Editorial
SP-Arte Magazine
Howardena Pindell: "Free, White and 21"
Howardena Pindell / Stephanie Borges (tradução)
14 Feb 2020, 11:21 am
Decidi fazer Free, White and 21 [Livre, branca, 21 anos] depois de mais um confronto com o racismo no mundo da arte e as feministas brancas. Eu me sentia muito isolada como uma artista token. Descobri que as mulheres brancas queriam que eu me limitasse às suas pautas. Quando elas começaram a ser representadas por galerias e a participar de exposições, mulheres de cor raramente eram consideradas. A ausência delas raramente era percebida, exceto por poucas. Ouvi que eu estava com ciúmes porque reparei e falei a respeito. O racismo, como um ataque constante nas vidas diárias de todas as pessoas de cor, não era uma grande prioridade para elas. Era visto como “uma causa”, “um interesse especial de um grupo”, “política” – uma preocupação temporária se suas atenções estivessem envolvidas. Algumas das mulheres de cor que apontavam isso eram consideradas “beligerantes”. Eu me lembro de ouvir que as feministas gostariam que eu “cooperasse”.
A voz branca era a voz dominante. O que a voz do homem branco representava para a voz da mulher branca era o que a voz da mulher branca representava para a voz da mulher de cor. A voz dominante geralmente era limitada às mulheres brancas de classe média e alta, mas mulheres brancas de todas as classes participavam do racismo, consciente ou inconscientemente. (Muitos anos depois de ter feito o vídeo, quando vi o final, senti que havia um simbolismo das mulheres que auxiliavam a Ku Klux Klan. Em vez de um lençol branco, como um ladrão de banco, a personagem cobre seu rosto com uma meia-calça branca “comportada”). Eu me lembro de ouvir o racismo explicado como uma distração dos verdadeiros problemas decorrentes do sistema, que precisavam de um bode expiatório. A voz branca era a voz dominante; seus objetivos eram os objetivos dominantes. Os coletivos nos anos 1970 geralmente eram predominantemente brancos. Se elas não estivessem no comando, então os negócios não eram fechados.
A artista: Minha mãe, por sua vez, era a mais escura dos dez filhos, então quando essa mulher viu a pele de minha mãe pensou que ela era suja e lhe deu um banho de lixívia. Em decorrência disso, minha mãe tem marcas de queimadura em seu braço.
Above: Howardena Pindell "Free, White and 21", 1980. Video stills, 12:15 min. Courtesy of the artist and Garth Greenan Gallery, New York.
“Token” [moeda] é um termo usado por feministas lésbicas e/ou de cor para referir indivíduos de uma minoria, aceitos em meios majoritariamente brancos. Mulheres negras que não reconhecem o racismo estrutural podem ser consideradas tokens ao negar os efeitos do racismo na vida de outras mulheres negras, ao universalizar seus méritos. [N.T.]
As expressões “women of color” [mulheres de cor] e “people of color” [pessoas de cor] são usadas para referir etnias diversas e seus descendentes que são racializados e lidam com discriminação. A diferença entre pessoas de cor e negros é usada para distinguir preconceitos raciais da desumanização racista associada a corpos negros. [N.T.]
Tinha a ver com a dominação e o apagamento da experiência, cancelar e reescrever a história de maneira que fizesse um grupo se sentir seguro e não ameaçado. Eu chamava isso de “manobra Hatshepsut”. Os faraós que sucederam o reinado de Hatshepsut removeram os hieróglifos numa tentativa de apagar o lugar dela na história. Neste caso, as mulheres brancas estavam removendo as marcas da presença das mulheres de cor.
Saí do meu emprego no Museu de Arte Moderna em 1979 e comecei a lecionar. Embora eu estivesse começando a falar abertamente sobre questões de censura de fato e racismo no mundo da arte, minha obra como artista geralmente era destituída de referências pessoais, narrativas ou autobiográficas. Eu me considerava razoavelmente sem voz naquela época. Meses depois de começar a dar aulas, sofri um acidente insólito como passageira no banco de trás de um carro a caminho do trabalho. Num minuto eu estava bem, no outro estava em uma ambulância. Tive amnésia – uma perda temporária de parte da minha memória de curto e de longo prazo. Também tinha consciência de que existiam os que estavam satisfeitos: por causa de meus ferimentos, havia a possibilidade de minha voz ser silenciada. Agora eu sabia que o desejo de me manter silenciosa, a satisfação com o fato de que eu poderia, por algum motivo, ser forçada ao silêncio, eram uma extensão do legado do racismo e da escravidão. Eu me lembro do dia, quase na primeira hora em que estava de volta depois de duas semanas no hospital, em que recebi uma ligação de uma das feministas brancas que me pedia uma recomendação. Tentei explicar que eu tinha me ferido. Ela insistia que eu deveria escrever para ela o quanto antes. Eu nunca escrevi, mas fiquei enfurecida pela necessidade dela de me dar uma “tarefa” sabendo muito bem que eu estava machucada e precisaria de tempo para me recuperar. Tenho observado a necessidade de serem servidos como um traço comum de racistas “liberais”, mesmo aqueles que se referem a si mesmos como progressistas – a expectativa de que eles devem ser servidos constantemente, não importa o quanto isso seja inconveniente para os outros. Brancos geralmente acham isso engraçado, mas eles não sabem como é quando sempre esperam que você seja grata, que possam tirar vantagem de você, e ser considerada sem necessidades e vontades. O movimento pela liberação de mulheres fala frequentemente sobre as expectativas dos homens em relação a elas, mas raramente fala de suas expectativas em relação às mulheres de cor e todas as pessoas de cor, que na realidade representam 85% do planeta.
Hatshepsut (c.1507-1458 a.C.) foi a primeira faraó da história e uma das poucas mulheres a assumir esse posto no Antigo Egito. Ela reinou de 1479 a.C. até sua morte. [N.T.]
Mulher branca: Sua menina ingrata… Depois de tudo o que fizemos por você.
Meu trabalho no estúdio depois do acidente me ajudou a reconstruir os fragmentos desaparecidos do passado. Meus pais viveram comigo durante meses, uma vez que não estava forte o bastante para ficar sozinha. Eu era muito agradecida por isso. Oito meses depois do acidente, fiz Free, White and 21 no andar de cima do meu loft durante um dos verões mais quentes de Nova York. O registro era autobiográfico e pertinente a uma ampla gama de experiências, focando em questões de gênero e preconceito racial. Eu tinha encarado problemas de censura na prática ao longo da minha vida como parte de um sistema de apartheid nos Estados Unidos. No vídeo, eu estava reagindo furiosamente ao movimento de liberação das mulheres e ao racismo no mundo da arte e alguns dos encontros ofensivos costumeiros que se acumulam acima do racismo na minha profissão. O vídeo foi exibido pela primeira vez numa exposição organizada por Ana Mendieta na A.I.R. Gallery quando ela ainda ficava na Wooster Street em Manhattan. A exposição se chamava Dialectics of Isolation: An Exhibition of Third World Women Artists of the United States [Dialéticas do isolamento: uma exposição das mulheres artistas do Terceiro Mundo dos Estados Unidos] (2 a 20 de setembro de 1980). Entre as artistas estavam Judith Baca, Beverly Buchanan, Janet Olivia Henry, Zarina Hashmi, Senga Nengudi, Lydia Okumura, Selena Whitefeather e eu. Quando a obra entrou numa competição de vídeos em 1980, entendi que o júri a considerou muito controversa.
No final dos anos 1980, ele se tornou um tipo de vídeo underground cult e era exibido especialmente em universidades. Mais tarde, quando seria incluído em uma de minhas exposições individuais, uma pessoa que tinha escrito um ensaio para o catálogo me pediu para retirar o vídeo da exposição. Eu obviamente recusei. Quando a reclamação foi levada ao curador da exposição, ele também se recusou a retirá-lo. Eu me deparei com várias outras reações, incluindo a indignação de uma crítica branca com o fato de eu ter a audácia de falar das minhas experiências e magoá-la. Também ouvi que algumas estudantes brancas que o assistiram sentiram o mesmo.
Quando o exibi para uma plateia numa universidade da Nova Inglaterra, uma estudante branca me perguntou com sarcasmo se ter feito o vídeo fez com que me sentisse melhor. Quando ele foi exibido pela primeira vez em Dialectics of Isolation, um homem branco, estudante de uma das escolas que frequentei e mencionei na gravação, disse que não acreditava nas minhas experiências. Outros artistas de cor tinham dito que eles sentiam que ele não era vigoroso o suficiente ou que minhas experiências haviam se passado em ambientes privilegiados. Quando foi mostrado num museu em Nova Jersey, alguns dos seguranças negros mais velhos se recusavam a ligar o aparelho que reproduzia a gravação porque sentiam que era ofensiva para pessoas de cor. O vídeo inicia oficialmente minha série Autobiography [Autobiografia], que inclui Scapegoat [Bode expiatório].
Minha mãe morreu no verão de 1991, e na dolorosa organização de suas coisas encontrei fotos dela nos anos 1920 e descobri informações sobre a história da minha família que expandiram meu conhecimento sobre quem ela era e como isso afetou minha própria experiência. Descobri que ela frequentou escolas brancas sendo a única estudante negra, porque sua certidão de nascimento dizia que ela era branca, assim como as certidões de nascimento de seus irmãos e irmãs. Não consigo imaginar a dor pela qual ela passou, os assédios e insultos. Ela era profundamente afetada e amedrontada por isso. Eu me lembro de suas histórias de ser a única aluna negra em sua turma na Universidade Estadual de Ohio e de como era ilegal ela morar no alojamento. O uso de instalações públicas por pessoas de cor era ilegal, até mesmo as bibliotecas públicas. As pessoas se tornavam impacientes e agressivas se você sequer levantasse essa questão. Sempre era para o conforto delas manter os outros por baixo. Suas experiências duras refletiam a tragédia que muitas famílias sofreram logo após a escravidão. Muitas famílias eram de várias raças misturadas como resultados de imensas violências sexuais (assim como torturas e linchamentos) de homens, mulheres e crianças pelos europeus e seus ancestrais que tinham sequestrado africanos e os mantido reféns como escravos. Descobri que um dos meus parentes por parte de pai ficou cego por causa das chicotadas de um escravizador. A história por trás dos rostos multicoloridos dos dois lados de minha família provocava muita confusão. O rosto de minha mãe – um marrom profundo e rico – é o meu rosto. Café com leite, o rosto da minha tia parecia branco. Nós entrávamos nas lojas em Ohio nos anos 1950 e todo mundo nos encarava e eu entrava em pânico. Durante anos eu mal suportava olhar no espelho. Não havia imagens positivas do meu povo na mídia ou nas revistas a menos que favorecêssemos os traços europeus; nós éramos retratados de forma estereotipada para fazer os outros rirem, para deixá-los confortáveis e seguros. Partes da família morreram e desapareceram em Oklahoma. Recentemente descobri que o povo do meu avô era de Honduras. (Só descobri isso depois que minha mãe morreu.) Tenho tantas raízes ancestrais que não sei por onde começar. Alguns da família são muito, muito conservadores, e eu sou a que fala demais. Sinto que o medo provoca o silêncio deles, conforme o clima se torna cada vez mais hostil, como na época em que cresci numa cidade segregada.
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