Ana Mendieta, "Ocean Bird (Washup)", 1974. © 2023 The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC
Artigo

A trajetória de Ana Mendieta a partir de duas exposições no Sesc Pompeia, por Luana Fortes

Luana Fortes
19 out 2023, 14h26

Sobre um fundo escuro, paira o rosto de uma mulher de olhos cerrados, enquanto de seu couro cabeludo um líquido vermelho começa a escorrer. É o filme-performance Sweating Blood, gravado por Ana Mendieta (1948-1985) em 1973, um dos 21 trabalhos que integram a exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo no Sesc Pompeia. Com curadoria de Daniela Labra, a individual é a primeira exposição abrangente da obra de Mendieta na América Latina.

O curto filme gravado em Super 8, feito um ano após a artista ter recebido seu mestrado pela Universidade de Iowa, é um dos poucos em que o corte é mantido apenas na face. E é uma porta de entrada para assuntos que envolvem a produção da artista cubano-americana. A presença e implicação do próprio corpo nos trabalhos é uma dessas portas, que se manteve constante ao longo de sua trajetória e produção.

Acima: Ana Mendieta, "Ocean Bird (Washup)", 1974. © 2023 The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC

Ana Mendieta, "Sweating Blood", 1973. Foto: Reprodução Artnet News / Cortesia Galerie Lelong

Ana Mendieta, "Sweating Blood", 1973. Foto: Reprodução Artnet News / Cortesia Galerie Lelong

Por um lado, essa presença demarca a associação de Mendieta a debates fervilhantes nos Estados Unidos dos anos 1970 sobre a desmaterialização da arte, na medida em que a artista parte de uma formação e produção com a pintura para o desenvolvimento de uma produção no vídeo e foto-performance. Ou seja, a performance era feita para ser filmada ou fotografada, não dependendo da presença de público quando realizada. Em um dos textos do catálogo da exposição de Ana Mendieta no Centro Galego de Arte Contemporânea, em 1996, na Espanha, a artista declarou: “Na arte o ponto de inflexão ocorreu em 1972, quando compreendi que minhas pinturas não eram suficientemente reais para o que eu quero que transmita a imagem, e quando digo real queria dizer que minhas imagens tivessem força e que fossem mágicas”.

Por outro lado, a relação do uso do próprio corpo com o autorretrato traz consigo a implicação de si enquanto corpo social político, abrangendo questões relativas a gênero e racialidade, na medida em que se coloca enquanto mulher e imigrante latino-americana diante da câmera. Se seu rosto está a sangrar e de olhos fechados, seria uma cena após uma agressão? É por meio de nuances como essas que Ana Mendieta trata sobre a violência contra mulheres.

Ana Mendieta © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy Galerie Lelong & Co. Licensed by Artist Rights Society, New York / AUTVIS

Ana Mendieta © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy Galerie Lelong & Co. Licensed by Artist Rights Society, New York / AUTVIS

Sujeita

Ao se colocar simultaneamente como autora e figura, usando a si mesma como a pessoa que sofre determinadas ações, Mendieta também se coloca enquanto sujeito. Ela modifica o eixo de ação e quebra com lógicas de passividade. Não se trata mais de mulheres e/ou pessoas racializadas sendo tidos como objeto de análise, representação e/ou desejo. Trata-se de ser, ela mesma, quem analisa e quem é analisada. Quem representa e quem é representada.

Na série de trabalhos Silhuetas, feita entre 1973 e 1980, bem abarcada na exposição no Sesc Pompeia, essa questão ganha ainda outras dimensões. A série é composta de ações feitas ao ar livre em ambientes naturais, em que Mendieta esculpe a silhueta de seu corpo no solo e em alguns casos agrega materiais sobre ou ao redor. O registro dessas ações é feito com foto ou com filme, e contempla às vezes apenas a marca da silhueta no solo ou também a própria imagem do corpo de Ana Mendieta.

A artista leva ao limite noções de visibilidade e desaparecimento, destacando a distância entre um corpo e sua representação. O que está presente na imagem pode ser o rastro do corpo ou o corpo junto de seu rastro. Assim, também trata sobre a capacidade de gerar significado sobre a falta, a ausência.

Ana Mendieta, "Alma, Silueta en Fuego", 1975 - © Mendieta, Ana/ AUTVIS, Brasil, 2023.

Ana Mendieta, "Alma, Silueta en Fuego", 1975 - © Mendieta, Ana/ AUTVIS, Brasil, 2023.

Sangue

Silhueta Sangrenta (1975), um dos trabalhos da série, mostra uma silhueta na lama da beira de um rio em Iowa. As primeiras imagens exibem o corpo nu de Ana Mendieta se deitando de barriga para cima sobre a silhueta. Corta. O mesmo enquadramento mostra a silhueta repleta de sangue. Corta. Ana Mendieta volta ao quadro e se deita de barriga para baixo sobre o sangue. Neste trabalho, assim como em Sweating Blood, a artista opta por usar a carga metafórica e física do sangue, que pode ser associado tanto com a vida, quanto com a morte.

Ao realizar esse e outros trabalhos em ambientes naturais, a artista coloca o corpo ou o rastro de corpo em relação à própria natureza. Mendieta buscava as associações entre si mesma e a terra, que em sua obra ganhava contornos de ritualidade, já que defendia que o maior valor da arte era o seu papel espiritual.

Ana Mendieta, Untitled: Silueta series, 1976. Foto: Reprodução © 2023 The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC.

Ana Mendieta, Untitled: Silueta series, 1976. Foto: Reprodução © 2023 The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC.

Um dos primeiros textos da exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo é justamente uma declaração em que a artista fala desse seu interesse. “Eu venho mantendo um diálogo entre a paisagem e o corpo feminino. Tendo sido arrancada de minha terra natal durante a adolescência, sinto-me oprimida pela sensação de ter sido expulsa do útero (Natureza). Minha arte é a forma como estabeleço os laços que me unem ao Universo. É um retorno à fonte materna”.

Entre o rito, o sacrifício e a magia, o trabalho de Ana Mendieta navegava entre avivamentos da relação entre si mesma e a natureza, rompendo as separações racionalistas entre natureza e cultura, e a contestação das violências materiais e simbólicas que podem sofrer os corpos subalternizados.

Ana Mendieta, "Anima, Silueta de Cohetes (Firework Piece)", 1976. © Mendieta, Ana/ AUTVIS, Brasil, 2023.

Ana Mendieta, "Anima, Silueta de Cohetes (Firework Piece)", 1976. © Mendieta, Ana/ AUTVIS, Brasil, 2023.

Feminismos

Complementando a exposição, acontece também a mostra coletiva e concomitante terra abrecaminhos (esta também com curadoria de Daniela Labra e curadoria adjunta de Hilda de Paulo e assistência de Maíra de Freitas). Com trabalhos de 30 artistas e pensadores que tocam em assuntos relacionados à produção de Ana Mendieta, a coletiva pretende abordar diretamente as relações entre a obra da artista e os feminismos, já que esse é um aspecto que aparece apenas marginalmente em Ana Mendieta: Silhueta em Fogo.

Com expografias semelhantes formalmente, que bem aproveitam o espaço do Sesc Pompeia projetado por Lina Bo Bardi, as duas exposições levam uma à outra, tornando quase impossível que apenas se veja uma delas. Em destaque, no começo ou fim de sua visita, está o trabalho que endereça o elefante na sala, o assunto que se evitou mencionar, mas que é inescapável. A morte de Ana Mendieta aos 36 anos.

Em uma vitrine alta, branca e envidraçada, está o trabalho Hand-Heart for Mendieta (1986), uma homenagem feita por sua colega artista estadunidense Carolee Schneeman. O trabalho reúne impressões fotográficas de ações feitas com tinta, cinzas, sangue e xarope sobre neve, e traz em formato de legenda expositiva uma carta assinada por Schneemann. “Nós artistas, especialmente artistas mulheres, sentimos que uma parte importante nossa foi morta quando ela foi morta. Seu falecimento foi uma enorme obliteração, gratuita e dolorosa, de energia e poder femininos. Ela escolheu o touro errado”, escreveu. Note-se que Schneemann opta por usar a voz passiva em “quando ela foi morta”, sem dizer o que teria sido responsável pela ação.

Carolee Schneemann, "Hand-Heart for Ana Mendieta", 1986. Foto: Reprodução Hales Gallery

Carolee Schneemann, "Hand-Heart for Ana Mendieta", 1986. Foto: Reprodução Hales Gallery

Em 1985, Ana Mendieta caiu (ou “teria caído”) da janela do apartamento em Nova York onde morava com seu companheiro, o artista minimalista Carl Andre, que foi acusado de tê-la assassinado. Andre foi absolvido, mas são muitos os que não acreditam na decisão judicial. O escritor Robert Katz escreveu um livro a respeito do caso chamado Naked by the Window: The Fatal Marriage of Carl Andre and Ana Mendieta, publicado em 1990. O podcast Death of an artist, também trata sobre a morte de Mendieta, com apresentação da curadora Helen Molesworth.

Entre os assuntos em torno da morte, muito se discute sobre quanto se deve realizar leituras sobre a trajetória de artistas levando em consideração as suas biografias. Em se tratando de uma exposição a respeito de Ana Mendieta, essa discussão ainda é mais delicada, uma vez que o possível feminicídio que teria levado à sua morte converge com os assuntos sobre os quais sua atuação e sua obra suscitam. Daí a relevância de uma exposição individual e abrangente, que se depara com as dificuldades em denominar Mendieta como uma artista feminista e trazer à tona o papel de seu ex-companheiro em sua morte, ser acompanhada por outra, contemporânea, mais livre, que não tenha medo de dar nome aos bois. Mas foi o caso?

Ana Mendieta: Silhueta em Fogo | terra abrecaminhos
Sesc Pompeia – São Paulo
Até 21 de janeiro de 2024


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Luana Fortes é curadora, jornalista cultural e professora, mestranda em Identidades e Culturas Brasileiras no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Integra o Núcleo Interdisciplinar de Professores da FAAP, lecionando nos cursos de Licenciatura em Artes Visuais, Bacharelado em Artes Visuais e Produção Cultural, e na pós-graduação em Práticas Artísticas Contemporâneas. Atualmente está vivendo e trabalhando em Los Angeles, Califórnia, participando do programa anual Getty Graduate Internship, atuando no departamento de Digital Media & Content Strategy do Getty Research Institute. Anteriormente, foi redatora-chefe da revista de arte contemporânea seLecT e produtora do Prêmio e Seminário de Arte e Educação da mesma organização. Também fez parte do Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake.

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