Antonio Henrique Amaral “Campo de Batalha 9”, 1973. Foto: Facebook Acervo Antonio Henrique Amaral
Review

Antonio Henrique Amaral, além das bananas

Felipe Molitor
27 Jan 2021, 2:51 pm

“República das bananas” é uma alcunha pejorativa criada em 1904 por um norte-americano para designar principalmente países latinos que possuíam governos frágeis e economias dependentes da exportação de produtos agrícolas para os EUA. Símbolo máximo do clichê tropical, a banana foi um tema exaustivamente trabalhado pelo artista Antonio Henrique Amaral (São Paulo, 1935 – 2015) como uma maneira de criticar os descaminhos do Brasil durante o período de ditadura civil-militar e aludir aos corpos torturados pelo Estado. A mostra “Aglomeração”, a mais importante dedicada ao artista desde a sua morte, revisita e evidencia seu legado ácido em um momento em que é quase inevitável realizar paralelos entre aquele momento da história recente e os dias atuais, tão assaltado por fantasmas do passado. Muito além da temática das bananas que em si já é multifacetada, diversos aspectos da obra de Amaral são apresentados e atualizados no presente, alargando sua posição na história da arte brasileira.

Organizada já sob contexto pandêmico, a apresentação da mostra começou em julho do ano passado, através de uma série farta de postagens semanais de obras comentadas e contextualizadas pelo curador Paulo Miyada. Em sua versão física, que fica em cartaz até o próximo dia 07 no Instituto Tomie Ohtake, a exposição reúne ao todo doze pinturas, dezessete gravuras e 65 desenhos, além de cadernos, agendas, correspondências, fotografias e impressos do acervo deixado pelo artista. Também participam da exposição artistas convidados a produzir trabalhos a partir de provocações da obra de Amaral: Ana Elisa Egreja, Antonio Obá, Deyson Gilbert, Flora Rebollo, Igi Lola Ayedun, Julia Debasse, Luiz Queiroz e Raquel Nava. 

Antonio Henrique Amaral “Sob a luz do Cruzeiro do Sul”, 1993. Foto: Divulgação
Antonio Henrique Amaral “Casa de Macunaíma VII”, 1977. Foto: Ricardo Miyada

A prática com a gravura foi o pontapé inicial de A.H.A. nas as artes visuais, tendo estudado no MAM-SP ao fim dos anos 1950. Rapidamente o artista dominou as técnicas da lino e xilogravura e começou a desenvolver um repertório de formas e situações, que reapareceriam ao longo de sua trajetória. Na virada dos anos 1960 para os 1970, partiu para intensas experimentações com a pintura, no desafio de esgotar diversas possibilidades técnicas dessa linguagem. Um dos aspectos interessantes da exposição é acompanhar os diversos desenhos e estudos que fizeram parte desse processo criativo, em que o apreço pela forma se confunde com as reflexões acerca de um país em conflito.

Como para diversos artistas daquela geração, a ditadura tornou-se uma questão incontornável, colocada para toda a pesquisa e criação em arte. Algumas das influências e referências mais candentes do repertório de Amaral, como por exemplo certo parentesco ou pertencimento à vertente pop, significa, no fundo, mais uma estratégia de simplificação da forma com intuito político do que propriamente uma afinidade estético-ideológica com a Pop Art. É nesse sentido que se aproxima da iconografia do Cordel, cujas linhas e figuras bem contrastadas contém algo de imediato na assimilação, ainda que na obra de Amaral os elementos sejam mais fragmentados e altamente sugestivos. Toda escolha formal envolveu uma posição política, inclusive em suas faces mais abstratas e “surreais”. 

Antonio Henrique Amaral “Consensus", 1967. Foto: Divulgação
Antonio Henrique Amaral “Bocas”, 1967. Foto: Rubens Chiri/Perspectiva

Outras chaves importantes do pensamento artístico de Amaral ressoam nas obras dos artistas convidados. A icônica série de pinturas “Campo de Batalha”, com bananas perfuradas e amarradas, cuja fatura é especialmente virtuosa e altamente alegórica em seu comentário político, é reduzida a uma sintaxe mínima por Deyson Gilbert. Em “Plano para tortura (para A.H.A.)”, Gilbert busca demonstrar o lado racional e calculista que envolve o aparelho de violência por parte do Estado. Em outra via, Antonio Obá, também com uma pintura, se volta à força simbólica de imagens e ditos populares. Em “Orabolas”, uma cobra que come o próprio rabo tem a cabeça cortada por uma lâmina afiada – o próprio autoritarismo em xeque, em sua sina que recai em contradições e repetições.

Deyson Gilbert “Plano para tortura (para A. H. A.)”, 2020. Foto: Divulgação/AQA
Antonio Obá “Orabolas”, 2020. Foto: Divulgação/AQA

Como escreve Miyada, nas obras de Amaral todos falam, ninguém escuta. As alegorias e os simbolismos de suas obras – bocas tagarelas, cabeças enclausuradas, mãos e microfones que apontam, formas orgânicas um tanto bestiais e mágicas – refletem um enlace entre a tormenta coletiva e sua subjetividade individual. Daí a contundência de sua obra hoje: muito além dos paralelos entre contextos políticos dos anos 1960 e de hoje, das denúncias das opressões e do sufocamento da atividade artística, em Amaral encontramos o mesmo estado paranoico na cacofonia de discursos que não se encadeiam e nos isolam. Nos identificamos com a mesma vertigem de vozes e imperativos, de lá e de cá, expressa no universo de Amaral, em que apenas o otimismo ou a boa-vontade não serão suficientes para superar a repetição de alguns dos nossos desencontros estruturais. 

Antonio Henrique Amaral Sem título, 1962. Foto: Divulgação

16664922_10209898108262257_7619063568109939462_o

Felipe Molitor is a journalist and art critic, part of the editorial team at SP–Arte.

SP–Arte Profile

Join the SP–Arte community! We are the largest art and design fair in South America and we want you to be part of it. Create or update your profile to receive our newsletters and to have a personalized experience on our website and at our fairs.