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Ensaio

Onde a arte habita...

Julieta González
10 fev 2022, 13h42

oikonomia: a gestão da casa

A arte, no entanto, e seus locais de habitação, são hoje muitas vezes cooptados pelo próprio sistema ao qual deveriam resistir. A insustentabilidade inerente da IWC* e suas lógicas de produção, acumulação, lucro e consumo, imergiram museus em todos os lugares em um ciclo vicioso de medir seu sucesso principalmente através dos números de visitação; meras estatísticas que não avaliam o impacto real que a arte e a instituição podem ter na sociedade em geral e que confinam a instituição do museu ao quadro das indústrias da cultura/entretenimento. O próprio sucesso é uma medida que pertence à lógica do insustentável, e os resultados de tal método de avaliação são evidentes; as exposições são cada vez mais caras de produzir ao passo que aumentam as despesas com seguro, transporte e embalagem; colecionar obras de arte é quase impossível, entre muitas outras questões.

Muitas instituições museológicas da América Latina entraram neste ciclo vicioso, olhando para as instituições dos Estados Unidos ou da Europa sem pensar em seus contextos locais, organizando exposições de grande sucesso dos chamados artistas de primeira linha para atrair um público que está interessado apenas no momento selfie com uma obra de arte instagramável. Se este modelo ainda não se revelou insustentável (especialmente em instituições públicas vulneráveis a cortes orçamentais), com o tempo será, e resultará apenas no esgotamento das energias e recursos das instituições, tanto humanos como materiais, ao ponto da exaustão e até mesmo do encerramento.

Série Irreversível (2018), Renata Padovan, projeto de residência no LABVERDE (Foto: Renata Padovan | Cortesia LABVERDE)
"República" (2020), Luiz Roque (com Natasha Princess), no Pivô (Foto: Everton Ballardin)

Série Irreversível (2018), Renata Padovan, projeto de residência no LABVERDE (Foto: Renata Padovan | Cortesia LABVERDE)

"República" (2020), Luiz Roque (com Natasha Princess), no Pivô (Foto: Everton Ballardin)

Urge, pois, romper com o ciclo e repensar o museu para uma configuração mais humana, local, dialógica, que não mede e quantifica o seu “sucesso”, que reconsidera as suas práticas de acumulação, que redimensiona o seu funcionamento pensando no pequeno e no local, sobretudo ao implantar os muitos recursos ao seu alcance. Um museu é apenas um elemento em um sistema mais amplo, uma ecologia maior, em que todos os elementos são singulares e específicos para cada lugar. Os locais de habitação da arte respondem a esse sistema maior onde estão inscritos e, como tal, devem conceber as soluções para os seus problemas particulares e enfrentar os seus desafios com uma consideração cuidadosa dos seus contextos, uma vez que a sua sustentabilidade depende desta inter-relação contextual.

Esta tem sido a marca registrada de espaços autônomos ou independentes e de organizações artísticas de orientação mais popular, que não giram em torno da acumulação de objetos de arte, mas sim da relação experiencial com os artistas e suas práticas. Espaços independentes e dirigidos por artistas realmente abriram caminho em termos de auto-organização, porosidade, organicidade e, em nossa região, preencheram enormes lacunas que instituições públicas ou privadas maiores não conseguiram resolver; por vezes atolados nas garras sufocantes da burocracia, no primeiro caso; e caindo nas agendas voltadas para o mercado de arte, no segundo. Os espaços menores e mais orgânicos, de fato, não apenas preservaram e cultivaram o poético, mas também forneceram um projeto para um ecossistema onde a arte pode habitar e prosperar.

Esses espaços menores podem mobilizar o potencial para se tornar o que o pensador austríaco Ivan Illich descreveu como ferramentas de convívio. Utilizo a analogia de Illich porque o museu contemporâneo, em geral, também tem sido afetado pela institucionalização do conhecimento especializado, tornando-se uma espécie de torre de marfim, cada vez mais desligada de seus públicos ou recorrendo à espetacularização de exposições que contribui ainda mais para a alienação de seu visitante, para o qual a linguagem da arte é confusa e parece apenas exclusiva a uma elite rarefeita. Assim, abrir o museu à dinâmica dos espaços menores, fazer com que façam parte de um ecossistema onde haja intercâmbio com estas outras organizações, pode também fazer do museu uma ferramenta de convívio e um local de experimentação de uma sociedade melhor.

“Invenção da cor”, Penetrável Magic Square #5, De Luxe (1977), Hélio Oiticica, no Inhotim. (Foto: Carol Lopes)

“Invenção da cor”, Penetrável Magic Square #5, De Luxe (1977), Hélio Oiticica, no Inhotim. (Foto: Carol Lopes)

onde a arte habita na américa latina: em direção a uma criticidade renovada e à singularização da experiência

Em 1982, a convite de Suely Rolnik, Félix Guattari visitou o Brasil e testemunhou um momento singular que descreveu como uma “revolução molecular” em formação. Era o momento em que a “ditadura branda” se abria para a democracia. Guattari identificou esse processo de transição como aquele possibilitado pela micropolítica, ou seja: a organização de constituintes locais, menores, movimentos de base, que são capazes de ter um maior impacto e produzir transformações macropolíticas operando em esferas de ação menores e locais. Micropolítica: Cartografias do Desejo, narra o seu testemunho de uma “vitalidade micropolítica, a força do que se passava na política do desejo, da subjetividade e da relação com o outro… uma dissolução da política da subjetivação construída durante os 500 anos de história do Brasil, em que regimes de exclusão e segmentação se sucederam para formar uma cartografia perversa e fortemente implantada. Uma cartografia colonial, escravista, ditatorial e capitalista, marcada por uma hierarquia social tão cruel e passivamente aceita que o país se posicionou (e continua a se posicionar) no topo do ranking mundial da desigualdade social”.

Quarenta anos após o início auspicioso de uma revolução molecular em formação testemunhada por Guattari, parece que o Brasil hoje está de volta à estaca zero, e o resto do continente está em um estado semelhante de abandono sociopolítico e ecológico, sem falar econômico. O único lugar onde as sementes desta revolução molecular parecem estar brotando é no ecossistema cultural, na rede de instituições cada vez maiores (lugares onde habita a arte) que, em resposta a este estado de degradação, hoje geram conhecimentos situados e formas de experiência corporificada. Em sua capacidade de se auto-organizar em um pequeno nível local, esses ecossistemas culturais podem lançar as sementes que um dia podem trazer mudanças estruturais e macropolíticas. É claro que as moradas da arte não resolverão todos esses problemas, mas, pensando micropoliticamente, em termos da agência que têm em seu campo de ação particular, abrindo-se e colaborando com outros conjuntos micropolíticos, podem estar melhor equipados para enfrentar seus desafios.

 

"Caracol" (2020), Ana Navas. Vista de exposição no espaço Sagrada Mercancía (Foto: Felipe Ugalde © Cortesia Sagrada Mercancía)
“Estamos Más Unidos a lo Invisible Que a lo Visible” (2018), Felipe Mujica. Vista da exposição no Museo de Arte Moderno de Medellín (MAMM) (Foto: Cortesia MAMM)

"Caracol" (2020), Ana Navas. Vista de exposição no espaço Sagrada Mercancía

(Foto: Felipe Ugalde © Cortesia Sagrada Mercancía)

“Estamos Más Unidos a lo Invisible Que a lo Visible” (2018), Felipe Mujica. Vista da exposição no Museo de Arte Moderno de Medellín (MAMM) (Foto: Cortesia MAMM)

"El Capital te Culea" (2019), Teresa Margolles, no Museo de la Solidaridad Salvador Allende (MSSA) Exposição: La Carne Muerta Nunca Se Abriga, 2019-20 (Foto: Benjamín Matte © Cortesia Archivo MSSA)

"El Capital te Culea" (2019), Teresa Margolles, no Museo de la Solidaridad Salvador Allende (MSSA)

Exposição: La Carne Muerta Nunca Se Abriga, 2019-20

(Foto: Benjamín Matte © Cortesia Archivo MSSA)

Há uma virada visível hoje, entre os lugares onde a arte reside na América Latina, em direção a processos geradores de singularização, descritos por Guattari como “formas de rejeitar todos os modos de codificação preestabelecidos, todos os modos de manipulação e controle remoto para construir… modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzem uma subjetividade singular. Uma singularização existencial que coincide com o desejo, a joie de vivre, e a vontade de construir o mundo em que vivemos, com a instauração de dispositifs que permitem a transformação social.” Essa virada também é epistemológica, na medida em que artistas, curadores, instituições e espaços de arte olham e aprendem com outras formas de conhecimento — indígena, afrodescendente e o que antes era considerado arte popular e marginal. Não surpreendentemente, essa virada coloca a ecologia na vanguarda, uma concepção holística da ecologia (da mente e da natureza, voltando a Bateson) que também é compartilhada por formas de conhecimento como as indígenas que têm uma relação simbiótica com a natureza. Entretanto, nem todas as instituições artísticas e culturais estão participando dessa virada para a singularização; ainda existem instituições na América Latina — em sua maioria maiores, algumas delas privadas — que permanecem fiéis à metáfora do mausoléu, gastando milhões para alienar e despersonalizar seu público em exposições de artistas brancos cujas obras alcançam preços astronômicos; lá, a arte não habita, mas fica adormecida, acumulada como mercadoria, exposta como fetiche ou troféu, gastando milhões para alienar e despersonalizar ainda mais seus públicos.

“Tecelãs” (2003), Rosana Paulino, na Pinacoteca de São Paulo (Foto: Pinacoteca de São Paulo | Isabella Matheus)

“Tecelãs” (2003), Rosana Paulino, na Pinacoteca de São Paulo (Foto: Pinacoteca de São Paulo | Isabella Matheus)

É tarefa dos lugares onde a arte habita se engajar em práticas dialógicas baseadas na troca e não na transferência unilateral de conhecimento, a fim de neutralizar os mecanismos de exclusão e marginalização estabelecidos por um sistema normativo que impõe seus códigos, crenças e valores no resto da sociedade. Por meio da inclusão e da participação, os lugares onde a arte habita podem se tornar locais de colaboração compartilhada, testando bases para outras formas de ser, pensar e fazer, a fim de imaginar coletivamente condições mais favoráveis para a coexistência humana e não humana.

*: Integrated World Capitalism (IWC) [Capitalismo Mundial Integrado], conceito desenvolvido por Félix Guattari e mencionado na parte inicial do texto, a respeito da homogeneização da experiência, entorpecimento dos sentidos e da mente, e desarticulação da singularidade.

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Livro-ACT-OVAL_091121_0076

julieta-gonzalez-pb

Julieta González foi curadora em grandes instituições, incluindo Tate Modern, de Londres; MASP; Museo Tamayo, Cidade do México; o Museu do Bronx, Nova York; e Museu de Belas Artes de Caracas. Atualmente dirige o Instituto Inhotim.

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