O pesquisador Ângelo Manjabosco reflete sobre a retrospectiva de Man Ray, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil

2 out 2019, 12h25

Por Ângelo Manjabosco

 

“Foi conquista de Man Ray tratar a câmera como ele tratava o pincel, um mero instrumento a serviço da mente”. A frase dita por Marcel Duchamp resume bem a principal contribuição de Man Ray e o espírito de um certo grupo de artistas. Mesmo que algumas de suas pinturas estejam em importantes acervos de museus, foi na fotografia que encontrou o aparato técnico necessário para expressar muitas de suas ideias mais radicais.

A exposição “Man Ray em Paris”, que também apresenta vídeos e objetos, traz ao CCBB um importante recorte da sua produção com um número impressionante de vintages. É raro ver por aqui mostras com nomes da fotografia das chamadas vanguardas artísticas do início do século 20. Por conta dessa escassez nem cabe questionar as estranhas montagens dos contatos de Man Ray, exibidos como relíquias entre uma ampliação e outra. Acessar os contatos e as fotografias ampliadas pelo autor nos anos 1920 e 1930 permite notar e explorar as alterações de tratamento de uma série para outra – por vezes entre imagens da mesma série –, resultado de diferentes intenções do fotógrafo.

Man Ray, nascido Emmanuel Radnitzky em 1890, é uma figura fundamental para entender a história da arte ocidental, e especialmente da fotografia no contexto das vanguardas europeias. Podemos ver isso logo na primeira sala, dedicada às tentativas iniciais do jovem estadunidense que, por volta de 1913, conheceu a Galeria 291, de Alfred Stieglitz. Nela, fotógrafos, pintores e escultores dividiam o mesmo espaço. Entre eles estava Marcel Duchamp, de quem logo ficou amigo. Algumas das mais marcantes parcerias entre Duchamp e Man Ray estão logo na entrada, com destaque para a conhecida encenação de Rrose Sélavy.

Os textos de parede são claros e detalhados, um dos pontos positivos da mostra – a curadora, Emmanuele de L’Ecotais, é autora do catálogo raisonné de Man Ray. Ao fim da primeira sala já podemos ver uma boa parte dos retratos de personalidades. Tal como Félix Nadar, fotógrafo francês que no século 19 registrou figuras como Victor Hugo, Charles Baudelaire e Edouard Manet, Man Ray foi o fotógrafo de uma geração de pensadores e artistas. Produziu retratos de intelectuais, celebridades do teatro e da maior parte dos seus colegas dadaístas e surrealistas, como o próprio Duchamp, Tristan Tzara e André Breton.


Em 1921, Man Ray se muda para Paris, onde estabelece seu estúdio e desenvolve uma consistente carreira de fotógrafo de moda e retratista. Contudo, uma leitura contextualizada dessa seção deveria contar também com as revistas, afinal esse era o destino de grande parte das fotografias. A ausência do material editorial na exposição pode levar a um entendimento enviesado dos modos de produção das imagens, mesmo que o texto e as legendas indiquem o veículo e eventualmente apresentem detalhes da encomenda. Publicações com tiragens altas e diagramação sofisticada, como Harpers Bazar e Vogue, ofereciam uma plataforma de difusão da imagem fotográfica nunca antes imaginada. Foi nessa moderna combinação oferecida pelos meios de comunicação de massa que Man Ray e outros atuaram e se tornaram conhecidos.

A retrospectiva atinge seu ponto alto com os rayogramas. A técnica de expor um papel fotosensível à luz, chamada de fotograma e criada por volta de 1860, não caiu no gosto dos fotógrafos pictorialistas do século 19. Mas seu aspecto mecânico e gráfico foi intensamente explorado pelas vanguardas a partir dos anos 1910, notadamente em trabalhos de Moholy-Nagy (ligado à Bauhaus) e Man Ray. Ele rebatizou a técnica com o seu nome e produziu pequenas imagens onde fotografia, pintura, escultura e artes gráficas se encontram, ao mesmo tempo em que nada disso as definem. Ou, como comenta o poeta Tristan Tzara no didático documentário exibido em uma sala anexa ao final da exposição, “um rayograma é a fotografia de cabeça para baixo”. Além disso, Man Ray via o fotograma como equivalente fotográfico da escrita automática, conceito fundamental nas obras dos poetas surrealistas.

Os rayogramas ocupam um espaço generoso na exposição, tornando visível a pesquisa de Man Ray sobre a ressignificação dos modos de ver e concepção do plano. Publicadas nas mais diferentes revistas, não demorou para que as novidades surrealistas se espalhassem por outros países. No Brasil, a repercussão dos fotogramas de Man Ray, bem como das estratégias de sobreposições utilizadas por ele e outros artistas do mesmo período, pode ser vista em fotógrafos ligados ao Foto Cine Clube Bandeirante, tanto em exercícios publicados nos boletins como em algumas das mais significativas obras de Geraldo de Barros.

A inédita retrospectiva de Man Ray em solo brasileiro nos faz pensar em todos os impactos de sua produção. O percurso, que vai dos primeiros passos com Duchamp, passando pelo início da fotografia de moda, experimentações variadas e retratos dos mais importantes nomes da arte ocidental na primeira metade do século 20, prova que Man Ray foi um fotógrafo do seu tempo, em todas as medidas.

 


Sobre o autor

Ângelo Manjabosco é pesquisador e mestre em Estética e História da Arte pela USP. Trabalha na coordenadoria de Fotografia Contemporânea do Instituto Moreira Salles.

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