Contra a solidão da "Negra"

26 jul 2019, 13h48

Por Alexandre Araujo Bispo

 

Chega aos últimos dias “Tarsila popular”, exposição que apresenta 92 obras de Tarsila do Amaral (1886 – 1973), no Masp. Excepcionalmente, o museu ficará aberto até a meia noite no penúltimo dia da mostra, sábado 27 de julho. Com curadoria de Adriano Pedrosa (diretor do museu) e Fernando Oliva (curador do museu), a exposição nos dá a oportunidade de refletir sobre como o investimento financeiro pesado, em um país que perdeu ano passado grande parte do acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro e no qual outros acervos públicos sofrem com a persistente falta de recursos, pode atrair um público ávido por consumir Tarsila. Há tempos – e isso é um trabalho de longo período de afirmação das qualidades plásticas de muitas de suas obras – a artista goza de popularidade, com imagens de suas obras impressas em livros didáticos e reproduzidas para outros fins. Eu mesmo tenho uma reprodução feita lá pelos anos 1970, creio que pela editora Abril, de um desenho da série Pau-Brasil (1924-1928), que está comigo desde meados de 2005. Para nossa alegria, à exceção de um desenho, todo restante dessa série pertence a um acervo público. Para minha tristeza, das 92 obras que compõe Tarsila popular quase 50, entre desenhos, nanquins e pinturas, pertencem a coleções particulares.

Embora grande parte de sua produção certamente seja desconhecida ao grande público, e, portanto, se arrisca que não a reconheçam quando a vejam, é certo que o “Abaporu” (1928), (da chamada fase antropofágica que durou entre os anos de 1927 e 1929), goza de muito prestígio. Adianto que visitei a exposição duas vezes, e a visitaria novamente caso tivesse tempo. Adquiri o catálogo, cuja contribuição crítica é sem dúvida importante, sobretudo porque ajuda a mostrar como a exposição é excessivamente harmônica, repetindo preconceitos pelo modo como mostra a “A negra” (1923) – assunto no qual me aprofundarei na ultima parte do texto.[1] Também poderia, por meio de algumas obras arranjadas no núcleo 5 (que reúne trabalhos da fase social da artista, dos anos 30 até 50), ajudar o público contemporâneo a entender porque obras como “Segunda Classe” (1933), “Operários” (1933) e “Trabalhadores” (1938) têm tudo a ver com o que atualmente está acontecendo na sociedade brasileira. Quando os segmentos negro, indígena e os grupos de baixa renda – o povo brasileiro – estão sendo massacrados pela reforma trabalhista que aumentou desemprego, reduziu salário, e capturou direitos; aumentou o custo de vida transformando cada vez mais pessoas em cidadãos de segunda classe miseráveis, apesar do Brasil ter conseguido sair do mapa da fome entre 2003 e 2016, quando milhões de pessoas passaram a comer três vezes ao dia e por aí vai. A exposição se limita, diz o texto curatorial deste núcleo, a mostrar as “dificuldades impostas em um país desigual”.


Uma tentativa de visita

Fui ao Masp três vezes. A primeira foi no feriado de nove de julho, no dia da gratuidade. A avenida Paulista, aberta em função de uma compreensão mais democrática do direito à cidade, estava lotada. A fila para entrar no museu começava atrás do edifício em direção à avenida 9 de Julho. Com ingresso inteiro a R$40,00 é facilmente explicável a romaria. Lembremos que o governo Dilma Roussef (2011-2016) não apenas criou o “vale cultura” no valor de R$50,00 para os trabalhadores com carteira assinada, como regulamentou a lei da meia entrada: 40% da cota de ingressos deveriam ser destinados a jovens de baixa renda, estudantes e portadores de deficiência.

À frente do edifício, no totem preto que informa o nome das exposições, “Tarsila popular” está no ponto mais alto.  Fiquei intrigado em saber se todos os visitantes estavam lá para ver as obras dessa artista que, embora não tenha participado da Semana de Arte Moderna de 1922 (na época estava em Paris), tornou-se um nome incontornável para entendemos o modernismo brasileiro nas artes visuais. Como ensina Amanda Carneiro, curadora assistente do Masp, que assina um texto no catálogo: “Suas telas têm grande capilaridade e participaram do processo de modernização das artes visuais no Brasil quando ainda eram ‘desprezadas pelo bom gosto oficial’ das academias de belas-artes” (p.78). Nem Anita Malfatti (1889-1964), homenageada pelo MAM-SP em 2017, nem Di Cavalcanti (1897-1976), homenageado pela Pinacoteca no mesmo ano, levaram tanto público quanto a “sinhá pintora” (definição de Sérgio Miceli, que assina um dos textos do catálogo, p.158).

A exposição acerta ao dizer que Tarsila é popular, seja porque a artista em alguns momentos de sua carreira (marcadamente nas décadas de 20 e início da de 30) trabalhou com temas ligados ao povo, seja porque versões do Abaporu podem ser vistas na internet aos milhares: tatuagens, releituras nas aulas de arte, releituras por artistas contemporâneos, objetos de decoração. Depois de desistir de ficar na fila, encontrei o Abaporu feito por Bento, um artista serralheiro que pega imagens famosas e as redesenha em ferro no vão do Masp. Sugestão de uma cliente, a peça que vi era a terceira cópia vendida a pouco mais de R$200,00. As crianças de uma família perto de nós reconheceram a imagem como “pezão”, e não sabiam que existia um original exposto no Masp, naquele exato momento em que passeavam felizes.

Visita 1

Na minha primeira visita, tomei uma decisão, quando vi que a fila estava grande demais: tornei-me um amigo Masp. A adesão franqueou minha entrada sem que precisasse esperar minha vez. Depois de subir as escadas abrindo espaço entre os que desciam, cheguei ao primeiro piso, que estava lotado e tinha nova fila de espera.

Me identifiquei como amigo e entrei na sala 1 que, também bem cheia, é dedicada a seis autorretratos e alguns retratos. Entre os retratos estão dois Andrades: Oswald, que foi seu riquíssimo marido entre 1922-1931, e Mário, amigo da vida inteira, que insistiu para que ela deixasse Paris e se voltasse para temas brasileiros. A exposição aposta na mistura dos temas e dos tempos, de modo até a produzir confusões, enquanto o catálogo evidencia em diversos textos como Paris, principalmente no inicio dos anos 1920, tinha sede de diferenças culturais, vontade de ver o exótico, perseguir o primitivo e consumir tudo que remetesse aos temas negros, em alta no período que viu passar pela cidade europeia nomes brasileiros como Pixinguinha e a Companhia Negra de Revistas, do artista “mulato” baiano João Candido (o Jocanfer, ou Monsieur De Chocolat). Nesta sala estão também a tela “A negra”, pintada em Paris, e alguns dos esboços que antecederam a pintura.

A sala 2 é dedicada aos corpos femininos nus, resultado do contato que a artista manteve com seus professores modernos Fernand Léger (1881-1955) e André Lhote (1885-1962). A partir deles, Tarsila experimenta dar às figuras o tratamento cubista. O conjunto é interessantíssimo como contraponto às obras “Autorretrato com vestido laranja” (1921), “Autorretrato com lenço vermelho” (1921), “Figura em azul” (1923) e “Autorretrato I” (1924), de feitio mais realista.

Tarsila e Oswald que não tinham, no inicio dos anos 20, qualquer interesse pelas coisas do Brasil, descobrem o país materno exótico durante sua estadia na França. Mas, ao contrário do que se poderia pensar, Tarsila frustra as expectativas francesas acerca da paisagem brasileira e não pinta a floresta exuberante que vinha sendo imaginada e consumida pela Europa desde o século 17. Como argumenta Michele Greet: “Ela apresentaria regiões urbanas e rurais, conectadas pelo fluxo de recursos naturais (café, borracha, gado) que financiava os projetos de modernização e urbanização das cidades”. Nesse sentido, contrariava “suposições arraigadas sobre a região”.


O tema das viagens pelo Brasil, nomeadamente Rio de Janeiro e Minas Gerais, aparecem na sala 3. Ali são expostas obras como “Carnaval em Madureira” e “Morro da Favela”, ambas de 1924, que representam um Brasil povoado de pessoas negras, exótico aos próprios olhos da artista. O objetivo de Tarsila com essas obras era “conquistar sucesso” por meio da interpretação do Brasil, como demonstra Paulo Herkenhoff em seu texto (p.104). Nas memórias da artista, quando o diretor da Galerie Percier viu “Morro da Favela”, cuja composição tem “pessoas negras, crianças negras, animais, roupas secando ao sol, entre cores tropicais”, lhe perguntou: “Quando você quer expor?” (p.121). A artista, mais cosmopolita que popular, realizaria sua primeira individual em 1926.

Diante dessa afirmação, me pergunto porque a expografia da exposição fugiu dessas cores tropicais e ficou nos tons pastéis, cujo efeito de conjunto é apaziguador, harmonioso demais, sugerindo que o tema afro-brasileiro – uma das bases de sua noção de “popular” – seja apenas mais um entre muitos, e não aquele que rendeu-lhe sua primeira exposição e para o qual ela voltaria em trabalhos posteriores. Porque não os verde escuros, os azuis mais intensos presentes em telas como “Morro da Favela”, “Carnaval em Madureira”, “São Paulo” (1924) e “São Paulo (Gazo)” (1924)? Essas cores mais intensas não seriam populares também? Porque não os ocres e marrons escuros das peles dos casais, mulheres e crianças afro-brasileiras que poderiam ser retirados de “Carnaval e Morro”, ou “Pescador” (c. 1925), “Vendedor de frutas” (1925), ou “Anjos” (1924) ou “Trabalhadores”? Deixa-las de fora não é um modo de marginalizar essa parte da paleta de cores da artista? Porque o “cromatismo pálido” (Micelli, p.154) ao invés de uma “paleta audaciosa” de sua fase Pau-Brasil, como a chama Marie Rodrigues Binnie (p.140).

A sala 4 trata da relação entre o popular e o sagrado, ainda que não somente. Nela comparecem obras como “Religião brasileira I” (1927), cuja representação abstrai completamente o sincretismo religioso existente no país. Lembremos do catolicismo popular, das macumbas do Rio de Janeiro, das práticas afro-religiosas espalhadas pelo país e de como a Umbanda começa a se firmar na mesma época. A limpeza das obras deste núcleo são um indicio que poderia ser problematizado na exposição, pois revelam a visão elitista da “filha de senhor de escravos vestindo Poiret” (nos termos de Herkenhoff, p.106).

O último núcleo, a sala 6, pretende mostrar como os “temas populares” aparecem desde 1924 em obras como “A feira I” (1924) e “A feira II” (1925), “Vendedor de frutas” (1925), o lindíssimo “A cuca” (1924), “O sapo” (1928) e, já na fase tardia, espécie de rotinização da plástica modernista, “O batizado de Macunaíma” (1956). Para Sergio Micelli, a fase antropofágica tem “fortíssimo cunho autoral” (p.156). Será que isso explica o apelo do Abaporu – que vi pintado em tamanho monumental em uma loja de artigos para pintura artística no Centro de São Paulo – e sua multiplicidade de reencarnações na internet, ou a quantidade de selfies?


Visita 2

Retornei à exposição uma semana depois para ver novamente algumas obras. Conversei com os orientadores de público para saber se os visitantes que esperavam nas filas enormes estavam em busca de Tarsila popular. Acho que 100%, me disse uma moça. O pessoal quer fazer selfie. É assim o dia inteiro. Mas outras exposições encheram tanto quanto essa? Não. Essa tá bombando!

Eu voltei para rever o modo como os afro-brasileiros – um tema que abriu portas para Tarsila do Amaral – são mostrados na exposição. “A negra” está colocada entre dois autorretratos da artista. A ideia da curadoria era chamar a atenção para a proximidade formal, como a posição de uma das mãos, o que só fez acentuar a estranheza desta em relação àquela. Na leitura de Maria Castro, que assina um dos textos do catálogo, a artista “traçou uma rede complexa de fontes visuais interculturais para construir uma imagem particular da negritude, informada por conceitos de identidade racial que circulavam tanto em Paris quanto em São Paulo” (p.55). Separada dos esboços que deram origem ao quadro, como “A primeira negra” (1923), que apresenta uma figura mais humana, com cabelos e brincos, “A negra” foi colocada em uma posição que reedita a subalternidade a que estavam expostas a mulher negra escravizada que no pós-abolição e ainda hoje tem que lidar com os estereótipos que tentam relegá-la às funções braçais no mercado de trabalho. Que infância é essa evocada na exposição para sublinhar a nostalgia de Tarsila do mundo caipira, quando pinta esse quadro? E porque a curadoria, apesar de reconhecer os preconceitos raciais implicados nessa obra, repete esse olhar senhorial colocando-a entre dois autorretratos da cosmopolita Tarsila, fixando definitivamente para aquela mulher a condição de subalterna? Até quando a “A negra” será apenas uma mulher presa à vida de seus patrões?

Espero que daqui em diante “A negra” seja liberta da servidão, como sugere a artista paulistana Renata Felinto em sua performance “O axexe da negra ou o descanso das mulheres que mereciam serem amadas” (2017), apresentada na exposição “Histórias Afro-atlânticas” (Masp e Instituto Tomie Ohtake, 2018). Seria muito útil também que “A negra” fosse vista junto a outras representações de pessoas negras. Uma das coisas mais perversas que se impôs às amas de leite foi que não formassem famílias próprias, que não tivessem relações de sociabilidade e que vivessem inicialmente para amamentar e criar seus filhos postiços e seguirem a vida servindo aos seus donos. Num país em que empregadas domésticas só tiveram direito às garantias trabalhistas em 2013, setenta anos depois da criação da Consolidação das Leis do Trabalho em 1943 – e agora com a reforma trabalhista voltam à antiga condição –, a exposição contribuiria bastante para forjar outras imagens do segmento negro brasileiro se mostrasse essa obra ao lado de outras tantas que têm afro-brasileiros como tema, como “A família” (1925) e “Fotografia” (1953), por exemplo. Pois, feitas as contas, Tarsila do Amaral conseguiu enxergar para além da servidão negra também os laços afetivos familiares, como os casais com crianças que poderiam fazer companhia à novamente solitária “A negra”. Expostas juntas os efeitos seriam outros, sem dúvida.[1]

 

NOTAS
[1] Todas as citações são extraídas do catálogo da exposição homônima realizada de 05/04 a 28/07/2019. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateubriand. Tarsila popular/ organização editorial e curadoria Adriano Pedrosa, Fernando Oliva; textos Adriano Pedrosa… [et.al.] – São Paulo: Masp, 2019.
[1] Enquanto escrevia esse texto lembrei-me de “Ponta de lança” (2016), do músico Rincón Sapiência e um dos versos mais lindos que falam de afetividade: “Faço questão de botar no meu texto que pretos e pretas estão se amando”. Lembro dessa letra porque ela me leva aquilo que o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) afirmou, em suas análises da sociologia das relações raciais: “O negro-tema é uma coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama a atenção. O negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imobilizar; é despistador, protéico, multiforme, do qual, na verdade, não se pode dar versão definitiva, pois é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é hoje”. Introdução crítica à Sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995, p.215.

Sobre o autor

Alexandre Araujo Bispo é doutor e mestre em Antropologia Social, bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Curador, crítico, e educador independente. Membro do grupo de crítica do Centro Cultural São Paulo (2018-2019). Foi colaborador da revista Omenelick 2º Ato (2010-2016), e desde 2016 é colaborador da C& – Contemporary  And, plataforma alemã de arte contemporânea diaspórica. Possui textos publicados nas revistas Bazaar (2015); Omenelick 2º Ato (2010-2016); Contemporary And (2016-2019); Pinacoteca do Estado (2017), Instituto de Arte Contemporânea de Miami, ICA (2019) e Revista Pivô (2019).
*Este texto faz parte de uma série de reviews publicadas no site da SP-Arte. As opiniões veiculadas nos artigos de autores convidados não refletem necessariamente a opinião da instituição.

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