"Bruges", Lucien Frank, [1857-1920].
História

A história da era das feiras de arte

Paula Nunes
12 ago 2021, 16h27

“Da antiguidade à modernidade”. É assim que muitos dos estudos sobre as feiras de arte se apresentam, e com razão. São várias as formas de comércio, consumo, produção e criação de arte envolvidas e responsáveis pela estruturação do que chamamos hoje de mercado de arte, instituição que se construiu ao longo de séculos, perpassando uma série de modelos políticos e econômicos.

Escrevo, no entanto, sobre a feira de arte como meio prático para contato profissional entre críticos, colecionadores, curadores, diretores de museus, com uma ala criativa que apela aos entusiastas de arte. A imagem da feira como um festival, uma exposição grandiosa, que permite o acesso – comercial ou não – a gerações e meios artísticos diferentes é o resultado de construções e experimentações. A linha do tempo do mercado de arte é longa, mas aqui se destacam alguns dos marcos históricos essenciais para a compreensão do que chamamos hoje de “feira de arte”.

Acima: "Bruges", Lucien Frank, [1857-1920].

"Market Scene", Pieter Aertsen, [1560-1565]. Tinta a óleo sobre carvalho, 91 x 112 cm. (Kunsthistorisches Museum, Vienna). (Domínio público).

"Market Scene", Pieter Aertsen, [1560-1565]. Tinta a óleo sobre carvalho, 91 x 112 cm. (Kunsthistorisches Museum, Vienna).
(Domínio público).

As primeiras e rudimentares formas de comércio de arte, fundadoras da essência estrutural da feira, podem ser vistas em tempos tão longínquos quanto a antiguidade grega e romana, na forma de festivais religiosos enquanto os precursores das feiras de arte. Os festivais eram anuais e reuniam mercadores, elites e toda a cidade anfitriã e de terras mais afastadas, o que implicava em eventos enormes e que mobilizavam a população local ao ponto exigir a paralisação das atividades do dia-a-dia para dar conta das demandas da feira. O caráter religioso desses festivais é dado pela organização dessas sociedades, contundentemente hierárquicas, o que também define o caráter comercial desses eventos, que se tornaram pontos de exposição, compra e venda de artigos de luxo, com a finalidade de mostrar o poder das elites, desde sempre intrinsecamente ligado à materialidade.

Apesar de enraizadas na espiritualidade e na condição de que os participantes compartilhassem certos valores, essas feiras e festivais se tornaram plataformas comerciais centrais entre terras vizinhas. Essa proximidade religião-comércio de arte leva, inclusive, a etnógrafa e socióloga da cultura Sarah Thornton a se referir ao mercado e comunidade das artes como uma rede de subculturas mantidas juntas pela “crença na arte.

Desse modelo se originam, mais à frente, as feiras de artesanato. Sem a associação ao sagrado ou à veiculação de alguma mensagem político-religiosa, as feiras de artesanato mantiveram a formação de preço, transações e a raridade de itens vendidos. Essa consequência acidental dos festivais religiosos dura da antiguidade até o século XVI, período quando é fundado inclusive um sistema de proteção – física, alfandegária, etc – para os mercadores de artes, o que indica a seriedade que a especificação da feira passou a tomar.

Enfim, agora dedicada à venda de artigos artísticos, a feira também se tornou uma plataforma de observação e admiração. Com a criação de preços para bens similares estabilizada, havia espaço para a valorização e apreciação estética, que cresce em importância nesse momento. Desse ponto essencial na trajetória da feira de arte emerge um modelo que se mantém até hoje, e fez parte de modelos alternativos de feiras testados ao longo dos séculos que seguiram: estantes designados à exposição dos bens a serem comercializados.

MORGNER, Christian. The Evolution of the Art Fair. Historical Social Research / Historische Sozialforschung, v. 39, n. 3, 2014.

Idem

Idem

Naomi Martin From antiquity to modernity, how art fairs became a cultural mainstay.

MORGNER, Christian. The Evolution of the Art Fair. Historical Social Research / Historische Sozialforschung, v. 39, n. 3, 2014.

Bibliothèque de Genève - Trésor le marché (detalhe), Mestre da cidade de Rouen. (Bibliothèque de Genève, Ms. fr. 160).

Bibliothèque de Genève - Trésor le marché (detalhe), Mestre da cidade de Rouen.
(Bibliothèque de Genève, Ms. fr. 160).

"Medieval market", Nicole Oresme. (Bibliothèque Municipale, Ms. 927, fol. 145)

"Medieval market", Nicole Oresme. (Bibliothèque Municipale, Ms. 927, fol. 145)

Em meados do século XVI, o mercado de arte primário aparece principalmente em Florença, Bruges e na Antuérpia. Florença concentrou grande parte das obras associadas ao Renascimento, e o mercado era baseado em obras majoritariamente comissionadas (por igrejas, para prédios públicos, guildas ou casas de elite).

Um outro marco essencial para a história da feira de arte como a conhecemos é o mercado de Bruges, no século XV. Foi a principal cidade comercial da Europa nórdica e recebia feiras anuais que facilitavam o comércio, e que, segundo documentação, contavam com “barracas” (ou estantes) alugadas por artistas de toda a Europa para exposição e venda de suas obras.

No final do século XV, quando Bruges decai, a cidade de Antuérpia cresce e fornece ao mercado de arte o ambiente para seu florescimento graças às facilidades comerciais características da cidade. A “pand” (do alemão, “casa”), da Igreja de Nossa Senhora, na Antuérpia, tinha, nesse contexto, monopólio das vendas de obras de arte e permissão para ficar aberta e em funcionamento durante o ano todo. Esse modelo de “salão” para exposição é vital na linha do tempo das feiras porque foi o primeiro inteira e exclusivamente dedicado à arte, recebendo pinturas, esculturas e ilustrações, além de manuscritos.

MINNITI, Alexander. The evolution of the art market: from 15th century Florence to the Sotheby’s-eBay agreement. 2014/2015.

"Venus Italica", Antonio Canova, [1822- 1823]. Mármore, 175.3 cm. (Cortesia da Coleção do Metropolitan Museum of Art).

"Venus Italica", Antonio Canova, [1822- 1823]. Mármore, 175.3 cm.
(Cortesia da Coleção do Metropolitan Museum of Art).

Nos séculos XVII e XVIII, no entanto, com as melhorias de transporte e comunicação e a padronização de bens pelo mundo, consequência da “era da máquina” e do desenvolvimento industrial, o modelo de feira descrito é substituído pelas “feiras de amostra”, ou “sample fairs. As feiras de amostras reuniam objetos de feiras locais, nacionais e internacionais com o objetivo não mais de venda e apreciação, mas de encorajar produção industrial e efetuar a propaganda desses novos ítens industriais.

O sucesso dessas feiras, no entanto, dura pouco, devido ao declínio da classe aristocrata e dos Impérios Europeus. A consequência disso é a retomada de modelos antigos de venda de itens preciosos ou de luxo, e a substituição do mercado de trabalhos comissionados, mais uma vez, pelo de colecionadores, que ascende como modelo de exposição, já no século XX.

Entre 1667 e 1789, em Paris, o modelo expositivo era financiado pelo regime monárquico e apresentava obras de artistas da Academia Real de Pintura e Escultura. Em 1725, as feiras se abrem a públicos que não apenas as elites e, 70 anos mais tarde, permite a exposição de obras de artistas, independentemente de suas afiliações a certas escolas.

O sucesso do modelo expositivo, somado à instituição de longa data de feiras religiosas leva à realização das Feiras Mundiais. Em 1851 ocorreu a primeira exposição internacional, no Palácio de Cristal no Hyde Park, em Londres. A exposição recebeu 6 milhões de pessoas e, apesar do foco em gabinetes de curiosidades, tecnologias e afins, permite a participação das artes, que têm seu espaço garantido em 1900, na “Exposition Universelle”, em Paris, evento que funda inclusive edifícios e marcos histórico-culturais famosos até hoje.

MORGNER, Christian. The Evolution of the Art Fair. Historical Social Research / Historische Sozialforschung, v. 39, n. 3, 2014.

O Palácio de Cristal, 1873, página 129. volume 2 de "London (illustrated)". (Biblioteca Britânica).

O Palácio de Cristal, 1873, página 129. volume 2 de "London (illustrated)".
(Biblioteca Britânica).

Interior do Palacio de Cristal, Hyde Park, Londres, Philip Henry Delamotte, [1851-1852]. Coleção Gernsheim Collection, Londres. (Nesster)
Mãe da Floresta, no Palácio de Cristal, em Londres, Philip Henry Delamotte, [1859]. (Domínio público).

Interior do Palacio de Cristal, Hyde Park, Londres, Philip Henry Delamotte, [1851-1852].
Coleção Gernsheim Collection, Londres. (Nesster)

Mãe da Floresta, no Palácio de Cristal, em Londres, Philip Henry Delamotte, [1859].
(Domínio público).

A ideia das primeiras feiras nos moldes que conhecemos hoje era dar visibilidade e articulação a um mercado que já estava, em grau ou outro, bem desenvolvido. O que há em comum a todos os períodos, aqui abordados em torno de eventos de feiras, exposições e festivais, é a continuidade da produção artística – claro, com estéticas diferentes, patrocínios e encomendas diferentes, etc.

Isso se destaca porque é, de fato, característica da Feira, reconhecer no mercado e em modos de arte que existem a necessidade de valorização e a oportunidade de comercialização: as feiras de arte facilitaram as atividades do mercado de arte e são plataformas historicamente firmes e consolidadas que garantem às galerias e a artistas – emergentes ou não – suas respectivas presenças no mundo da arte.

Apesar da estabilidade do modelo, a feira de arte segue sujeita às mazelas e às maravilhas de seu tempo. Nos últimos anos, depois das Guerras mundiais, com o avanço da internet, as gerações mais novas do mercado de arte têm trabalhado, construído negócios e fortunas online, e identificaram, novamente com razão, na internet, um veículo de comercialização de arte, o que aumentou o volume – monetário e físico – das vendas de arte.

210811-editorial-histofeirasdearte-imgmateria11

Ficou claro que a vontade de sobrevivência das feiras de arte é maior que as intempéries dos tempos. O século XXI é caracterizado, nas artes, pelo “boom” das feiras de arte, que adotou, ao longo dos anos, estruturas novas e se adaptou, de maneira muito inteligente, às especificidades da modernidade. O que antes era um mercado fechado e de nicho, elitizado, se abre para a globalização digital e física, e se adapta rápida e dinamicamente, especialmente em sociedades ativamente mutáveis.

Estamos, hoje, vivenciando um desses pontos de virada que ocorreram nos últimos milênios. A pandemia do último ano foi a marca e desafio ao mercado de arte, que sobreviveu e cresceu graças ao aprofundamento e especialização do uso de Online Viewing Rooms, que suavizam inclusive a aproximação do público à arte da Feira e ao olhar atento e realmente cuidadoso às artes, criando novas plataformas de acesso à cultura, elemento imperioso na formação cidadã de um país. A crença na arte permanece, e é isso que mantém as feiras como modelo estável o suficiente para se adaptarem às mudanças de seus tempos, mas também como um modelo e instituição inovadoras, capazes de fundarem, em seu próprio nome, a era das feiras de arte.


paula-perfil

Paula Nunes é estudante de História na Universidade de São Paulo e Arte: história, crítica e curadoria na PUC-SP. Atenta às nuances na relação entre história e arte brasileiras, faz parte da equipe editorial da SP–Arte.

Perfil SP–Arte

Faça parte da comunidade SP–Arte! Somos a maior feira de arte e design da América do Sul e queremos você com a gente. Crie ou atualize o seu perfil para receber nossas newsletters e ter uma experiência personalizada em nosso site e em nossas feiras.