Editorial
História
A história da era das feiras de arte
Paula Nunes
12 ago 2021, 16h27
“Da antiguidade à modernidade”. É assim que muitos dos estudos sobre as feiras de arte se apresentam, e com razão. São várias as formas de comércio, consumo, produção e criação de arte envolvidas e responsáveis pela estruturação do que chamamos hoje de mercado de arte, instituição que se construiu ao longo de séculos, perpassando uma série de modelos políticos e econômicos.
Escrevo, no entanto, sobre a feira de arte como meio prático para contato profissional entre críticos, colecionadores, curadores, diretores de museus, com uma ala criativa que apela aos entusiastas de arte. A imagem da feira como um festival, uma exposição grandiosa, que permite o acesso – comercial ou não – a gerações e meios artísticos diferentes é o resultado de construções e experimentações. A linha do tempo do mercado de arte é longa, mas aqui se destacam alguns dos marcos históricos essenciais para a compreensão do que chamamos hoje de “feira de arte”.
Acima: "Bruges", Lucien Frank, [1857-1920].
As primeiras e rudimentares formas de comércio de arte, fundadoras da essência estrutural da feira, podem ser vistas em tempos tão longínquos quanto a antiguidade grega e romana, na forma de festivais religiosos enquanto os precursores das feiras de arte. Os festivais eram anuais e reuniam mercadores, elites e toda a cidade anfitriã e de terras mais afastadas, o que implicava em eventos enormes e que mobilizavam a população local ao ponto exigir a paralisação das atividades do dia-a-dia para dar conta das demandas da feira. O caráter religioso desses festivais é dado pela organização dessas sociedades, contundentemente hierárquicas, o que também define o caráter comercial desses eventos, que se tornaram pontos de exposição, compra e venda de artigos de luxo, com a finalidade de mostrar o poder das elites, desde sempre intrinsecamente ligado à materialidade.
Apesar de enraizadas na espiritualidade e na condição de que os participantes compartilhassem certos valores, essas feiras e festivais se tornaram plataformas comerciais centrais entre terras vizinhas. Essa proximidade religião-comércio de arte leva, inclusive, a etnógrafa e socióloga da cultura Sarah Thornton a se referir ao mercado e comunidade das artes como uma rede de subculturas mantidas juntas pela “crença na arte“.
Desse modelo se originam, mais à frente, as feiras de artesanato. Sem a associação ao sagrado ou à veiculação de alguma mensagem político-religiosa, as feiras de artesanato mantiveram a formação de preço, transações e a raridade de itens vendidos. Essa consequência acidental dos festivais religiosos dura da antiguidade até o século XVI, período quando é fundado inclusive um sistema de proteção – física, alfandegária, etc – para os mercadores de artes, o que indica a seriedade que a especificação da feira passou a tomar.
Enfim, agora dedicada à venda de artigos artísticos, a feira também se tornou uma plataforma de observação e admiração. Com a criação de preços para bens similares estabilizada, havia espaço para a valorização e apreciação estética, que cresce em importância nesse momento. Desse ponto essencial na trajetória da feira de arte emerge um modelo que se mantém até hoje, e fez parte de modelos alternativos de feiras testados ao longo dos séculos que seguiram: estantes designados à exposição dos bens a serem comercializados.
MORGNER, Christian. The Evolution of the Art Fair. Historical Social Research / Historische Sozialforschung, v. 39, n. 3, 2014.
Idem
Idem
Naomi Martin From antiquity to modernity, how art fairs became a cultural mainstay.
MORGNER, Christian. The Evolution of the Art Fair. Historical Social Research / Historische Sozialforschung, v. 39, n. 3, 2014.
Em meados do século XVI, o mercado de arte primário aparece principalmente em Florença, Bruges e na Antuérpia. Florença concentrou grande parte das obras associadas ao Renascimento, e o mercado era baseado em obras majoritariamente comissionadas (por igrejas, para prédios públicos, guildas ou casas de elite).
Um outro marco essencial para a história da feira de arte como a conhecemos é o mercado de Bruges, no século XV. Foi a principal cidade comercial da Europa nórdica e recebia feiras anuais que facilitavam o comércio, e que, segundo documentação, contavam com “barracas” (ou estantes) alugadas por artistas de toda a Europa para exposição e venda de suas obras.
No final do século XV, quando Bruges decai, a cidade de Antuérpia cresce e fornece ao mercado de arte o ambiente para seu florescimento graças às facilidades comerciais características da cidade. A “pand” (do alemão, “casa”), da Igreja de Nossa Senhora, na Antuérpia, tinha, nesse contexto, monopólio das vendas de obras de arte e permissão para ficar aberta e em funcionamento durante o ano todo. Esse modelo de “salão” para exposição é vital na linha do tempo das feiras porque foi o primeiro inteira e exclusivamente dedicado à arte, recebendo pinturas, esculturas e ilustrações, além de manuscritos.
MINNITI, Alexander. The evolution of the art market: from 15th century Florence to the Sotheby’s-eBay agreement. 2014/2015.
Nos séculos XVII e XVIII, no entanto, com as melhorias de transporte e comunicação e a padronização de bens pelo mundo, consequência da “era da máquina” e do desenvolvimento industrial, o modelo de feira descrito é substituído pelas “feiras de amostra”, ou “sample fairs“. As feiras de amostras reuniam objetos de feiras locais, nacionais e internacionais com o objetivo não mais de venda e apreciação, mas de encorajar produção industrial e efetuar a propaganda desses novos ítens industriais.
O sucesso dessas feiras, no entanto, dura pouco, devido ao declínio da classe aristocrata e dos Impérios Europeus. A consequência disso é a retomada de modelos antigos de venda de itens preciosos ou de luxo, e a substituição do mercado de trabalhos comissionados, mais uma vez, pelo de colecionadores, que ascende como modelo de exposição, já no século XX.
Entre 1667 e 1789, em Paris, o modelo expositivo era financiado pelo regime monárquico e apresentava obras de artistas da Academia Real de Pintura e Escultura. Em 1725, as feiras se abrem a públicos que não apenas as elites e, 70 anos mais tarde, permite a exposição de obras de artistas, independentemente de suas afiliações a certas escolas.
O sucesso do modelo expositivo, somado à instituição de longa data de feiras religiosas leva à realização das Feiras Mundiais. Em 1851 ocorreu a primeira exposição internacional, no Palácio de Cristal no Hyde Park, em Londres. A exposição recebeu 6 milhões de pessoas e, apesar do foco em gabinetes de curiosidades, tecnologias e afins, permite a participação das artes, que têm seu espaço garantido em 1900, na “Exposition Universelle”, em Paris, evento que funda inclusive edifícios e marcos histórico-culturais famosos até hoje.
MORGNER, Christian. The Evolution of the Art Fair. Historical Social Research / Historische Sozialforschung, v. 39, n. 3, 2014.
A ideia das primeiras feiras nos moldes que conhecemos hoje era dar visibilidade e articulação a um mercado que já estava, em grau ou outro, bem desenvolvido. O que há em comum a todos os períodos, aqui abordados em torno de eventos de feiras, exposições e festivais, é a continuidade da produção artística – claro, com estéticas diferentes, patrocínios e encomendas diferentes, etc.
Isso se destaca porque é, de fato, característica da Feira, reconhecer no mercado e em modos de arte que existem a necessidade de valorização e a oportunidade de comercialização: as feiras de arte facilitaram as atividades do mercado de arte e são plataformas historicamente firmes e consolidadas que garantem às galerias e a artistas – emergentes ou não – suas respectivas presenças no mundo da arte.
Apesar da estabilidade do modelo, a feira de arte segue sujeita às mazelas e às maravilhas de seu tempo. Nos últimos anos, depois das Guerras mundiais, com o avanço da internet, as gerações mais novas do mercado de arte têm trabalhado, construído negócios e fortunas online, e identificaram, novamente com razão, na internet, um veículo de comercialização de arte, o que aumentou o volume – monetário e físico – das vendas de arte.
Ficou claro que a vontade de sobrevivência das feiras de arte é maior que as intempéries dos tempos. O século XXI é caracterizado, nas artes, pelo “boom” das feiras de arte, que adotou, ao longo dos anos, estruturas novas e se adaptou, de maneira muito inteligente, às especificidades da modernidade. O que antes era um mercado fechado e de nicho, elitizado, se abre para a globalização digital e física, e se adapta rápida e dinamicamente, especialmente em sociedades ativamente mutáveis.
Estamos, hoje, vivenciando um desses pontos de virada que ocorreram nos últimos milênios. A pandemia do último ano foi a marca e desafio ao mercado de arte, que sobreviveu e cresceu graças ao aprofundamento e especialização do uso de Online Viewing Rooms, que suavizam inclusive a aproximação do público à arte da Feira e ao olhar atento e realmente cuidadoso às artes, criando novas plataformas de acesso à cultura, elemento imperioso na formação cidadã de um país. A crença na arte permanece, e é isso que mantém as feiras como modelo estável o suficiente para se adaptarem às mudanças de seus tempos, mas também como um modelo e instituição inovadoras, capazes de fundarem, em seu próprio nome, a era das feiras de arte.
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