Maior coragem: práticas experimentais e a arte contemporânea brasileira, por Maria Montero

20 jun 2016, 17h30

Há espaço para radicalidade, ruptura ou contracultura no Brasil de hoje? Maria Montero, curadora e galerista, reflete sobre desdobramentos dessa questão no texto abaixo, publicado originalmente no catálogo da SP-Arte/2016 (confira a publicação na íntegra aqui).

À frente de projetos como o espaço de residência Phosphorus e a galeria Sé, no Centro Histórico de São Paulo, Montero relembra práticas vanguardistas, radicais e “heroicas” no campo da arte brasileira, citando nomes de artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark e até Hudinilson Jr., além de profissionais como Walter Zanine, Frederico Moraes e projetos atuais como a Cia. Teatral Ueinzz.

Como diz a própria Maria Montero, citando Zanine, “para atuar na contramão em nosso país, é preciso, antes de mais nada, ter maior coragem”. Boa leitura!

 

Maior coragem

(por Maria Montero)

O texto intitulado Colecionar o tempo e o espaço, escrito por Marcelo Rezende para o catálogo da SP-Arte/2015, apresenta-nos o casal Annick e Anton Herbert, colecionadores belgas descritos pelo autor como atípicos e atentos às questões políticas da época (1973 foi o ano em que iniciaram a coleção). Participantes ativos no debate em torno das obras, o casal reúne em sua coleção parte significativa do conceitualismo histórico, da arte povera e do minimalismo, em pauta entre 1968 e 1989 na Europa e nos Estados Unidos.

Durante aquele período, em tais locais, a produção conceitual, que propunha distanciar-se do formalismo, acionou uma engrenagem importante no sistema da arte, encontrando na figura de alguns colecionadores e galeristas (muitos deles críticos, artistas e ativistas) grandes aliados para a criação de um espaço de visibilidade dedicado a uma produção nova que, por sua radicalidade, desafiava formas antigas de circulação, conservação e comercialização de valores.

Rezende encerra seu texto deixando uma importante questão em aberto: como entender esse mesmo período de produção (muitas vezes efêmera) em outras regiões, como na América Latina? A potente pergunta apresenta-se em consonância com tudo o que sobrevoa minha prática cotidiana como gestora de um espaço independente na cidade de São Paulo. Uma série de indagações opera simultaneamente, em tensão: por que, no Brasil, as práticas experimentais ficaram marginalizadas em seu contexto histórico? É possível, de fato, em termos conceituais ou formais, experimentar? Há espaço (na arte) para radicalidade, ruptura ou contracultura no contexto econômico e social do Brasil atual?

Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape e Paulo Bruscky se tornaram ícones da prática experimental, tendo sido internacionalmente reconhecidos. Já outros grandes nomes, como Hudinilson Jr., 3NÓS3, Gastão de Magalhães e grupo Arte/Ação, figuras atuantes e ativas nas décadas de 1970 e 1980, tiveram suas produções totalmente obscurecidas e começam a ganhar visibilidade apenas hoje, principalmente por meio do trabalho da galerista paulistana Jaqueline Martins, que abriu sua galeria com a proposta de resgate dessas produções históricas.

É possível afirmar que o apoio à produção e à difusão dessa prática (conceitual, efêmera, experimental) se deu por meio de escassas figuras utópico-heroicas. No campo institucional, em São Paulo, essa missão ficou por conta do professor Walter Zanini, que dirigiu o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) entre 1963 e 2013. Em seu texto Mais coragem, ele sugere: “o museu deve encontrar maior coragem na organização de espaços para atuar, objetivando satisfazer a criação ativa, ou seja, as formas de expressão reconhecidas como processos de busca contínua”.1

Há algumas palavras notórias pertencentes ao repertório global sobre a prática conceitual de décadas passadas: radicalidade, marginalidade, efemeridade e experimentalismo. Entretanto, o texto de Zanini ofereceu-me uma dica valiosa, uma possível chave que ajuda a desvendar esse grande enigma no território brasileiro: para atuar na contramão em nosso país, é preciso, antes de mais nada, ter maior coragem. Infelizmente não houve no Brasil um sistema, nem institucional, nem ligado ao colecionismo privado, que tivesse coragem suficiente para compreender e abraçar essa produção que aboliu as estruturas significantes da obra de arte.

No Brasil dos anos 1960 e 1970, tais artistas ou propositores entendiam a arte como uma situação a ser vivida, uma posição estética, algo que Oiticica chamava de estado permanente inventivo (tal estado aparece em sua fala como um mantra, vide o documentário feito sobre sua vida, que tem como ponto de partida os Heliotapes 2). Foi preciso coragem para assumir essa posição em meio à censura e à ditadura. Talvez por isso os próprios artistas brasileiros tenham se colocado à margem, dificultando sua assimilação. Um gesto político, portanto.

É interessante pensar que a arte postal era vital para a circulação de ideias e a formação de redes entre os artistas. Pela sua própria natureza de circulação, porém, grande parte dessa valiosa produção encontra-se ainda em mãos dos artistas participantes, isto é, desinstitucionalizada.

Das exposições ou ações que deram visibilidade aos artistas-propositores, pode-se destacar: os Domingos da Criação, coordenados por Frederico Moraes, evento que ocorreu nos jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), entre janeiro e julho de 1971, com a proposta de oferecer novas formas de lazer criativo para a população da cidade, aliando arte e participação pública, questionando posturas e opiniões acadêmicas ou conservadoras sobre a arte brasileira daquele momento; e a Jovem Arte Contemporânea (JAC) de Zanini (MAC-SP, 1967-1974), que contava com princípios como solidariedade, cooperação e coletividade.

Enquanto nos EUA e na Europa houve dezenas de galeristas, colecionadores, museus e curadores responsáveis pela circulação desse acervo, muitas vezes existente apenas em forma de documentação, o Brasil contou (e segue contando) com alguns poucos corajosos, o que resultou no completo descaso, durante décadas, em relação a grandes artistas com produções críticas fundamentais.

Nesse sentido, destaco a obra do paulistano Hudinilson Jr. (1957-2013), artista multimídia e um dos pioneiros da arte xerox no Brasil. Participante da última Bienal de Arte de São Paulo, ele morreu em seu apartamento, que transbordava a potência ácida de sua produção. Manteve-se marginal até a morte, não tendo vivido para ver sua obra reconhecida. Um ato de coragem?

Hoje “a produção artística se revela em relações de desordem tempo-espaço, com jogos de citação entre temporalidades distintas, configurações espaciais globalizadas e a emergência de questões e de temas que são parte integrante dos efeitos multiculturalizantes (gênero, etnicidade, sexualidades, cultura e subculturas etc.)”.3 Qual seria, então, o cenário atual em meio ao regime capitalista, neoliberal, globalizado? O que foi produzido no passado é aos poucos consumido, de forma mais privada do que pública. E a produção contemporânea? É possível manter-se nesse estado de invenção permanente?

Depois de sete anos vivendo em Londres e na Austrália e participando de diversas ações artísticas independentes, retornei ao Brasil disposta a me dedicar à arte contemporânea. Não encontrei um lugar. O cenário parecia extremamente normatizado, burocratizado, engessado, com pouco espaço para riscos e experimentações não ligadas ao mercado. A oportunidade de alugar um casarão histórico na primeira rua de São Paulo apareceu e fundei o espaço de residência Phosphorus, imaginando a construção de um lugar que pudesse atuar com maior autonomia.

Apesar do entusiasmo de muitos, o Phosphorus encontrou pouco apoio financeiro. Os editais serviram para financiar parte das atividades, mas não são (nem de longe) possibilitadores de um programa de continuidade. A utopia de um espaço de invenção permanente se via diariamente ofuscada por outros trabalhos remunerados que pudessem bancar o espaço (a liberdade no Brasil custa caro, como já sabemos).

Há um ano e meio, o Phosphorus se desdobrou em um outro projeto, a Sé, uma galeria de arte localizada na mesma casa e que em 2016 participa pela primeira vez da SP-Arte. Essa transição do modus operandi se deu devido ao rápido entendimento de que não há políticas (nem públicas, nem privadas) suficientes para manter funcionando um espaço que privilegia práticas não voltadas diretamente ao mercado. Apesar de seu reconhecimento, o Phosphorus nunca foi financeiramente sustentável.

A Sé é, nesse sentido, uma nova tentativa de existência possível, o desejo de conviver em um ambiente fértil, cercado por artistas cujas práticas aos poucos vão sendo compreendidas e absorvidas, tornando possível, talvez, a geração de recursos para a continuidade do projeto.

Há muitas iniciativas independentes no Brasil (práticas que expandem a própria noção estética das artes ditas visuais), e a grande maioria delas padece do mesmo mal: a falta de recursos. Mesmo assim, munidas de maior coragem, conseguem manter sua potência crítica a um nível altíssimo. Vejamos algumas delas que merecem destaque.

Recibo é uma publicação experimental impressa que cria e edita projetos e ações relacionadas às práticas artísticas de análise crítica, circulação e dispersão de ideias. A revista surgiu em 2002, em Florianópolis, e é editada por Traplev, artista residente em Recife. Funcionando por meio de uma rede de colaborações entre artistas de todo o país, trata-se de uma plataforma que resiste há 13 anos via editais públicos. Sua distribuição é gratuita, mas é inviável remunerar os participantes, à exceção do próprio Traplev, que dedica grande parte de seu tempo a essa empreitada utópica.

O projeto Terreyro Coreográfico, concebido pelo artista Daniel Kairoz e contemplado pelo 16º edital do Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo, acontece em uma área gigante, em terreno coberto, embaixo do Minhocão e ao lado do Teatro Oficina. Com dezenas de eventos gratuitos, oferece atividades abertas a todo tipo de público, inclusive moradores de rua. Além das celebrações, o projeto propõe “estados de invenção permanente sempre se fazendo se questionando se recriando programando e reprogramando a cada movimento”.4 O projeto encontra-se ameaçado pelo poder público, que lançou um edital de ocupação comercial para o local. É irônico pensar que a proposição busca justamente tornar público aquilo que é público, por meio de coreografias na escala arquitetônica e urbana, apropriando-se da importância de seu contexto geográfico (o bairro do Bexiga e a vizinhança com o Teatro Oficina.)

A Cia. Teatral Ueinzz é mais uma dessas iniciativas heroicas: um “território cênico para quem sente vacilar o mundo. Como em Kafka, faz do enjoo em terra firme matéria de transmutação poética e política. No conjunto, há mestres na arte da vidência, com notório saber em improviso e neologismos; especialistas em enciclopédias marítimas, trapezistas frustradas, caçadores de sonhos, atrizes interpretativas. Há também inventores da pomba-gira, incógnitas musicais, mestres cervejistas e seres nascentes. Vidas por um triz se experimentando em práticas estéticas e colaborações transatlânticas. Comunidade dos sem comunidade, para uma comunidade por vir”.5

A qualidade da produção experimental brasileira é inquestionável. A lacuna está na escassez de possibilidades de financiamento dirigidas à produção de massa crítica local. A arte contemporânea brasileira atual precisa evitar a importação de teorias estrangeiras e produzir sua própria envergadura crítica.

Fato é que todo pensamento teórico ou conceitual que soube olhar para as vísceras do Brasil sobreviveu, vide a Antropofagia, os Parangolés, a Tropicália e o Macunaíma, que evidentemente trataram questões ligadas à nossa complexa realidade histórica, social e política.

Sim, é preciso colecionar o tempo e o espaço. Na realidade atual, entretanto, é necessário, antes de mais nada, colecionar maior coragem.

 


Maria Montero vive e trabalha em São Paulo, onde é curadora independente, artista e galerista. Cursou Arte-Psicoterapia na Goldsmith College (Londres, 1998) e atualmente cursa pós graduação em Arte: História, Crítica e Curadoria, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Trabalhou com relações institucionais na Luciana Brito Galeria (2009-2010), foi curadora da primeira versão do Red Bull House of Art (2009) e coordenou o projeto Abotoados Pela Manga, ao lado de Franz Manata (2010). É fundadora e gestora do Phosphorus, espaço independente voltado para práticas experimentais, com foco em residências artísticas e na crítica dos processos. É também fundadora e diretora da Sé, galeria de arte localizada no mesmo prédio que sedia o Phosphorus, um imóvel histórico de 1890 situado na primeira rua da cidade, no coração de São Paulo.

 


Notas:

(1) ZANINI, Walter. Mais coragem. In: FREIRE, Cristina. Walter Zanini: escrituras críticas. São Paulo: Annablume: 2014.
(2) Hélio Oiticica: o filme. Belo Horizonte: Guerrilha Filmes, 2012.
(3) NORONHA, Márcio Pizarro. Economia das artes. 2. ed. Goiânia: Gráfica Qualicor, 2015, p. 19.
(4) Disponível em: <http://terreyrocoreografico.cc/>. Acesso em: 16 fev. 2016.
(5) Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/ueinzz.htm>. Acesso em: 16 fev. 2016.

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