Design moderno e a produção nacional hoje, por Renato Anelli

30 mai 2016, 17h48

O design moderno e contemporâneo brasileiro tiveram amplo destaque durante a SP-Arte/2016.

Em sua edição de estreia, o novo setor da Feira, dedicado a esse campo artístico, delineou uma história do mobiliário brasileiro exibindo desde as primeiras peças criadas no país até produções dos mais celebrados nomes do século passado, como Rino Levi, Oscar Niemeyer e Lina Bo Bardi.

Neste texto, publicado originalmente no catálogo da SP-Arte/2016 (acesse a publicação na íntegra aqui), Renato Anelli, arquiteto, urbanista e professor titular da Universidade de São Paulo (USP), repassa a história do design moderno brasileiro e reflete sobre a influência do celebrado período artístico no que é produzido hoje no país. Confira!

 

Raízes do design brasileiro: identidade e estética moderna

(por Renato Anelli)

Ao interpretarem, em suas obras, as inovações técnicas e as condições culturais do mundo atual, alguns designers brasileiros apoiam-se na tradição moderna nacional de mobiliário, arquitetura e artes plásticas para ensaiar novos caminhos. Repassar a história do design moderno pode, assim, ser útil para entendermos as particularidades da produção contemporânea no Brasil.

O design moderno surgiu simultaneamente à renovação da arquitetura no final do século XIX, fruto da tensa relação entre a arte e a modernização produtiva da sociedade durante a Revolução Industrial. Após terem sido esteticamente valorizadas pelas pinturas impressionistas, algumas inovações técnicas e científicas – como a luz elétrica e novas possibilidades construtivas de materiais, tais como o ferro, o concreto e o vidro – foram explicitadas pela arquitetura art nouveau em suas formas inéditas. Apegados à criação artística individual, contudo, os artistas e arquitetos desse movimento entendiam a indústria como uma ameaça.

Em 1902, o belga Henry van de Velde deu um passo importante ao propor que a linha – dinâmica e abstrata – fosse o fundamento capaz de dirigir o processo criativo da arquitetura e de seus interiores, independentemente de qualquer representação figurativa de estilos do passado clássico ou das formas naturais. Concomitantemente a Charles Rennie Mackintosh, em Glasgow, e Josef Hoffmann, em Viena, van de Velde construiu seus próprios procedimentos de formalização para ordenar todo o ambiente projetado, dos pequenos utensílios ao edifício. Em seus sofisticados interiores art nouveau, realizava-se a obra de arte total, objetivo antes perseguido pelos artistas e filósofos românticos e agora renovado pelos primeiros modernos.

O avanço da industrialização e o surgimento de um mercado de padrão médio para o consumo de móveis e objetos propiciou a reprodução de cópias baratas. Reduzia-se a distância entre a criação original inovadora e a banalização em estilos simplificados para facilitar o consumo. Com o propósito de aprimorar a qualidade dos produtos industriais, o governo al mão reuniu empresários, artistas e arquitetos na Deutscher Werkbund [Liga Alemã do Trabalho] a partir de 1907, colaboração que resultaria nos primeiros objetos concebidos por artistas para produção em série. Interrompidas pela I Guerra Mundial, tais pesquisas foram retomadas após o fim do conflito. A Bauhaus, a mais conhecida iniciativa nesse sentido, surgiu da fusão da Academia de Belas Artes com a Escola de Artes e Ofícios de Weimar, dirigida por van de Velde até 1914.

Tal aproximação entre as artes plásticas de vanguarda, as artes aplicadas e a arquitetura ocorria sob a égide das novas técnicas industriais. A produção em série era a condição na qual se dava o desenvolvimento do projeto conduzido pelo designer, um novo perfil de artista/profissional que surgia naquele exato momento.

Ainda que não houvesse mais a possibilidade de um único sujeito criativo ordenando esteticamente o projeto de todo o ambiente, como se pretendia antes de a produção em série industrial ser aceita, os parâmetros modernos de transparência, leveza e continuidade espacial regiam a concepção dos objetos, dos móveis e da arquitetura. Obviamente, uma cadeira Wassily de Marcel Breuer exige um ambiente transparente, como aqueles concebidos pelos arquitetos da Neue Sachlichkeit [Nova Objetividade]. Tal associação entre design e arquitetura acompanharia a diáspora dos arquitetos e designers alemães pelo mundo, fugindo do nazismo e da II Guerra Mundial.

O processo de modernização brasileiro apresenta suas especificidades em relação ao europeu, e a principal delas é que aqui a intensificação da urbanização e da industrialização ocorreu após a II Guerra. Antes disso, nos anos 1920 e 1930, arte e arquitetura modernas surgiram como um desejo de modernização que levaria à industrialização do país, mas ainda estavam livres da pressão de seus efeitos, ao contrário do que ocorrera na Alemanha e na Inglaterra. A pauta era a construção de uma cultura moderna e brasileira, afirmando uma identidade nacional em pleno processo de modernização social e produtiva intensificado após a Revolução de 1930.

Gregori Warchavchik, o primeiro arquiteto a construir obras de arquitetura moderna no Brasil, em 1928, reclamava da ausência de materiais industrializados à disposição no mercado. Teve então de produzir, em pequenas oficinas, os caixilhos, as ferragens e os móveis, simulando componentes industrializados compatíveis com as formas geométrico-abstratas de sua arquitetura.

Em sua exposição Casa Modernista, na Rua Itápolis, em 1930, observa-se que o controle projetual abrange todo o conjunto: móveis, detalhes, objetos, obras de arte, arquitetura e paisagismo. Composto por espécies de vegetação nativa, o jardim situava a obra no Brasil, atendendo ao programa da primeira geração de artistas modernistas brasileiros. Não por acaso, Mina Klabin Warchavchik reproduziu no jardim as paisagens desenhadas por Tarsila do Amaral em seus quadros, um deles exposto no interior da residência.

Em outros trabalhos de Warchavchik, seus móveis ladeavam outros concebidos por John Graz, artista plástico e decorador suíço integrado ao cenário artístico modernista local. Esse tipo de profissional, ao lado dos primeiros arquitetos modernos, seria responsável pelo início do design no Brasil até o segundo pós guerra. Algumas poucas importações de mobiliário europeu moderno somavam-se às improvisações e reproduções simplificadas de móveis conhecidos por meio de revistas, configurando assim os interiores dos edifícios modernos construídos nos anos 1930 e 1940 por arquitetos como Rino Levi, Oswaldo Bratke e Lúcio Costa.

As condições de produção e os materiais utilizados nesses móveis eram compatíveis com a mão de obra formada nos Liceus de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e de São Paulo, nas Escolas Industriais país afora ou em outros países, no caso de imigrantes. Madeiras, tubos metálicos, revestimentos de tecidos e couro eram trabalhados em oficinas a partir de desenhos elaborados por arquitetos ou artistas decoradores, longe de atingir uma escala industrial de massa, como propagado pelos preceitos modernos.

Coube a arquitetos vindos da Itália um impulso crucial para a profissionalização do design moderno no Brasil. O primeiro deles foi o austríaco Bernard Rudofsky, que em 1938 trouxe para São Paulo sua experiência de trabalho com Gio Ponti em Milão. Atuando aqui, Rudofsky participou e venceu a competição Organic Design, promovida pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) em 1941, com uma linha de poltronas em estrutura metálica tubular e tecidos de fibras naturais.

Já após a guerra, em 1947, a recém-chegada Lina Bo Bardi concebeu as cadeiras dobráveis de couro e madeira para o auditório da primeira sede do Museu de Arte de São Paulo (Masp), reclamando que não tinha conseguido achar nenhuma cadeira moderna em produção na cidade. Pouco depois, como se desse razão à arquiteta, Rino Levi desenvolveu um projeto próprio de poltrona para o auditório do Teatro Cultura Artística, só que realizada em estrutura tubular e retrátil para facilitar o movimento entre as fileiras.

Em 1948, Lina Bo Bardi estabeleceu sociedade com Giancarlo Palanti no Studio de Arte Palma para projetos de interiores e móveis, os quais eram produzidos na oficina da Pau-Brasil Ltda. Por meio do uso de fibras e madeiras nativas trabalhadas com esmero em pequena escala de produção manufatureira, os arquitetos procuraram destacar que tais obras estavam sintonizadas com a realidade do país.

Não por acaso, o artigo sobre as cadeiras publicado na revista Habitat, em 1950, abria-se com uma foto do interior de um antigo navio fluvial, onde as redes de origem indígena eram usadas como assento e cama para longas viagens. Com tecidos pendurados em estruturas de madeira ou tubo, as cadeiras tripé interpretam esse costume popular como uma versão peculiar do sentar no ar, característica das cadeiras projetadas anos antes pelos designers da Bauhaus alemã.

A produção especializada de móveis modernos no Brasil se difundiu ao longo dos anos 1950, conforme a arquitetura moderna se consolidava, em um processo que culminaria na construção de Brasília.

Duas linhas polarizaram o design brasileiro naqueles anos. Uma delas era fiel à identidade nacional, brasileira e moderna, com raízes no modernismo da Semana de 22, representada pela arquitetura de Lúcio Costa, de Oscar Niemeyer e de seus seguidores. A outra se alinhava à arte concreta e ao design da Escola de Ulm, na Alemanha, então dirigida por Max Bill e voltada à produção industrial em série.

Um bom exemplo da primeira vertente foi Joaquim Tenreiro, com seus refinados móveis artesanais em madeira nativa e assentos de palhinha trançada. Na segunda podemos situar o artista concretista Geraldo de Barros, que na Unilabor desenvolveu em seu mobiliário (progressivamente industrializado) as formas geométrico-abstratas de suas pinturas e fotografias.

No início da década de 1960, surge uma nova posição de caráter nacional-popular, baseada nas práticas de produção encontradas em pesquisas etnográficas no interior do país. Os trabalhos de Lina Bo Bardi a partir da exposição Nordeste, realizada na Bahia em 1963, representam uma inflexão política para uma atuação sintonizada com a contracultura dos anos 1960 e 1970, o que a levaria a criticar o domínio de valores consumistas do design contemporâneo industrializado. Aparecia ali uma postura pioneira de sustentabilidade ambiental avant la lettre no campo do design.

O pioneirismo na formação de designers no Brasil foi do Instituto de Arte Contemporânea do Masp, que em 1951 criou o primeiro curso de desenho industrial no país, infelizmente fechado em 1953. Apenas em 1962 ocorreriam duas outras iniciativas de formação de designers: a Escola Superior de Design, no Rio de Janeiro, e a sequência de Desenho Industrial da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em São Paulo.

O desenvolvimento da indústria brasileira, incentivado por políticas protecionistas até o final da década de 1970, demandou projetos para os mais diferentes usos a esses novos designers. Sem deixar de atender ao mercado de sofisticados móveis modernos em pequenas edições, os designers projetavam aparelhos domésticos, equipamentos de som, automóveis e até mesmo os primeiros computadores que animavam os sonhos de consumo da classe média durante o milagre econômico brasileiro.

A crise econômica surgida no final dessa década deu novo sentido às pesquisas na linha da contracultura, do anticonsumismo e do ambientalismo, surgidas no início da década de 1960. Reciclagem e reuso, interação com comunidades e cooperativas de trabalhadores, madeira nativa certificada, baixo consumo de energia no uso e na produção tornaram-se valores reconhecidos internacionalmente. Quando aquilo que era alternativo e marginal assumiu posição central na cultura contemporânea, o Brasil passou a apresentar uma trajetória própria, capaz de colocá-lo novamente em evidência no cenário internacional.

Mas nem só de sustentabilidade vive o design brasileiro. Mesmo com a enorme concorrência decorrente da globalização, muitos designers conseguiram se inserir em vários segmentos da indústria, ultrapassando a área de mobiliário e gráfica que por muitos anos caracterizou o campo.

O destaque no período, contudo, fica para os designers que aprofundaram a interação com as artes plásticas. Se nas décadas de 1950 e 1960 houve um alinhamento com a arte concreta, desde então ele foi sendo atualizado pela interação com a arte pop, a arte conceitual e outras produções da arte contemporânea. Na medida em que esses movimentos artísticos se afastaram da arte moderna, em especial das noções de funcionalidade e serialidade, muitos objetos concebidos recentemente pelos designers dificilmente permitem sua identificação como um mobiliário ou outro uso que lhe serviria de motivo. Confundem-se propositalmente com a escultura, nos procedimentos de formalização e uso de materiais. Mais recentemente, com as novas tecnologias de informação e produção digital, a noção de produção industrial também se alterou, não havendo mais a necessidade de repetição serial de componentes e objetos.

A definição de um campo disciplinar do design vem passando por mudanças estruturais que o afasta de suas origens modernas, abrigando-o no âmbito da indústria criativa. O design de mobiliário e de alguns produtos industriais tornou-se apenas uma parte de um campo que abrange moda, gráfica, animação digital, tecnologias de informação, produção de equipamentos e veículos, etc.

Talvez por essa enorme abrangência, o resgate dos princípios modernos do design no Brasil tem gerado crescente atenção, não apenas apontando raízes, mas revendo valores cuja validade pode ainda não ter se esgotado.


Renato Luiz Sobral Anelli é arquiteto e urbanista. Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor em Arquitetura pela Universidade de São Paulo (USP), onde atualmente é professor titular, Anelli desenvolve pesquisas sobre arquitetura moderna e contemporânea no Brasil. Com ampla produção bibliográfica, em 2002 venceu o prêmio de melhor publicação pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (Departamento de São Paulo) com seu primeiro livro: Rino Levi, arquitetura e cidade (Romano Guerra, 2001). Seu livro mais recente, Architettura Contemporanea: Brasile, foi publicado na Itália (Motta, 2008/2012) e na França (Actes Sud, 2009). Diretor do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, coordenou várias atividades comemorativas de seu centenário em 2014, dando suporte a exposições em Munique, Zurique, Roma, Tóquio e Nova York, entre outros locais.

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