Editorial
Zanine Caldas: a arte de emocionar
25 Mar 2019, 2:38 pm
POR REGINA GALVÃO
Ao pensar na sala do apartamento em Brasília, onde viveu na década de 1980, o designer Zanini de Zanine, caçula do arquiteto José Zanine Caldas (1919-2001), lembra-se de uma cena recorrente: o pai debruçado sobre papel milimetrado na mesa de tampo de vidro e base de madeira maciça em formato de canoa. “Ele gostava de colocar ali frutas e flores secas”, conta. Antes de o sol nascer, Caldas já rascunhava seus projetos nesse móvel, rodeado por cadeiras Thonet com assento de palhinha. “Ele gostava de tirar proveito do silêncio da madrugada”, explica o filho.
Essas e outras memórias estão sendo retomadas por Zanini para recriar na SP-Arte, no espaço batizado Ocupação Zanine, o ambiente e a atmosfera do imóvel localizado na Asa Sul da capital federal. Além da mesa, emprestada do acervo do escritório de arte Marcela Bartolomeo, Zanini pretende expor objetos que pertenceram ao pai: óculos, régua triangular, artesanato e esculturas, além de samambaias, maquetes, papeis manteiga e até o abajur que ele usava para iluminar os projetos.
Esse cenário, cujo objetivo é prestar homenagem ao centenário do profissional, ajuda a contextualizar a obra de Zanine Caldas, reconhecido como um expoente da nossa arquitetura. O curioso, porém, é saber que esse baiano de Belmonte, no sul do estado, nunca frequentou a universidade como aluno, apenas como professor – lecionou na FAU e na UNB. Aprendeu tudo o que sabia na prática. Começou como desenhista até montar o próprio ateliê de maquetes nos anos 1940. Fez 730 delas para os mais renomados arquitetos da época, como Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Rino Levi, Oswaldo Bratke, entre outros. Com esse seleto time adquiriu o conhecimento que o capacitou a projetar casas. Não as de concreto, muito em voga entre os modernos, mas as de madeira, material que lhe valeu inspiração para a vida toda. “Tenho respeito muito grande à madeira, toda vida ela me ensinou, me emocionou. Madeira é a matéria-prima que mais favoreceu o ser humano e cada vez vai favorecer mais”, afirmava.
Na Joatinga, bairro no Rio de Janeiro, ergueu dezenas dessas casas na íngreme encosta, entre São Conrado e a Barra da Tijuca, que desafiavam os cálculos de engenharia. Debruçados sobre o mar, com grandes vãos para privilegiar a paisagem, os imóveis mantinham certo ar colonial com portas, janelas, piso e telhas adquiridos nos prédios históricos derrubados no centro do Rio de Janeiro. “Ele foi pioneiro ao usar material reciclado”, diz o filho Zanini. Esse estilo rústico e despojado caiu no gosto da classe média de vanguarda carioca, que se tornou clientela fiel de seus projetos.
Para as residências, Zanine também criava mobília. No final dos anos 1940, fundou a fábrica Móveis Artísticos Z, em São José dos Campos, no interior de São Paulo, com o objetivo de produzir peças modulares de compensado naval para os apartamentos que surgiam em tamanhos menores do que o convencional. A linha, composta por mesas, espreguiçadeiras, poltronas e cadeiras, tentava aproveitar ao máximo as chapas para não haver desperdício no processo de industrialização. “Os problemas de estofamento também foram devidamente racionalizados, de modo a evitar a dependência de tapeceiros especializados: era um estofamento fino, os móveis eram forrados com um tecido sem costura, em geral lona ou lonita listrada e materiais plásticos brilhantes pregados, por baixo, com tachinhas”, relata a historiadora Maria Cecília Loschiavo no livro “Móvel moderno no Brasil”.
Em formatos sinuosos, os móveis Z voltam a ser reeditados pela marca Etel com o consentimento da família Caldas. A estreia da coleção “(R)evolução Zanine: uma estória por Etel” acontece na SP-Arte com o lançamento de vinte peças que incluem não só os itens de compensado como também os fabricados com ferro dobrado. “Fizemos uma grande pesquisa até chegar a essa seleção de exemplares, que agora será confeccionada de madeira maciça num acabamento impecável e forrada com tecidos nacionais e italianos”, conta Lissa Carmona, CEO da empresa, que depois levará a coleção para a Semana de Design de Milão ainda em comemoração aos cem anos do ilustre brasileiro.
Nos anos 1970, sua produção mobiliária toma outro rumo ao mudar para Nova Viçosa, na Bahia. Incomodado com as queimadas que matavam diversas espécies nativas, ele começa a executar o que chamaria de móveis-denúncia. “Ao ver aquelas madeiras imensas serem queimadas e jogadas fora, eu a transformo em móvel, nas dimensões naturais. Aí eu também peco, porque uma peça dessas só pode adquirir quem tem dinheiro”, disse Zanine em entrevista, como consta no documentário “Zanine, ser do arquitetar”, do diretor André Horta, divulgado em 2016.
Reconhecido internacionalmente e muito valorizado na França, país que lhe concedeu a medalha de prata da Academia Francesa de Arquitetura, em 1990, período em que expôs a retrospectiva de seu trabalho no Museu de Artes Decorativas do Louvre, em Paris, o arquiteto ganha este ano homenagens e mostras em galerias francesa, holandesa e norte-americana. “O centenário tem despertado grande interesse para a obra dele”, afirma Vivi Lobato, do Apartamento 61, especializado em acervo vintage. Para a SP-Arte, ela e o sócio, André Visockis, levam quatro peças do designer, entre elas a famosa espreguiçadeira com malha de couro tramada e uma mesa do período dos Móveis Denúncia. Já a galeria Teo dedica seu espaço na feira exclusivamente aos Móveis Z. “Temos peças que vão de 1949 a 1957, todas com selos da época: poltronas, mesas, um bar, uma estante e até um sofá-cama, que foram restaurados sem esconder os sinais do tempo”, conta Frederico Concilio, diretor criativo da marca.
Haverá ainda peças na Galeria Artemobília e na exposição de cadeiras organizada nesta edição. Nesse caso, Zanine será lembrado com um modelo infantil da produção dos anos 1950. “Ele aproveitava as sobras das chapas de compensado para fazer mobília para crianças”, conta Sergio Campos, um dos curadores da mostra. Designer, arquiteto, paisagista, escultor e maquetista, José Zanine Caldas ganha em 2019 a relevância que sempre mereceu e ainda um livro sobre sua obra, editado pela Olhares. Seu legado é imenso e, no ano que vem, conquista sede própria: a casa onde ele viveu a infância, em Belmonte, será transformada em museu com projeto de Marcio Kogan. Zanine permanecerá para sempre.
Regina Galvão é jornalista formada pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, com pré-MBA em Marketing pela Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) e pós-graduação em História da Arte pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Como editora, trabalhou em revistas como Casa Claudia, da Abril, e Casa Vogue, da Globo Condenast. Em 2018, participou da equipe de curadoria da mostra Brazilian Stones, Original Design, coordenada por Adélia Borges na Vitória Stone Fair, em Vitória, e foi curadora das exposições MoMA Design – Acervo Fiesp (2017), no D&D Shopping; Pensamento Circular (2014), no Museu da Belas Artes (Muba); entre outras.
Setor Design
Nesta 15ª SP-Arte, o setor Design chega a sua quarta edição. Voltado a mobiliário, iluminação e antiquário, o setor reúne os principais designers contemporâneos do país, assim como nomes clássicos do desenho brasileiro.
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