"Os de pé #4", 2022. Foto: Bruno Leão
Entrevista

Materializar o invisível

Felipe Molitor
15 jun 2022, 17h31

Em sua quinta exposição individual na Galeria Millan, Tatiana Blass transforma o espectador em cúmplice ativo em sua busca de materializar o invisível. Entre séries inéditas de pinturas e esculturas de materiais variados, muitas delas inspiradas em fotografias de cenas de teatro, alguns trabalhos possuem um sensor de presença que, quando ativados, conduzem calor. A partir daí, somos mais um de seus personagens anônimos, integrantes de um universo soturno que fica nas bordas da linguagem, onde o fim e o começo constituem um contínuo.

Reviravolta, que é o nome da mostra com a curadoria de Camila Bechelany, também batiza uma série de esculturas de mangueiras de borracha e de ferro entrelaçadas, que pendem da parede ao chão de maneira indefinida. Segundo o texto da mostra, “é uma alegoria da continuidade do fim que não diz respeito ao término, à aniquilação ou ao encerramento, mas, sim, à reconfiguração formal e material de modos de existência no espaço e no tempo. Continuidade e fim, maleabilidade e rigidez, forma e conteúdo são contrastes dissolvidos e espelhados em toda a exposição”.

A convite da SP–Arte, a artista respondeu algumas perguntas sobre a exposição em cartaz.

Acima: "Os de pé #4", 2022. Foto: Bruno Leão

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"Pintura que derrete: os de pé", 2022. Fotos: Ana Pigosso.
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"Pintura que derrete: os de pé", 2022. Fotos: Ana Pigosso.

“A força comum da vida é o tempo todo de inconstância”

Felipe Molitor: Tatiana, poucos artistas conseguem um trânsito coerente entre suportes – da pintura para a instalação, da escultura para o vídeo – como você. Como se dá o interesse por diferentes materiais? Faz parte da sua prática de ateliê, ou costuma surgir a partir de uma pesquisa específica em curso?

Tatiana Blass: Gosto desse lugar das artes visuais que comporta vários experimentos, diversas linguagens. Há um lugar da arte experimental que comporta aquilo que não caberia no cinema, num livro, no teatro. É um lugar não-lugar das outras linguagens. Essas fronteiras esgarçadas que acabam se juntando na arte contemporânea me interessam bastante.

Na minha geração há diversos artistas que não se consideram exatamente pintores, desenhistas, escultores, mas sim artistas contemporâneos. Meu lugar de mais segurança é a pintura, que é meu trabalho diário, de ateliê, mas acabo tendo ideias que vêm em outros suportes, em materiais específicos. Às vezes preciso da argila para contar de algo que é próprio da argila ou que é preciso que seja em cera…então vou atrás de materiais, profissionais que saibam as técnicas para lidar com eles e também abrir um questionamento sobre como é formalizá-los e se tornarem objetos do mundo, que parem em pé, se aguentem e aguentem o conceito, a ideia. Tenho ideias naquele material, naquele suporte e me estimula muito o não-saber, a vivência primária, como uma criança brincando e descobrindo as possibilidades daquilo. Claro que há uma formalização, um desenvolvimento, mas esse lugar “inábil” me estimula bastante.

"Pintura que derrete", 2022. Foto: Ana Pigosso

"Pintura que derrete", 2022. Foto: Ana Pigosso

"Reviravolta #2", 2022, ferro, PVC flexível e gancho. Foto: Bruno Leão

"Reviravolta #2", 2022, ferro, PVC flexível e gancho. Foto: Bruno Leão

FM: Sua exposição individual em cartaz, Reviravolta, apresenta uma pintura com tinta e cera sobre uma chapa de metal que, assim como as “esculturas em ação”, sofrem um processo de deformação a partir da presença do espectador. Você poderia comentar sobre essa dissolução do próprio trabalho com o público, esse “artifício” de associar luz e calor para provocar uma mudança de estado?

TB: Interessa-me bastante o “estar acontecendo”, minha ideia era que a presença da pessoa provocasse uma desconfiguração da obra – não acho que seja uma destruição, mas ela está se desfazendo, sempre num processo de despedida, mesmo que se despedindo de um estado e se transformando em outro. Esse “estado em despedida” me interessa bastante, e ser o espectador quem involuntariamente aciona esse processo também era algo que queria provocar. São vários desses processos que são acionados durante a exposição.

Quanto à escolha da cera, já tenho trabalhado com esse material em vários trabalhos, que vi pela primeira vez na fundição, quando fui fazer uma escultura em bronze. Primeiro você vê a escultura em cera, pela técnica da cera perdida. Ali achei o material muito interessante, porque muda muito facilmente de estado, em temperatura muito baixa já fica líquido e rapidamente endurece. Esse estado em que existe uma atuação e a presença do tempo é um fator muito importante na formação das obras. Em especial nessa exposição, o tempo é uma dimensão que está em quase todos os trabalhos. Tem essa ideia do estado em despedida e não da destruição, mas a despedida de um estado que está e está se transformando. E vem muito da ideia de inconstância, o estado oficial da vida. Ficamos numa ideia de utopia da eternidade, que as coisas se firmem, tenham um estabilidade, mas a força comum da vida é o tempo todo de inconstância.

"O fim continua_Barro-cerâmica", 2022, argila, cerâmicas de autores desconhecidos, ferro, funil de vidro e água. Fotos: Ana Pigosso
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"O fim continua_Barro-cerâmica", 2022, argila, cerâmicas de autores desconhecidos, ferro, funil de vidro e água. Fotos: Ana Pigosso

"O fim continua", 2022, instalação com mangueira de ferro, torneira, encanamento, corte no chão. Foto: Ana Pigosso

"O fim continua", 2022, instalação com mangueira de ferro, torneira, encanamento, corte no chão. Foto: Ana Pigosso

“O processo de destruição é tão fácil e o de construção – ainda mais o de reconstrução – é sempre tão difícil e trabalhoso”

FM: Diversos textos críticos a respeito de sua obra mencionam o silêncio, o vazio, o oculto, como dimensões importantes em sua poética. Você se identifica com essas ideias? De algum modo, você busca apreender, contornar as ausências para torná-las presentes?

TB: Acho que o que coloco no meu trabalho é uma presença do invisível, não é o vazio como a falta de, a ausência como falta, silêncio como falta de som, mas como uma presença em si. Principalmente nos instrumentos, é uma forma de materializar o silêncio chegando. É como se a matéria da cera fosse aos poucos emudecendo o instrumento e como se o silêncio fosse aquela matéria. Não é nunca como uma ação negativa, ou destrutiva, mas sempre pensando a morte, ou o silêncio, o vazio, como afirmações e presenças. Esse entre, o ar que está entre as coisas, ser uma matéria, em que o som vibra e chega até o ouvido do outro. Pensando essa utopia do vazio, que é uma presença. Como se não houvesse o vazio. Ele é só outro tipo de presença, tudo é presença. Essa ideia da morte como um conceito idealizado, de um fim utópico que não existe. Esse fim continua, pois após a morte tudo continua. Nesse sentido aparece o vazio, o silêncio, a ausência no meu trabalho. Na instalação Zona morta (2007), em que cortei os objetos, fiz os móveis numa sala de estar, a faixa vazia entre as coisas se tornou o assunto, aquele vazio se tornou a coisa mais “matérica” naquele espaço. É nesse sentido de criar uma materialidade do invisível.

FM: Ainda que sua pesquisa artística seja bastante formal, há um tanto da realidade de um país em estado de esfarelamento que pode encontrar ecos no seu trabalho. Como você acha que o Brasil, ou nossa situação atual, penetram e refletem sobre suas obras?

TB: No meu trabalho, não gosto de trazer leituras muito direcionadas, mas é claro que todo o momento que vivemos está ali na exposição. São leituras em aberto possíveis. Existe um drama colocado, certa tragédia, mesmo pensando nesse movimento que vivemos muito fortemente, de uma ação destrutiva à frente e como o processo de destruição é tão fácil de acontecer e o de construção e ainda mais o de reconstrução é sempre tão difícil e trabalhoso. São duas forças que acabam sendo refletidas. A princípio, teria uma referência mais clara à questão de Brumadinho, as mangueiras de ferro de onde sai a ferrugem, essa ferrugem ia provocar, essa água ia pingando nas cabeças de barro que virariam lama, tem essa narrativa nas obras que estão no mezanino da galeria, que eu também decidi deixar como uma leitura em aberto, sem colocar claramente isso. Mas tem sim uma referência a uma situação política geral, do que se vive.

"Zona morta", 2007, instalação com móveis e objetos, no Centro Universitário Maria Antônia. Fotos: Everton Ballardin.
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"Zona morta", 2007, instalação com móveis e objetos, no Centro Universitário Maria Antônia. Fotos: Everton Ballardin.


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Felipe Molitor é jornalista e crítico de arte, parte da equipe editorial da SP–Arte.

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