar a linguagem. A partir de interesses na linguagem de sinais, na semiótica, e na incorporação de signos arbitrários, Noujaim constrói um poema gestual, cifrado.

Para a artista, o léxico “compõe uma unidade esférica que jamais chega a se realizar”, e o conjunto se refere aos sinais de pontuação “que começaram a ser convencionados nos tratados de retórica antigos, em que as pausas ditavam o ritmo da oratória”. No entanto, se a retórica é a arte da eloquência, em busca de persuasão, os gestos de Noujaim hipnotizam pelo silêncio, como se fomentassem o avesso.

Quarenta e seis anos antes, em 1973, Analivia Cordeiro realizava a primeira peça de videodança do Brasil: “M3x3”. No vídeo, uma grade com traçado geométrico, medindo 3 x 3 metros, demarca nove posições no chão, aos poucos exploradas pela coreografia. As intérpretes figuram como corpos anônimos, indistinguíveis, camufladas no cenário geométrico. Elas executam uma coreografia gerada por um software de computador, que produziu movimentos aleatórios para membros, tronco e cabeça. O programa coordenou ainda os enfoques e efeitos da câmera, tudo ao som de uma batida ininterrupta. Além disso, o alto contraste em preto e branco reforça a ideia de espaço bidimensional, transformando corpo em elemento do desenho.

Seria difícil não associar a presença constante de traçados e grades geométricas no trabalho de Analivia Cordeiro à herança de seu pai, o artista Waldemar Cordeiro. Aqui, no entanto, o saber tecnológico se apresenta sob uma via menos progressista e mais crítica, sem o tom laudatório do concretismo paulista.

Além disso, se “M3x3” é reconhecido como um trabalho pioneiro para a videodança – e também para a videoarte –, seu contexto de produção foi bastante distinto dos outros pioneiros do período. O trabalho de Cordeiro foi realizado com o apoio da TV Cultura, para a sua participação no festival de Edimburgo, dispondo de equipe e estrutura, e planejado para ser visto pelo grande público. A videoarte carioca, a partir de 1974, tomava, ao contrário, um caminho mais experimental, explorando os usos da tecnologia recém-chegada de maneira autônoma com Anna Bella Geiger, Ivens Machado, Antonio Dias, e outros que se agregariam em seguida.


Trata-se de uma diferença que também deve ser demarcada em relação a “Ponto e vírgula”, de Noujaim: Cordeiro considera o trabalho uma peça de “videodança”, enquanto Noujaim trabalha com a categoria da performance. Em “M3x3”, a ação só existe a partir do vídeo: o movimento da câmera também é componente da dança, para além do corpo. O saber tecnológico é aliado da composição. Em “Ponto e vírgula”, o vídeo é apenas registro, longe de captar a exaustão ou a minúcia da experiência.

E se Cordeiro elaborou uma produção para um circuito de recepção em massa, jogando com os códigos da televisão, Noujaim produz um encontro intimista, miúdo, recusando estruturas cenográficas e imagens espetaculares. Essa diferença também se manifesta no repertório de movimentos presentes nos dois trabalhos: em “M3x3”, os gestos são amplos e largos; em “Ponto e vírgula”, curtos, sucintos. A peça de Cordeiro também pretendia tecer uma espécie de crítica da sociedade da época: o corpo refletindo os avanços da modernidade, o conflito entre subjetividade e máquina. A artista afirmou que, nesse trabalho, buscava “a relação mecânica entre as pessoas, a prioridade da mídia sobre a expressão pessoal, a redução ao branco-preto, ao sim-não, sem cromatismos, sem nuances, sem o meio. Dentro destas regras de ação, fornecidas pelo computador aos dançarinos e equipe de TV, regras sociais; existia um espaço para a criação, uma nova forma de leitura e interpretação dos movimentos do corpo, aberta a sugestões individuais (para mim, planejar movimentos não é realizar um desenho animado).”

A performance de Noujaim também conta com uma partitura elaborada a partir de critérios próprios, que pode ser interpretada segundo o bioritmo do bailarino. No entanto, seu sentido se afasta de qualquer narrativa que esteja colada na ideia de presente político ou crítica social. O gesto busca uma autonomia que atravessa a ideia de tempo histórico, passando pela retórica antiga e pelo vinil de plástico. Curiosamente, um dos critérios para ser intérprete de “Ponto e vírgula” é ser do gênero feminino, assim como “M3x3” foi toda interpretado por mulheres.

Entre o vídeo de dez minutos e a ação de três horas, com mais de quarenta anos de intervalo, estratégias distintas buscam relacionar corpo, desenho/plano, espaço/arquitetura. Aqui cabe recordar o que Arlindo Machado chamou, a respeito do trabalho de Analivia Cordeiro, de “embodiment”: o corpo como interface entre o sujeito, a cultura, a natureza; o gesto como forma expressiva primordial. Em ambas, os recursos visuais e as sinalizações gráficas enfatizam o corpo como dispositivo que se desdobra no espaço, deixando rastro e escrita, ainda que na construção de dicções particulares, distintas.


SOBRE A AUTORA

Pollyana Quintella
Curadora-assistente do Museu de Arte do Rio (MAR) e pesquisadora independente. Formou-se em História da Arte pela UFRJ e é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, com pesquisa sobre Mário Pedrosa. Atuou na equipe de curadoria da Casa França-Brasil (2016),  foi coeditora da revista USINA e colunista do jornal Agulha. Curou exposições em instituições e espaços independentes no Rio de Janeiro e em São Paulo, com especial interesse para a interseção entre poesia e artes visuais.
Analivia Cordeiro (Aninat Isabel Galería) integra o setor Masters da SP-Arte 2019, enquanto Maria Noujaim (Galeria Jaqueline Martins) é uma das artistas que se apresenta no setor Performance. O Festival Internacional de Arte de São Paulo acontece de 3 a 7 de abril, no Pavilhão da Bienal.

 


*Este texto faz parte de uma série de colunas publicadas no site da SP-Arte. As opiniões veiculadas nos artigos de autores convidados não refletem necessariamente a opinião da instituição.

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