Editorial
Ensaio
A evocação, a revelação e o Brasil
Diego Matos
20 jul 2021, 14h03
De uma forma ou de outra, a série Brujas conforma o encontro de Nuno Ramos com o absurdo, algo também da ordem do obscuro ou vertiginoso que parece ganhar claridade e força quando damos a devida atenção ao desenho. Assim como dissolveu em lírica a noção tradicional de samba, no conjunto de canções do disco Sambas do Absurdo (2017) – composições de Rodrigo Campos e letras do próprio Nuno Ramos –, o artista plástico evoca no desenho cotidiano a busca quase desesperada por um chamamento do desconhecido, trazendo para o plano da realidade insólita, hostil e incerta de hoje, uma outra força transformadora, mais explícita, talvez estético-política.
Em certo sentido, é o que o próprio artista escreveu na letra de “Samba do Absurdo 6”, ao narrar uma vontade de descoberta de alguma verdade ainda oculta, de um desejo libidinoso: “o último caroço desse fruto / um peito, um puto dum prazer / de conhecer o poço oculto”. Não seria forçoso dizer que a canção pode ser uma tentativa de resposta que comparece analogamente, agora, nos gestos contidos nestes desenhos. O canto de Juçara Marçal, o violão de Rodrigo Campos, os arranjos e programações de Gui Amabis entonam e dão vida à palavra de Ramos.
Acima: Vista da exposição "Brujas", de Nuno Ramos, com curadoria de Diego Matos em cartaz na Fortes D'Aloia & Gabriel. Todas as imagens publicadas nessa matéria são de autoria de Eduardo Ortega e cortesia da Fortes D'Aloia & Gabriel.
Se retrocedermos alguns anos na trajetória do artista, um trabalho de 2002 parece confluir para ideias ensejadas aqui. No filme Luz Negra (ParaNelson 1), concebido em parceria com o artista Eduardo Climachauska, Ramos apresenta o enterro de caixas de som em um grande descampado com sol a pino. Enquanto as caixas vão sendo cobertas, tornando-se invisíveis, a canção “Juízo Final”, composta e interpretada por Nelson Cavaquinho, ganha força, para depois ser abafada pela terra. No revés do que se vê estão o azul do céu e o sol que quase cega. Mais uma vez, os movimentos de fuga para dentro e de fuga para fora se apresentam. Entretanto, se o sentimento evocado pela canção é abafado, nos trabalhos de hoje há uma aproximação literal com a canção: é querer ter olhos para ver a maldade desaparecer, acreditar que o sol brilhará mais uma vez e que o amor poderá ser eterno novamente.
Tanto em um caso como em outro, Ramos me faz pensar no termo empregado por Hélio Oiticica em Brasil diarréia (1970), ao falar de uma doença típica brasileira, a “convi-conivência”. Ela parece ter ganho novos contornos no Brasil atual. Agir no combate a esta doença é um problema de contingência da arte, que precisa, em certas situações, tomar uma possível posição ético-política. Em um país de uma pandemia descontrolada, de um ambiente de intolerância e sectarismo e de uma inépcia do poder governamental, a produção artística poderá ganhar um lugar de ambivalência, sem valores absolutos, ancorado no tempo presente e com um mote deflagrador.
No meu entender, o que o artista nos dá é uma força motriz de representação que vem como contrária ao estado de apatia diante do desmoronamento sem fim que estamos vivenciando há pelo menos quatro anos no Brasil. No que se refere à violência sócio-política atual, se há uma relação mais direta, objetiva e simbólica nos trabalhos que perfazem o projeto A extinção é para sempre, nas Brujas vê-se a materialização do cotidiano do artista, uma prática quase arqueológica, investigativa e reflexiva. Entendo estas novas obras de Nuno Ramos como uma ação possível de se construir visões em desmesura diante da ruína e da inércia que nos assolam.
Este é um trecho de “O prazer de conhecer um poço oculto: as Brujas de Nuno Ramos”, texto crítico escrito no contexto da mostra “Brujas”, em cartaz na Fortes D’Aloia & Gabriel até 14/08. Visite o site da galeria para ler a versão completa.
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