"Sonhíferas" (2020–2021), Solange Pessoa (Foto: Roberto Marossi | Cobertura da Bienal de Veneza)
Artigo

Por dentro da Bienal de Veneza

Dereck Marouço
28 abr 2022, 15h14

Abril deu a largada na retomada plena do circuito artístico global com a inauguração da mais tradicional das bienais. A 59a. edição da Bienal de Veneza, com curadoria de Cecilia Alemani (que desde o ano passado é diretora artística e curadora-chefe do High Line Art, em Nova York), tem o nome de O Leite dos Sonhos (The Milk of Dreams) e foi inspirada pelo livro de mesmo título da escritora e artista inglesa Leonora Carrington. As histórias presentes na obra foram sonhadas pela artista na década de 1950, pintadas nas paredes do quarto de seus filhos e, mais tarde, transcritas em formato editorial. Os desenhos estão em companhia das obras da luso-inglesa Paula Rego, também criadas para acompanhar histórias infantis, e de fotos surrealistas de Claude Cahun e Lise Deharme.

A Bienal de Veneza deste ano imagina o futuro para o qual estamos caminhando. Cecilia Alemani tomou a oportunidade de canonizar o ponto de vista feminino na arte em uma exposição onde os trabalhos mostram excelente nível no próprio objeto artístico, matando a antiga premissa de que arte produzida por mulheres supostamente não era colecionada por conta de sua qualidade.

Acima: "Sonhíferas" (2020–2021), Solange Pessoa (Foto: Roberto Marossi | Cobertura da Bienal de Veneza)

“Elephant” [“Elefante”] (1987), Katharina Fritsch (Foto: Roberto Marossi | Cortesia da Bienal de Veneza)

“Elephant” [“Elefante”] (1987), Katharina Fritsch
(Foto: Roberto Marossi | Cortesia da Bienal de Veneza)

No interior do espaço expositivo o percurso é iniciado com o Elephant (“Elefante”) (1987), trabalho da alemã Katharina Fritsch, uma das ganhadoras do prêmio Leão de Ouro por conjunto da obra, refletido por todos os lados nos espelhos da sala octogonal. A obra de Fritsch, que normalmente tem como propriedade o absurdo, o jocoso e o estranho, aqui funciona como uma introdução ao que está por vir. A artista chilena Cecilia Vicuña, outra das ganhadoras do Leão de Ouro deste ano, apresenta suas telas de formas surrealistas e temas libertários em relação à existência feminina e à presença política, inspirando uma maneira de estar no mundo que é também poética.

Ainda que a videoarte seja normalmente relacionada às práticas conceituais e “desmaterializadas” que se desenvolveram ao longo dos anos 1960/1970, sua teoria constitutiva é intrinsecamente conectada à fisicalidade dos novos equipamentos tecnológicos que permitiram sua popularização e evolução. Em muitos casos, televisores, câmeras e projetores não são apenas suporte para exibição de uma obra, mas elementos que fazem parte da construção semântica do trabalho. Por outro lado, algo que torna essa linguagem tão interessante (ou confusa) é o fato de que, apesar dos equipamentos tecnológicos serem parte das obras, eles não precisam necessariamente ser conservados como se fossem esculturas únicas e insubstituíveis. Na maioria das vezes, o que deve ser documentado e preservado é a ideia do projeto, seus parâmetros técnicos e instruções de montagem, enquanto que os equipamentos necessários podem ser alugados a cada nova exibição.

Vista das obras de Cecilia Vicuna e Mrinalini Mukherjee (Foto: Ela Bialkowska | OKNOstudio | Cortesia da Bienal de Veneza)

Vista das obras de Cecilia Vicuna e Mrinalini Mukherjee
(Foto: Ela Bialkowska | OKNOstudio | Cortesia da Bienal de Veneza)

O Berço da Bruxa [“The Witch’s Cradle”] é uma das cinco cápsulas do tempo presente na exposição e a primeira a ser apresentada no Giardini, expondo sobretudo obras de artistas surrealistas do século passado, sendo grande parte da primeira metade. Entre elas estão a própria Carrington, a dançarina expressionista Mary Wigman, a pintora surrealista inglesa Edith Rimmington, a mexicana Remedios Varo e um impactante vídeo da norte-americana Josephine Baker. As seguintes cápsulas que aparecerão pela exposição darão vazão aos temas da mediunidade, psiquiatria e neuro-dissidência no dadaísmo, introduzindo uma concepção cyborgue que expande as noções de corpo estendido, além da arte cinética e minimalista como o início de uma união entre fazer artístico humano e tecnologia.

Em outro espectro, Alemani aponta para um futuro apocalíptico não tão distante assim, no qual o mundo progrediu sem a humanidade e que é igual ou mais belo. No entanto, a consideração das coisas essenciais através do ponto de vista feminino, também ligadas à nutrição e ao afeto, nos faz crer que imaginar outros futuros e acordos para estes ainda sejam possíveis.

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Obras de Miriam Cahn na Bienal de Veneza (Foto: Marco Cappelletti | Cortesia da Bienal de Veneza)

Obras de Miriam Cahn na Bienal de Veneza (Foto: Marco Cappelletti | Cortesia da Bienal de Veneza)

A exposição principal conta com cinco artistas brasileiros: Lenora de Barros, Luiz Roque, Rosana Paulino, Solange Pessoa e Jaider Esbell, artista Makuxi que faleceu no ano passado. A sessão de Lenora de Barros explicita um dos eixos discursivos da exposição: a união entre o humano, o inorgânico e o tecnológico. De Barros participa com a icônica Poema (1974), composta de algumas fotos em montagem vertical na qual sua língua lambe e se une aos tipos de um teclado e de uma máquina de escrever. A artista é apresentada ao lado das tapeçarias que refletem as formas do meio digital de Charlotte Johannesson, artista sueca que pioneiramente desenvolveu em sua obra a união destes dois meios. A pintora suíça Miriam Cahn foi convidada para contribuir não muito longe dali com uma instalação que explora a violência existente ao ser mulher – no sexo, maternidade, amor e fertilidade.

Brick House, Simone Leigh (Foto: Ela Bialkowska | OKNOstudio | Cortesia da Bienal de Veneza)

Brick House, Simone Leigh (Foto: Ela Bialkowska | OKNOstudio | Cortesia da Bienal de Veneza)

No Arsenale, a enorme escultura totêmica Casa de Tijolos [“Brick House”] (2019), de Simone Leigh, ganhadora do prêmio de melhor participação na exposição internacional, recebe os visitantes. Ela também representa os Estados Unidos no pavilhão nacional norte-americano. Na próxima sessão do segmento expositivo estão diversas séries de Rosana Paulino. Em Jatobá (2019), seis desenhos figuram a junção do corpo feminino aos elementos naturais, criando uma mulher-árvore em cores terrosas, consagrando e unindo a energia feminina à fertilidade. Essa proximidade aponta para a sustentação da ideia de monumentalidade do corpo feminino enquanto suporte do mundo.

As telas coloridas da série Transformação/Ressurgência de Makunaimî (2018) e outras telas de Jaider Esbell ora criam cosmogonias abstratas, ora utilizam elementos naturais como frutas, árvores ou formas quase-humanas que refletem a relação de Makunaimî com as forças vivas do mundo. Surgem aqui relações com as pesquisas de Solange Pessoa, cujo exercício de síntese se encontra entre o real, o original, e o ideal imaginado, com formas que são, ao mesmo tempo, familiares entre os corpos humano, animal e vegetal. A obra de Pessoa tem a especial característica de, através de sua sofisticação e simplicidade, ressoar com o primitivo que é sempre e inevitavelmente presente no ser humano.

“Urubu” (2021), Luiz Roque (Foto: Roberto Marossi | Cortesia da Bienal de Veneza)

“Urubu” (2021), Luiz Roque (Foto: Roberto Marossi | Cortesia da Bienal de Veneza)

Urubu (2021), vídeo super-8 em loop de Luiz Roque, acompanha o voo vertiginoso desse pássaro associado a maus agouros, refletindo a necropolítica estatal brasileira aplicada na época de sua filmagem, durante o lockdown em São Paulo. 

Em seu discurso curatorial, Alemani afirma a vontade de instigar, através da arte, uma nova percepção do que realmente importa a respeito da sociedade e seu contexto, que não necessariamente tem de ser nova: “muitos artistas prevêem o fim do antropocentrismo, celebrando uma nova comunhão com os não humanos, com o mundo animal e com a Terra; eles cultivam um senso de parentesco entre as espécies e entre os orgânicos e inorgânicos, os animados e os inanimados. Outros reagem à dissolução de sistemas supostamente universais, redescobrindo formas localizadas de conhecimento e novas políticas de identidade. Outros ainda praticam o que a teórica e ativista feminista Silvia Federici chama de “re-encantamento do mundo”. A curadora tomou a oportunidade de canonizar essa visão na contemporaneidade através desse gigantesco eixo temático.

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Obras de Jonathas de Andrade no Pavilhão Brasileiro (Foto: Marco Cappelletti | Cortesia da Bienal de Veneza)

Obras de Jonathas de Andrade no Pavilhão Brasileiro (Foto: Marco Cappelletti | Cortesia da Bienal de Veneza)

Diversas expressões que utilizamos em português explicitam a relação do corpo e da palavra no cotidiano de quem vive no Brasil. Coração na mão, cabeça nas nuvens, fogo no rabo, pé na jaca, bunda-mole, e tantas outras expressões foram transformadas em obras por Jonathas de Andrade, dando corpo a um patrimônio imaterial. A instalação Com o coração saindo pela boca (2022), ao inflar-se sobre a cabeça dos visitantes, os força contra a parede e interfere no fluxo da sala. Acompanham a instalação de esculturas e ilustrações algumas caixas com as expressões e seus significados em português, inglês e italiano, procedimento parecido com sua série Educação para adultos (2010). 

O que o artista criou para o pavilhão nacional, de alguma forma, retoma a tradição pop produzida no país na década de 1960 – há algo de Rubens Gerchman, Antonio Dias e principalmente Marcelo Nietsche, com quem suas obras ressoam diretamente em âmbitos humorísticos e estéticos. Para o curador Jacopo Crivelli Visconti, “é preciso, para tentar dar conta do que o Brasil e o mundo nos dizem e nos impõem, hoje, enveredar pelo caminho do irracional, do absurdo, do gigantesco, do diminutivo, do pantagruélico e do inabarcável, da alegoria, do símbolo, do excessivo e do lúdico. O caminho do absurdo e do jogo.”

Obra da série "Senhora das Plantas", Rosana Paulino (Foto: Roberto Marossi | Collection Frances Reynolds | Cortesia da Bienal de Veneza)

Obra da série "Senhora das Plantas", Rosana Paulino (Foto: Roberto Marossi | Collection Frances Reynolds | Cortesia da Bienal de Veneza)

A expectativa em torno desta Bienal de Veneza fora grande, assim como a espera de uma curadora que usasse a oportunidade para defender um projeto artístico feminino, queer, negro e indígena. Indo além, a grande mostra resgata e atualiza os conhecimentos específicos que essas existências trazem consigo, especialmente em relação ao meio ambiente e ao futuro comum que queremos ter. A consciência de uma vida e sociedade em sintonia com a natureza, bem como a analogia do seu abuso, também estão há muito tempo ligadas a ideia do feminino.

Agora, em uma época de urgências e após dois anos pandêmicos, a impressão dada ao visitá-la é de que, assim como qualquer avanço a respeito das coisas que não tem um fim econômico, foi esperado até o último momento possível para que a inclusão e desenvolvimento temático pudesse ser engendrada. Esperemos que mais exposições tenham poder o suficiente para difundir uma visão de mundo que não seja apenas a hegemonia branca e hétero-cisgênera.

Obras da série Transmakunaimî: o buraco é mais embaixo, Jaider Esbell (Foto: Roberto Marossi | Cortesia da Bienal de São Paulo)

Obras da série Transmakunaimî: o buraco é mais embaixo, Jaider Esbell (Foto: Roberto Marossi | Cortesia da Bienal de São Paulo)


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Dereck Marouço é pesquisador, crítico de arte, curador e tradutor, mestrando em Cultures of the Curatorial na Faculdade de Belas Artes de Leipzig, Alemanha. Vive e trabalha em São Paulo e Berlim.

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