Editorial
Feature
Um modernista intruso
SP–Arte
8 Nov 2019, 4:13 pm
“O Brasil que represento é uma questão de sentimento, é a minha maneira de ver, de sentir a terra onde nasci, que abandonei e que depois de muitos anos, com saudade revi”, afirmou uma vez o gravador e ilustrador Oswaldo Goeldi (1895-1965), aos sessenta anos. Ele cresceu na Suíça, país de origem de seu pai, quando o continente via se dissipar o espírito da Belle Époque até culminar na Primeira Guerra Mundial. Um ano depois do fim do conflito, o jovem Goeldi voltou para o Rio de Janeiro, mas já se sentia um artista desajustado desde a Europa. E essa sensação de inconformidade artística e existencial permaneceria para sempre, colocando-o em uma posição singular em meio ao otimismo de boa parte do modernismo brasileiro.
Uma mostra no Paulo Kuczynski Escritório de Arte, até dia 14 de dezembro em São Paulo, revela ao público um precioso conjunto com cerca de oitenta obras de Oswaldo Goeldi. A tradicional galeria de um dos principais marchands brasileiros se adaptou para a exposição: paredes foram levantadas, as luzes rebaixadas e todo o espaço expositivo foi pintado de cinza para que as obras pudessem se sobressair. A grande maioria das peças dessa coleção afetiva pertencia à artista Lygia Pape e seu marido Günther, e mesmo pouco exibida e resguardada por inteiro por mais de quarenta anos, revela o vigor dos temas goeldianos: a iminência das tempestades, os peixes e os pescadores, as ruas vazias e os transeuntes solitários, a expressão dos lugares imaginários e o interior de sua alma.
Goeldi viveu por muito tempo nos fundos de um terreno dos Pape no Leblon, o que nos instiga a especular, inclusive, sobre possíveis trocas técnicas entre o gravador e Lygia, que iniciou sua carreira com a icônica série “Tecelares”, em xilogravura, entre 1955 e 1959. Günther era confidente íntimo do artista, adquiriu várias das gravuras ainda molhadas, recém-tiradas da matriz, e não parou nunca de colecionar Goeldi. Alguns trabalhos que adquiriu do amigo são bastante marcantes. Faz parte da coleção, por exemplo, a peça que venceu o prêmio de gravura na primeira Bienal de São Paulo, em 1951.
Apesar de viver quase como um eremita, Goeldi se preocupava em usar papéis de algodão especiais, importados do Japão, tanto para suas ilustrações feitas com tinta nanquim e carvão quanto para a xilogravura que o consagrou. Nesse campo, através de gestos mínimos e expressivos, Goeldi delineava as figuras, as paisagens e principalmente os campos e feixes de luz. O próprio artista fazia cada cópia, alternando tons e intensidades de cor a cada tiragem. Muitas dessas gravuras não tem mais que duas ou três cópias, refletindo a opção do artista de executar peças únicas. Apesar de quase sempre retratar personagens de lado ou de costas, saindo do foco de atenção, Goeldi apresenta em “Vendedor de balões”, por exemplo, uma figura frontal, suspensa por grandes balões vermelhos pela noite enluarada. O contraste das cores nesta peça única é evidente, enquanto o tema sugere um sinal de esperança, ou uma rota de escape imaginária. Em “Fuga”, o tom verde-azulado deixa o personagem ainda mais sóbrio.
Outro trabalho que se sobressai no conjunto é uma aquarela de grande formato, “Depois da chuva”, opção rara na prática do artista e onde é possível notar como esse tipo de exercício o fez avançar no estudo das cores e das luzes. Goeldi criava frequentemente ambientes úmidos que remetem ao seu Rio natal distante dos clichês da tropicalidade de seus pares. O guarda-chuva e o chapéu, objetos tão corriqueiros, são carregados de simbolismo em diversas obras. Mesmo colorida, o trabalho enquadra a vida urbana em sensação de abandono.
O tema da morte e da angústia era essencial para a Goeldi e encontrava diversas formas de aparecer. “Grã-finos” é parte da série de desenhos que o artista produzia sob encomenda para o suplemento literário do jornal A Manhã. Repleta de ironia, a obra demonstra as habilidades finas do artista em diversas modalidades de ilustração.
Goeldi era um observador atento das ruas e dos tipos sociais, e é claro que a realidade brasileira o impactava também artisticamente, assim como os engajados de sua época. Mesmo assim, sua poética se dirigia muito mais aos ambientes e personas inquietantes de sua mente do que às suas preocupações sociais. O que ele gostava, ou precisava criar, eram momentos em que a desgraça estava à espreita, pairando sobre as casas e as praias, invadindo as mentes. Goeldi não foi um artista solar, mas profundamente transformador.
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