Francesco Perrotta-Bosch analisa filosoficamente as diferenças entre arte moderna e contemporânea

28 out 2019, 15h05

por Francesco Perrotta-Bosch

 

O objetivo da arte pode ser antever uma condição (melhor) de mundo. O objetivo da arte também pode não ter como propósito a concepção de um projeto para o futuro, assim lidando com o presente.

A partir disso, há outra distinção a se fazer: imaginar um porvir tende a entrar na chave do idealismo; por sua vez, o hoje interessa se lidarmos com as adversidades, problemas, distúrbios, tragédias, carências, precariedades, traumas.

Tais diferenciações abrem caminho para uma das (várias) entradas possíveis na distinção entre arte moderna e arte contemporânea. É um tema pertinente a atualidade, mas nem um pouco novo.

Ainda na década de 1930, o filósofo alemão Edmund Husserl dissertou sobre a “Crise das ciências europeias”. Questionava a aceitação plena da ciência enquanto fonte da verdade que encaminha ao progresso social a todos. Já antecipava que a ilimitada crença na razão e na técnica permite negligenciar “a constante ameaça de se cair em unilateralidades”, isto é, regimes totalitaristas – fascistas, nazistas – de implantação de uma ideia e objetivo único em detrimento de várias subjetividades – ou seja, a supressão da diversidade de pensamentos. Para Husserl, o credo irrestrito na ciência não impede discursos messiânicos “que se vingam em contradições subsequentes”: por exemplo, duas Grandes Guerras Mundiais.

Afinal, a bomba atômica é resultado do mais alto empenho técnico. Do mesmo modo são os tanques, os aviões de batalha, as armas, as substâncias químicas para câmaras de gás dos campos de concentração e extermínio. Os milhões de mortos da Segunda Guerra escancaram que a barbárie também é um dos resultados mais significativos da ciência.

Por isso, no livro “Arte Moderna”, Giulio Carlo Argan introduz a arte pós-1945 a partir de um incômodo com princípios das vanguardas artísticas modernistas da primeira metade do século 20.

Por exemplo, o historiador italiano afirma que “um quadro de Mondrian não é uma imagem de ordem, mas um ‘pôr ordem’.” O neoplasticismo é um modelo que se apresenta como matriz exemplar a uma variedade de circunstâncias. A síntese e clareza semiótica do sistema formal e tonal de Piet Mondrian deveria, em seu intuito, reverberar e ser reproduzido em toda ação plástica humana.

Não foi somente o artista holandês. Vários manifestos das vanguardas modernas foram determinados por raciocínios que submetiam criatividade e imaginação a ideais positivistas. Também sobre ambições universalizantes assentavam-se o cubismo de Picasso e Braque, o construtivismo russo de Malevich e Tatlin, o design de Marianne Brandt ou Marcel Breuer no período da Bauhaus, e, certamente, Le Corbusier com o Modulor, os cinco pontos de arquitetura e a concepção de casa como máquina de morar. Com uma visão impositiva, essas vanguardas acreditavam na possibilidade de pautar a vida pela estética – mais especificamente, por um padrão estético por elas definido.

Mais uma vez, Argan vai direto ao ponto: “Para que continuar a contrapor a utopia da razão ao brutal realismo do poder?” O idealismo não funciona com aqueles que testemunham a carnificina da Guerra: em suas mentes ficam gravadas as feridas dos combates, a dilaceração humana, as queimaduras nos corpos, as suturas feitas na pele e nos músculos, a transfiguração das paisagens naturais e urbanas em campos de devastação e ruína.

A biografia de um artista é especialmente esclarecedora desta situação. O italiano Alberto Burri era médico quando, em 1940, é convocado pelo exército do governo fascista de Benito Mussolini. Vai para linhas de frente na Iugoslávia e no norte da África. É preso pelo exército inglês em maio de 1943 no litoral tunisiano e, após, levado para um campo de prisioneiros em Hereford, no Texas. Lá Burri faz seus primeiros trabalhos artísticos como um passatempo para, em suas próprias palavras, “não ter de pensar sobre a guerra e tudo ao meu redor.”

Após sua libertação, retorna à Itália e começa a série de quadros intitulados “Sacchi”. A matéria-prima principal são os grosseiros tecidos de estopa e juta de sacos de areia utilizados para barricadas, transporte de mantimentos para as tropas, ou barracas e cortinas divisórias nas bases provisórias do exército. Burri não empregava material fabricado para finalidades artísticas: utilizava somente aquilo que teve uma “vida útil” prévia e foi garantia da sobrevivência de muitos. São sacos tão facilmente esgarçáveis quanto a frágil condição de vida no momento de crise máxima da civilização ocidental.

Tais crus tecidos recebiam meticulosos procedimentos manuais tributários da destreza obtida pelo artista no período militar e na prática médico-cirúrgica. Tinha habilidade para ora suturar (como se tratasse de pele humana), ora costurar (como se remendasse um uniforme surrado). Não fazia cortes assertivos e lineares. Esgarçava o que havia de geometria. O talhar de Burri era tortuoso, contendo meandros que manifestavam incertezas e dúvidas.

Nos “Sacchi”, intenta-se conferir uma (dolorosa) vitalidade a materiais ditos “mortos”. Os vestígios das lacerações da matéria permanecem. Burri mantém e expõe as cicatrizes de terem estado no mundo. Seus quadros são superfícies compostas por tramas fraturadas em frágil equilíbrio.

Trouxe Alberto Burri, mas a biografia de Joseph Beuys me levaria a conclusões semelhantes. Respostas à vivência da barbárie também aparecem em artistas que o curador Germano Celant reuniu sob a alcunha Arte Povera. Está na mesma chave o que Lina Bo Bardi intitulou como pré-artesanato nordestino. Mais recentes e igualmente válidas, cada qual a seu modo, são as obras de Anselm Kiefer, Guillermo Kuitca e Thomas Hirschhorn.

A situação vivida como matéria prima é o que faz destes artistas contemporâneos. Dispensam qualquer compromisso com a noção de progresso, numa franca contraposição às vanguardas modernas. Há descrença na capacidade solucionadora do projeto. Não se pautam por regras metodológicas. Questionam as noções de unidade e ordem. Parâmetros geométricos não mais são certezas unívocas. Todo cânone é colocado na berlinda.

Ao estabelecer afeto com a dimensão trágica da vida, a arte contemporânea é cética com qualquer tentativa pacificação de complexas situações por meio da plástica ou, em outros termos, de um ideal de forma. Isto segue muito pertinente nos duros dias que presenciamos: talvez só caiba suturar os farrapos esgarçados deixados pelo dito racionalismo, capaz de violentar em nome de supostos ideais.


Sobre o autor

Francesco Perrotta-Bosch é arquiteto, ensaísta e curador.

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